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Roger Waters – ao vivo

Última turnê do baixista equilibra o repertório de seu comando cerebral do Pink Floyd, sua eterna veia politizada e momentos mais sentimentais

Texto por Abonico Smith e Frederico di Lullo

Foto: Reprodução

Depois de uma breve contagem contagem regressiva, o telão mandou o aviso final (e em alto e bom português!): “Senhoras e senhores, por favor, ocupem seus lugares. O espetáculo está prestes a começar. Antes de começar, duas mensagens públicas. Primeiro, em consideração aos demais espectadores, desliguem seus celulares. Em segundo lugar, se você é daqueles que diz ‘eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, vaza pro bar!”.

Assim começa o show de This Is Not a Drill, a nova turnê de Roger Waters. No biênio 2022-2023 ele vem rodando o mundo com este espetáculo, adiado por conta da pandemia da covid-19. O recado, apesar do idioma traduzido, não foi uma exclusividade do Brasil, por onde passou as últimas semanas. Só que a observação, curta e direta, cai como uma luva para o nosso país. Afinal, em outubro de 2018, no giro antecessor por algumas capitais, o inglês foi protagonista de um dos maiores momentos de vergonha alheia já presenciados no showbiz em solo nacional. Não por culpa dele, claro. Mas por conta da horda de milhares de eleitores do hoje inelegível. Fãs de rock e do Pink Floyd, muitos deles pagaram um ingresso de preço salgado para ficar em um grande embate verbal e ideológico com o seu ídolo. Muitos xingamentos, vaias, gritos contínuos de “mito” e – o mais vergonhoso – diversos “cala a boca e canta!”. Como se fosse possível separar a pessoa do artista, o discurso da performance. Ainda mais no caso de Waters. O paradoxal, no entanto, foi ver a turba de apoiadores do inominável cantar verso por verso de canções como “Money”, “Us And Them”, “Welcome To The Machine”, “Dogs”, “Pigs (Three Different Ones)”, “Comfortably Numb” e as partes 2 e 3 de “Another Brick On The Wall”. Ainda mais durante o show realizado em Curitiba, terra da Lava-Jato, na véspera da eleição do segundo turno presidencial (clique aqui para ler a resenha deste concerto).

Cinco anos se passaram e Roger Waters retornou ao Brasil para trazer This Is Not a Drill a seis cidades (Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo e… de novo Curitiba, na última noite de 4 de novembro). Muito, meia década antes, foi especulado se o artista voltaria ou não ao nosso país, tamanha fora a falta de educação, elegância e cortesia de boa parte de seus fãs. Só que agora, entretanto, os tempos são outros. A extrema-direita já se encontra devidamente fora do Palácio do Planalto e em queda na popularidade. Muitos de seus ícones estão começando a encarar, judicialmente, as consequências de seus desmandos. O golpe articulado fracassou. Lula cumpre seu terceiro mandato executivo em Brasília. E Roger Waters também está um pouco mais velho – acaba de entrar para o grupo dos octogenários e anunciar que não deverá mais excursionar pelo mundo.

Roger continua incisivamente político e disso nunca vai abrir mão. Mas reserva espaço maior na tour para diálogos mais sentimentais com a plateia. Mais revivalista em sua relação sua vida, não fica só acusando comandantes de estado de criminosos de guerra (Reagan, Putin, Bolsonaro): entre falas ao microfone e telão com imagens e frases, homenageia o ídolo Bob Dylan, o amigo Syd Barrett, a mulher e o irmão. E também equilibra mais o repertório entre os discos mais significativos (para ele, lógico) de sua trajetória no Pink Floyd. Isto é, a fase em que o processo criativo do grupo era comandado cerebralmente por ele no decorrer dos anos 1970, compreendida pelos álbuns The Dark Side Of The Moon (1973), Wish You Were Here (1975), Animals (1977) e The Wall (1979). Bem pouca coisa do repertório vem pinçada de sua carreira solo pós-banda. Para os fãs, isso nem importa tanto. O bom mesmo é vibrar com os infláveis voadores de ovelha e porco durante “Sheep” e “In The Flesh”. Emocionar-se com as lembranças históricas do companheirismo de Syd na trinca “Have a Cigar”, “WIsh You Were Here” e “Shine On You Crazy Diamond”. Viajar na reprodução o integral do lado B de The Dark Side…, inclusive com lasers tridimensionais revivendo ali, no palco, o famoso prisma da capa do disco – há quem diga que assistir chapado a este momento ainda melhora bastante o impacto. Ser atropelado pelos martelos fascistas de “Run Like Hell” ou o toque sombrio de uma “Comfortably Numb” de novo arranjo mais lento e soturno para servir como abertura da noite.

