Music

Roger Waters – ao vivo

Última turnê do baixista equilibra o repertório de seu comando cerebral do Pink Floyd, sua eterna veia politizada e momentos mais sentimentais

Texto por Abonico Smith e Frederico di Lullo

Foto: Reprodução

Depois de uma breve contagem contagem regressiva, o telão mandou o aviso final (e em alto e bom português!): “Senhoras e senhores, por favor, ocupem seus lugares. O espetáculo está prestes a começar. Antes de começar, duas mensagens públicas. Primeiro, em consideração aos demais espectadores, desliguem seus celulares. Em segundo lugar, se você é daqueles que diz ‘eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, vaza pro bar!”.

Assim começa o show de This Is Not a Drill, a nova turnê de Roger Waters. No biênio 2022-2023 ele vem rodando o mundo com este espetáculo, adiado por conta da pandemia da covid-19. O recado, apesar do idioma traduzido, não foi uma exclusividade do Brasil, por onde passou as últimas semanas. Só que a observação, curta e direta, cai como uma luva para o nosso país. Afinal, em outubro de 2018, no giro antecessor por algumas capitais, o inglês foi protagonista de um dos maiores momentos de vergonha alheia já presenciados no showbiz em solo nacional. Não por culpa dele, claro. Mas por conta da horda de milhares de eleitores do hoje inelegível. Fãs de rock e do Pink Floyd, muitos deles pagaram um ingresso de preço salgado para ficar em um grande embate verbal e ideológico com o seu ídolo. Muitos xingamentos, vaias, gritos contínuos de “mito” e – o mais vergonhoso – diversos “cala a boca e canta!”. Como se fosse possível separar a pessoa do artista, o discurso da performance. Ainda mais no caso de Waters. O paradoxal, no entanto, foi ver a turba de apoiadores do inominável cantar verso por verso de canções como “Money”, “Us And Them”, “Welcome To The Machine”, “Dogs”, “Pigs (Three Different Ones)”, “Comfortably Numb” e as partes 2 e 3 de “Another Brick On The Wall”. Ainda mais durante o show realizado em Curitiba, terra da Lava-Jato, na véspera da eleição do segundo turno presidencial (clique aqui para ler a resenha deste concerto).

Cinco anos se passaram e Roger Waters retornou ao Brasil para trazer This Is Not a Drill a seis cidades (Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo e… de novo Curitiba, na última noite de 4 de novembro). Muito, meia década antes, foi especulado se o artista voltaria ou não ao nosso país, tamanha fora a falta de educação, elegância e cortesia de boa parte de seus fãs. Só que agora, entretanto, os tempos são outros. A extrema-direita já se encontra devidamente fora do Palácio do Planalto e em queda na popularidade. Muitos de seus ícones estão começando a encarar, judicialmente, as consequências de seus desmandos. O golpe articulado fracassou. Lula cumpre seu terceiro mandato executivo em Brasília. E Roger Waters também está um pouco mais velho – acaba de entrar para o grupo dos octogenários e anunciar que não deverá mais excursionar pelo mundo.

Roger continua incisivamente político e disso nunca vai abrir mão. Mas reserva espaço maior na tour para diálogos mais sentimentais com a plateia. Mais revivalista em sua relação sua vida, não fica só acusando comandantes de estado de criminosos de guerra (Reagan, Putin, Bolsonaro): entre falas ao microfone e telão com imagens e frases, homenageia o ídolo Bob Dylan, o amigo Syd Barrett, a mulher e o irmão. E também equilibra mais o repertório entre os discos mais significativos (para ele, lógico) de sua trajetória no Pink Floyd. Isto é, a fase em que o processo criativo do grupo era comandado cerebralmente por ele no decorrer dos anos 1970, compreendida pelos álbuns The Dark Side Of The Moon (1973), Wish You Were Here (1975), Animals (1977) e The Wall (1979). Bem pouca coisa do repertório vem pinçada de sua carreira solo pós-banda. Para os fãs, isso nem importa tanto. O bom mesmo é vibrar com os infláveis voadores de ovelha e porco durante “Sheep” e “In The Flesh”. Emocionar-se com as lembranças históricas do companheirismo de Syd na trinca “Have a Cigar”, “WIsh You Were Here” e “Shine On You Crazy Diamond”. Viajar na reprodução o integral do lado B de The Dark Side…, inclusive com lasers tridimensionais revivendo ali, no palco, o famoso prisma da capa do disco – há quem diga que assistir chapado a este momento ainda melhora bastante o impacto. Ser atropelado pelos martelos fascistas de “Run Like Hell” ou o toque sombrio de uma “Comfortably Numb” de novo arranjo mais lento e soturno para servir como abertura da noite.

Ainda há na atual turnê um brinde exclusivo aos fãs: a inédita e recentemente composta canção “The Bar”, inspirada na luta do advogado de direitos humanos Steve Donziger contra a contaminação tóxica feita por quase trinta anos pela gigante petrolífera Chevron (antiga Texaco) na Amazônia equatoriana e seus consequentes esforços para escapar da responsabilidade pelo escandaloso crime ambiental. É justamente esta a grande novidade incluída no roteiro de This Is Not a Drill, em relação aos espetáculos anteriores (Us + ThemThe Wall): uma música até então não lançada em disco. Carinhosamente revivida ao final do espetáculo em performance acústica e intimista com Waters cercado pelos seus instrumentistas de apoio, aliás, a reprise de “The Bar, colada com “Outside The Wall” é a representação do adeus do ídolo perante seus fãs. De alguém que cultiva a solidez do passado sem deixar de olhar para a frente e contestar as coisas que sempre o deixam insatisfeito. De um cara que nunca quis ser apenas mais um tijolo encaixado na parede.

Set list: Parte 1 – “Comfortably Numb”, “The Happiest Days of Our Lives”,  “Another Brick In The Wall Part 2”, “Another Brick In The Wall Part 3”, “The Powers That Be”, “The Bravery Of Being Out Of Range”, “The Bar”, “Have a Cigar”, “Wish You Were Here”, “Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-IX)”, 
e “Sheep”.
 Parte 2 – “In the Flesh”, “Run Like Hell”, “Déjà Vu”, “Déjà Vu (Reprise)”, “Is This The Life We Really Want?”, “Money”, “Us And Them”, “Any Colour You Like”, “Brain Damage”, “Eclipse”, “Two Suns In The Sunset, “The Bar (Reprise)” e “Outside The Wall”.

>> PS: Dias após o encerramento da turnê pelo Brasil, Roger Waters teve suas estadias em Buenos Aires e Montevidéo negadas por alguns hotéis destes países. O motivo: as recentes declarações feitas pelo artista contra a violência extrema utilizada por Israel para responder ao atentado coordenado pelo Hamas no último dia 7 de outubro, contra civis e militares do país. Waters, então, optou por continuar hospedado em São Paulo e se deslocar às duas cidades nos dias de cada apresentação.