Ainda há na atual turnê um brinde exclusivo aos fãs: a inédita e recentemente composta canção “The Bar”, inspirada na luta do advogado de direitos humanos Steve Donziger contra a contaminação tóxica feita por quase trinta anos pela gigante petrolífera Chevron (antiga Texaco) na Amazônia equatoriana e seus consequentes esforços para escapar da responsabilidade pelo escandaloso crime ambiental. É justamente esta a grande novidade incluída no roteiro de This Is Not a Drill, em relação aos espetáculos anteriores (Us + ThemThe Wall): uma música até então não lançada em disco. Carinhosamente revivida ao final do espetáculo em performance acústica e intimista com Waters cercado pelos seus instrumentistas de apoio, aliás, a reprise de “The Bar, colada com “Outside The Wall” é a representação do adeus do ídolo perante seus fãs. De alguém que cultiva a solidez do passado sem deixar de olhar para a frente e contestar as coisas que sempre o deixam insatisfeito. De um cara que nunca quis ser apenas mais um tijolo encaixado na parede.

Set list: Parte 1 – “Comfortably Numb”, “The Happiest Days of Our Lives”,  “Another Brick In The Wall Part 2”, “Another Brick In The Wall Part 3”, “The Powers That Be”, “The Bravery Of Being Out Of Range”, “The Bar”, “Have a Cigar”, “Wish You Were Here”, “Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-IX)”, 
e “Sheep”.
 Parte 2 – “In the Flesh”, “Run Like Hell”, “Déjà Vu”, “Déjà Vu (Reprise)”, “Is This The Life We Really Want?”, “Money”, “Us And Them”, “Any Colour You Like”, “Brain Damage”, “Eclipse”, “Two Suns In The Sunset, “The Bar (Reprise)” e “Outside The Wall”.

>> PS: Dias após o encerramento da turnê pelo Brasil, Roger Waters teve suas estadias em Buenos Aires e Montevidéo negadas por alguns hotéis destes países. O motivo: as recentes declarações feitas pelo artista contra a violência extrema utilizada por Israel para responder ao atentado coordenado pelo Hamas no último dia 7 de outubro, contra civis e militares do país. Waters, então, optou por continuar hospedado em São Paulo e se deslocar às duas cidades nos dias de cada apresentação.

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Roger Waters

Oito motivos para não perder a passagem pelo Brasil de This Is Not a Drill, aquela que deve ser a última turnê do ex-integrante do Pink Floyd

Texto por Frederico Di Lullo

Foto: Reprodução

Roger Waters, um dos maiores ícones em todos os tempos, está trazendo a turnê This Is Not a Drill para o Brasil neste ano. Serão sete datas em seis cidades: Brasília (24 de outubro), Rio de Janeiro (28), Porto Alegre (1 de novembro), Curitiba (4), Belo Horizonte (8) e São Paulo (11 e 12, sendo a primeira noite com ingressos esgotados). Mais informações sobre os preços, horários, compra de entradas e os locais das apresentações você encontra clicando aqui.

Por isso, se você é fã de sua música e do engajamento político deste senhor que completará 80 anos de idade no próximo mês de setembro, não pode perder essa oportunidade. Talvez seja mesmo a última, como está sendo anunciado o evento.

E aqui estão oito motivos para que você não deixe de assistir a esse espetáculo inesquecível. 

Lenda do rock

Ver uma lenda viva do rock em ação em pleno palco é algo maravilhoso. No caso de Waters, suas performances cativantes, vocais icônicos e presença de palco arrebatadora servem como celebração da música e do legado do Pink Floyd. Prepare-se, então, para uma noite de energia, paixão e música de qualidade impecável. Se o sold out de cada data vier, a venda de ingressos estará quase lá no limite.

Repertório atemporal

A turnê de Roger Waters apresenta um repertório que abrange décadas de sucesso e inclui algumas das músicas mais amadas da história do rock. De clássicos setentistas do Pink Floyd como “Comfortably Numb” e “Wish You Were Here” a faixas de sua carreira solo, como “The Bravery Of Being Out of Range”, a máquina do tempo será acionada em uma jornada que promete ser nostálgica, cativante e, sobretudo, emocionante. 

Visual impactante

Waters é conhecido por suas produções grandiosas e visuais impressionantes. Então você pode esperar um espetáculo audiovisual que combine música, projeções cinematográficas, efeitos especiais e aquela megailuminação incrível. Cada detalhe é cuidadosamente elaborado para criar uma experiência sensorial imersiva que complementa perfeitamente a música comandada por ele ali no palco.

Elementos multimídia 

Ao vivo, Roger Waters também é sinônimo uma combinação habilidosa de música, teatro e arte visual. Os elementos multimídia, como a presença do icônico porco inflável, projeções de vídeo e cenários elaborados, criam um ambiente teatralmente envolvente. Você se sentirá fazendo parte de uma narrativa visual e sonora poderosa que vai se desenrolando diante de seus olhos por toda parte.

Sonoridade apurada

Não é só o lado visual. A sonoridade é estrategicamente planejada. Desde os solos de guitarra arrebatadores até os backing vocals, cada momento executado pelos músicos da banda de apoio é cuidadosamente criado para impactar e emocionar. 

Mensagens de conscientização

Além das canções, o baixista é reconhecido por suas mensagens políticas e sociais em suas performances. Se muitas pútridas pessoas vaiaram e xingaram o músico nas suas últimas apresentações no Brasil por se referir ao ex-presidente como o que ele mesmo representa, hoje vemos a situação política brasileira mais promissora. Em This Is Not a Drill, as projeções visuais fazem um chamado à reflexão e à conscientização sobre questões importantes do nosso tempo, sendo um verdadeiro ato revolucionário, em prol dos direitos humanos e contra a opressão. 

Atmosfera de comunhão

Milhares de pessoas reunidas, compartilhando a paixão pela música e pelas mensagens transmitidas, criam um ambiente de conexão e energia positiva. Por isso, assistir a um show de Roger Waters é entrar em uma atmosfera de comunhão com os fãs e com o próprio artista. Desta vez, muito provavelmente, sem a presença de xiitas pagando ingresso para xingar o próprio ídolo.

Eu te disse, eu te disse!

Lá no começo dos anos 1970 os estúdios Hanna-Barbera lançaram um desenho animado que no Brasil ganhou o título de Carangos e Motocas. Em cada aventura, toda vez que a turma comandada pela motocicleta vilã Chapa tinha um plano mal sucedido contra o mocinh” Willie, um fusca, entrava em cena o mais divertido integrante da trupe dos antagonistas. Representava o bom menino que andava com as más companhias, Confuso, uma motoneta de voz estridente, repreendia o amigos com um irritante “eu te disse, eu te disse!”. A advertência serve como metáfora para a nova vinda do cantor e compositor ao nosso país. Não tem como não imaginar Waters pensando em tudo o que passou por aqui durante os shows da tour anterior Us And Them, que rolaram nos dias que antecederam os dois turnos da eleição presidencial. Deve ser inevitável ver aquele belo sorriso de ironia no rosto, mesmo que cuidadosamente ensaiado para ser mostrado de modo discreto ao vivo.

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Roger Waters – ao vivo

Resistir com amor é o ensinamento que o ex-baixista do Pink Floyd passou à plateia sob vaias, xingamentos e aplausos na terra da Lava-Jato

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Textos de Janaina Monteiro e Abonico Smith

Foto: Priscila Oliveira (CWB Live)

Quem esperava ouvir um inflamado discurso político escutou palavras de amor por parte de George Roger Waters no show histórico que apresentou no sábado à noite em Curitiba, às vésperas de uma eleição conturbada para presidente da República. Como a lei eleitoral não permitia manifestações públicas após as 22h (e um juiz local fez questão de enfatizar isso ao artista), Waters se calou e usou o gigantesco telão para se posicionar contra as ideias do candidato Jair Bolsonaro, agora presidente do Brasil. E diante de uma plateia polarizada, entre vaias, aplausos, gritos de “#EleNão” e “Fora PT”, o britânico, de 75 anos, disparou atenuando os ânimos exaltados. Declarava “I love you” e “This show is about love”. Abria os braços para a multidão que lotou o estádio Major Antônio Couto Pereira.

Isso porque em shows anteriores da turnê Us + Them pelo país, o 28º músico mais bem pago do mundo (segundo a revista Forbes, ele faturou 68 milhões de dólares em 2018), causou polêmica ao criticar enfaticamente – inclusive com uso de palavrão – o então candidato do PSL e representantes de regimes de extrema-direita que crescem no mundo. Em Curitiba, numa noite estrelada e enluarada, o cara que ficou conhecido como o cabeça da banda de rock psicodélico/progressivo Pink Floyd teve meia hora para se expressar antes que a lei entrasse em vigor.

Quem chegava ao estádio já se deparava com o enorme telão que mostrava uma mulher, sentada de frente para o mar, olhando para o horizonte. De repente, o céu ficou vermelho. O mundo acabou e o show começou para as 41 mil pessoas presentes. Roger Waters entrou britanicamente às 21h30 no palco e, já no início da primeira parte, nos lembrou o quão pequenos somos diante da vastidão do universo.

A banda começou com “Breathe” e a grande lua e seu lado negro (“the dark side of the moon”) pairou sobre a Terra e se perdeu na infinitude das estrelas. A viagem teve início e era preciso respirar fundo para testemunhar a sequência do show. Seriam quase três horas de história: a trágica História da humanidade, o lado negro do ser humano.

O show de Waters não é para dançar ou se divertir (apesar que haver quem consiga). É um show pesado, para refletir, para protestar. Essa é a sua marca: o músico, que perdeu o pai para o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial e o avô na Primeira, usa sua arte para criticar a desigualdade social. Assisti-lo lúcido, sem nada para entorpecer – como uma gota de álcool ou uma tragada de cigarro – é como levar um soco na cara. Após uma sucessão de imagens violentas, de guerras, pessoas amputadas, minorias, palestinos, muçulmanos, africanos; armas, muitas armas; e crianças diante de tanques de guerra é difícil não se emocionar, não entrar em transe, comover-se. E pensar o quanto ainda precisamos evoluir como seres humanos.

O Pink Floyd lançou o emblemático The Wall, seu décimo primeiro álbum, em 1979, dez anos depois que o homem “supostamente” chegou à lua e da eclosão da chamada terceira revolução industrial, que marcava o início da era da informatização. As tarefas mecânicas e repetitivas das fábricas passaram a ser automatizadas. Com a virada do século, os computadores pessoais e a internet transformaram as relações interpessoais, o modo como nos manifestamos. Hoje presenciamos a quarta revolução industrial: big data, inteligência artificial e afusão dos mundos físico, digital e biológico. Tudo parece estar muito perto, muito fácil, a um clique. Ainda assim, os discursos continuam os mesmos.

Nessas quase quatro décadas desde o lançamento de The Wall, guerras, desigualdade, pobreza, porcos capitalistas, regimes totalitários, muros e chaminés de indústrias continuam a poluir nossas vidas. O show de Waters seguia reflexivo a respeito disso tudo: “One Of These days”, “Time”, “The Great Gig In The Sky”, “Welcome To The Machine”, “Déjà vu”, “The Last Refugee”, “Picture That”. Até que Waters nos convidou a resistir.

Cantor e banda se calaram sob sirenes e o telão explicou. “Temos 30 segundos. É a nossa última chance de resistir ao fascismo antes de domingo. #EleNão! São 10:00. Obedeçam a (sic) lei” A plateia reagiu: uns gritavam “#EleNão”. Outros vaiavam e xingavam o artista. Muitos diziam “fora PT”. Houve quem tapasse os ouvidos.

Waters ressurgiu com “Wish You Were here” e reuniu o coro novamente numa mesma direção até o grande momento do show com sua banda impecável e o clássico “Another Brick In The Wall (partes 2 e 3)”. Quatorze jovens encapuzados entraram no palco vestidos com uniformes de presidiário, de cor laranja e números gravados no peito. O verbo resist apareceu em vermelho no telão e estampado em branco na camiseta preta dos adolescentes, que se despiam do uniforme da prisão e se libertavam. É preciso perfurar esse muro, que, como diria o filósofo Michel Foucault, diz “NÃO” mais alto do que qualquer voz que você ouvirá.

Pausa? Mas que pausa? O “intervalo” começou mas as mensagens no telão não deixavam ninguém relaxar. Vinha um bombardeio de mensagens sobre o poder das guerras, dos porcos capitalistas. A primeira críticas foi diretamente a Mark Zuckerberg, dono de um império avaliado em 81,6 bilhões de dólares. A mensagem do baixista era clara: “resista ao neofascismo”. E ela permearia todo o segundo ato do show, que começou com “Dogs”.

“Resist what? Resist who?”, mostrava o telão. Mas a pergunta que deve ser feita é “resistir como”? Com discursos de ódio ou com uma comunicação não-violenta, empática, aquela que se aproxima do que o líder espiritual Gandhi buscava? A capacidade de se expressar sem usar julgamentos, o maniqueísmo, que divide o mundo em bom e o mau.

Uma imensa usina – a mesma estampada na capa de Animals, de 1977 – tomou conta do telão, por trás de onde emergiam quatro imensas chaminés e um porquinho cinzento inflável. E Waters cantou “Pigs”, do mesmo álbum, numa crítica debochada a Donald Trump. “Big man, pig man, haha, charade you are”. Ora o presidente americano aparecia num corpo de prostituta, ora no corpo de um porco. E o famoso balão alegórico do porco capitalista entrou em cena, passeando pelo gramado, carregando as frases “seja humano” e “permaneça humano”. Com as máscaras do animal, a banda deu um tempo na música preparou um brinde com taças de champanhe em pleno palco. Cheers!

Na sequência, Roger cantou “Money” (“Money, so they say, is the root of all evil today”) enquanto o telão exibia imagens de outros líderes políticos como Kim Jong-Un, da Coreia do Norte, e do russo Vladimir Putin. E depois de tanta desgraça, tanta miséria, tanta guerra, uma mensagem mais positiva foi lançada por Waters. Ao anunciar a canção “Wait For Her”, do seu álbum mais novo (Is This The Life We Really Want?, de 2017, o primeiro de inéditas depois de 25 anos) ele voltou a discorrer sobre a transcendência do amor, que pode, enfim, unir as pessoas e vencer a intolerância. Uma mulher, dançarina de flamenco, com cicatrizes, chora ao telão. Ela representava a força da vida, sofrida mas que segue em frente.

Perto de meia noite e meia, o show terminou. A mesma mulher lá do início permanecia olhando para o infinito. O mundo renasceu e sua filha surgiu da areia e lhe deu um abraço. Esperança em meio ao caos. (JM)

Set list: “Breathe”, “One Of These Days”, “Time”, “Breathe (Reprise)”, “The Great Gig In The Sky”, “Welcome To The Machine”, “Déjà Vu”, “The Last Refugee”, “Picture That”, “Wish You Were Here”, “The Happiest Days Of Our Lives”, “Another Brick In The Wall (Part 2)”, “Another Brick In The Wall (Part 3)”, “Dogs”, “Pigs (Three Different Ones)”, “Money”, “Us + Them”, “Smell The Roses”, “Brain Damage” e “Eclipse”. Bis: “Wait For Her”, “Oceans Apart”, “Part Of Me Died” e “Comfortably Numb”.

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Oito coisas que muita gente não percebeu durante o show de Roger Waters

Nome da turnê

“Us + Them” , faixa de The Dark Side Of The Moon, batizou a atual turnê. A origem de expressão “nós e eles” remete a conceitos sociológicos de inclusão e exclusão. Entretanto, o nome da canção é grafado, com o sinal de adição em vez da subliminar divisão. Os versos escritos por Waters, que teve pai e avô mortos respectivamente na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, questionam quais são os verdadeiros custos de um conflito armado. Nas entrelinhas, ele diz que todos, os dois lados da oposição, tanto “nós” quanto “eles”, acabam pagando tudo isso. Parece que muita gente que estava ali no Couto Pereira, vaiando e xingando sem parar o artista, nunca compreendeu e nem compreenderá tal questão.

Battersea Power Station

Se na turnê anterior Waters fazia referências visuais a The Wall, Animals, álbum lançado em 1977, que critica a decadência sócio-econômica do Reino Unido durante os anos 1970, foi a bola da vez para ter sua capa parcialmente produzida no palco de Us + Them. As quatro chaminés da Battersea Power Station (Estação Termoelétrica de Battersea, situada ao lado do Rio Tâmisa, ao sul de Londres, construída nos anos 1930 com um design grandioso e para demonstrar poder, transformada hoje em um complexo de lojas, restaurantes, escritórios, apartamentos e um grande espaço público interno ao ar livre) subiram lentamente por trás do telão logo ao início de Dogs, para soltar fumaça (poluição) sem parar. Ao mesmo tempo, um porco inflável passou a voar entre as duas primeiras. Este disco, com letras politicamente mais incisivas inspiradas nonos animais do livro A Revolução dos Bichos, de George Orwell,marcou também a tomada integral do controle artístico da banda por Waters, que antes dividia a condição de líder do Pink Floyd com o guitarrista Dave Gilmour.

Banda de apoio

Durante a turnê brasileira muito se falou a respeito do guitarrista californiano Jonathan Wilson, que assumiu os vocais principais em algumas músicas, fazendo as vezes de David Gilmour ao microfone. Durante o show, muitas palmas foram dadas ao saxofonista escocês Ian Ritchie, que solava e passeava pela lateral do palco. Só que havia mais gente não menos talentosa acompanhando o ex-Pink Floyd. Na bateria estava Joey Waronker, músico revelado por Beck nos anos 1990 e que já tocou com R.E.M. e Elliott Smith, além de integrar a banda Atoms For Peace ao lado de Thom Yorke (Radiohead) e Nigel Godrich (que já produziu discos de Radiohead, U2, Paul McCartney e R.E.M., além do próprio Is This The Life We Really Want?, de Waters). A poderosa dupla feminina de backing vocals era formada por Jess Wolfe e Holly Laessig, mais conhecida por formar a linha de frente da banda indie Lucius, formada no Brooklyn nova-iorquino e hoje residente em Los Angeles e com quatro cultuados álbuns na discografia.

Psicodelia visual vintage

Muita gente mais nova pode não ter se tocado mas o vídeo que rolava no telão durante a execução de “Welcome To The Machine” (faixa do álbum Wish You Were Here, de 1975, que fala sobre a dominação das pessoas através do “sistema”) era o mesmo criado por Gerald Scarfe em 1977 para a turnê In The Flesh, do Pink Floyd. A história começa com um gigantesco e robótico axolotl se rastejando em um cenário pós-apocalíptico. Depois aparecem ratos, chaminés, cadáveres, muito sangue e uma torre monolítica surgindo em meio a um deserto estéril. Esta torre se transforma em um monstro que decepa um ser humano. O sangue dele se transforma em milhares de mãos e apenas um edifício sobrevive à multidão até voar, ao final da música, para bem longe, acima das nuvens até se encaixar em uma estrutura flutuante de forma oval. O ilustrador e cartunista inglês Gerald Scarfe é um parceiro de longa data de Roger Waters. Além do vídeo em animação para a música “Welcome To The Machine”, ele também assinou a concepção da arte do disco The Wall e de suas subsequentes turnê e adaptação cinematográfica.

Resist Mark Zuckerberg

A primeira das dezenas de mensagens de resistência mostradas pelo telao durante o intervalo foi para resistir a Mark Zuckerberg, dono do Facebook. Waters fez oito shows por sete capitais brasileiras entre os dias 10 e 30 de outubro. Portanto, viveu in loco todo o clima quente das eleições presidenciais e acompanhou de perto uma acusação, ainda a ser julgada pelo Tribunal Superior Eleitoral, de que a campanha vencedora teve favorecimento ilegal por caixa 2 que teria possibilitado o disparo, pelo WhatsApp de mensagens com fake news em massa por todo o país. Vale lembrar que o Facebook (e por consequência Zuckerberg) também é dono de aplicativos como o WhatsApp e o Instagram.

Goethe apud Waters

Após a retomada da segunda parte, uma famosa frase do escritor, poeta e dramaturgo alemão Goethe foi rapidamente mostrada na lateral direita do gigantesco telão que se estendia de um lado ao outro do estádio do Coritiba. Ela diz que “ninguém é mais irremediavelmente escravizado do que aqueles que falsamente acreditam que são livres”. A mesma frase foi utilizada pela banda holandesa de metal Epica na letra da canção “Resign To Surrender”.

Orwell apud Waters

Assim como fez com Goethe, Roger Waters também fez questão de enfatizar outra frase impactante de George Orwell. No livro A Revolução dos Bichos, o autor britânico afirma, com muita ironia, que “todos os animais são mais iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. Isso foi mostrado no telão durante a suíte formada por “Dogs” e “Pigs”. Caiu como uma luva na terra que deu início à Operação Lava-Jato, onde alguns “animais” parecem ser muito mais iguais que outros.

Comfortably Numb

No enredo de The Wall, a musica ilustra a parte em que o rockstar Pink, depois de ser abatido pela depressão, precisa de medicamentos para conseguir fazer um show e, então. passa a ter alucinações no palco que fazem-no acreditar ser um ditador fascista. O refrão diz assim: “Não há dor, você está recuando/ Um navio distante solta fumaça no horizonte/ Você só está chegando através das ondas/ Seus lábios se movem, mas não consigo ouvir o que você está dizendo/ Quando eu era criança, tive febre/ Minhas mãos pareciam apenas dois balões/ Agora eu tenho esse sentimento mais uma vez/ Eu não posso explicar, você não entenderia/ Não é assim que eu sou/ Eu me tornei confortavelmente entorpecido”. Metáfora maior para ilustrar tudo o que aconteceu antes, durante o show de Waters, e neste momento todo das eleições nacionais não há. Então, muita gente saiu ali do Couto Pereira confortavelmente torpe para ir de volta de casa. A pergunta passou a ser: até quando estes medicamentos continuarão fazendo efeito? (ARS)

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