Music

Marvin Gaye

Obra-prima em que o ícone da Motown traçou um melancólico retrato social da época completa meio século sem perder a atualidade

Texto por Fábio Soares

Foto: Reprodução

“Experimente mexer nesta canção e nunca mais gravarei porcaria alguma para sua gravadora”. Foi com este ultimato dirigido a Berry Gordy, seu cunhado e proprietário do conglomerado Tamla-Motown, que Marvin Pentz Gay Jr forjou o lançamento de sua definitiva obra-prima.

Era o início de 1971. Aos 32 anos de idade e completamente deprimido e devastado pela morte praticamente em seus braços (ocorrida um ano antes) de sua eterna parceira musical Tammi Terrell, Gaye tornou-se recluso. Entregue às drogas, abandonou as turnês e nem pensava em lançar um disco tão cedo. Com um casamento fracassado, problemas financeiros e um total desalento com o que acontecia ao seu redor, parecia que nada, absolutamente nada poderia fazê-lo novamente despertar ao seu ofício. Nada, exceto um fator: a Guerra do Vietnã.

Foi em meados de 1970 que seu irmão, Frank, retornou para casa após quase três anos servindo na investida norte-americana ao país asiático. Contou a Marvin os horrores da guerra e os vilipêndios sofridos por uma população inocente, açoitada pela pobreza, fome e dezenas de enfermidades. Se o cantor precisava de um estopim que servisse como mola propulsora para que retornasse a trabalhar esta ignição estava ali, à sua frente. Seu próximo álbum teria em músicas de protesto seu norte, seu principal cerne, sua prioritária motivação. Mas ela não viria sozinha. 

No dia 4 de Abril de 1968, o pastor batista Martin Luther King Jr, um dos maiores ativistas pelos direitos dos negros americanos, fora assassinado em Memphis, Tenessee. A questão racial aliás, seria mais uma das principais peças deste quebra-cabeças do desalento, da desilusão, da dor.

Voltemos ao primeiro parágrafo: por que cargas d’água, Marvin enfrentou seu cunhado e patrão exigindo que uma de suas canções não fosse modificada, mutilada ou suprimida? Bem, seria inexato afirmar que o cantor resistisse tanto à pressão diretiva da Motown em modificar uma das faixas de seu repertório. Mas aquela em especial não poderia ser modificada nem por um decreto. Por um simples e cabal motivo: não era uma faixa qualquer. Era “What’s Going On”.

A composição da faixa teve inspiração em um específico episódio. Em maio de 1969, Renaldo “Obie” Benson, líder dos Four Tops, estava preso em um engarrafamento em São Francisco, na Califórnia, quando se deparou com um grupo de jovens negros sendo espancado por policiais brancos. Reza a lenda de que ele teria saído de seu carro e bradado: “Por que estão espancando estes meninos? O que eles fizeram? O que está acontecendo?”.

O embate com Gordy citado no início deste texto se deu porque o manda-chuva da gravadora de Detroit não queria que o cantor enveredasse pelo caminho das músicas de protesto porque não enxergava nas mesmas um real potencial de vendas. “Marvin, por que quer destruir sua carreira desta maneira?”, chegou a perguntar. Parecia que o sonho de lançar uma canção de protesto e, consequentemente, um álbum inteiro sobre este tema chegaria ao fim. Chegaria, se Marvin não tivesse, naquele momento, o melhor “advogado” que poderia ter para convencer Gordy: o produtor e compositor Smokey Robinson, braço-direito do chefão da gravadora.

Em seu livro de memórias Smokey: Inside My Life, lançado em 1989, a lenda da soul music relata que pessoalmente peitou o chefão da gravadora em favor de Marvin: “Berry, esta canção é brilhante! Eu mesmo ouvi o arranjo. Não lançá-la será um dos maiores erros de sua existência”. Convencido a novamente ouvir o single, Gordy duramente criticou seu arranjo. “Essa coisa meio Dizzy Gillespie já está ultrapassada! Não vai vender!”, exclamou, demonstrando toda a sua má vontade em lançar a canção nem que fosse como single. Sete meses de “batalha” depois, finalmente o single “What’s Going On” foi lançado em 17 de Janeiro de 1971. 

A repercussão foi estrondosa. O hino antibelicismo esgotou as 100 mil cópias iniciais de sua prensagem em pouquíssimos dias, Como contra fatos não há argumentos, Gordy foi obrigado a dar o braço a torcer: seu cunhado teria carta branca para a produção de um álbum solo inteiro. Nascia ali a concepção de What’s Going On, o álbum, porém, com uma condição: teria Gordy dito diretamente a Marvin: “você tem 30 dias para me entregar um disco inteiro. Nem um dia a mais!”.

Com o desafio lançado, Marvin enfiou-se no estúdio. Relatos da época dizem que as sessões diárias de gravação atingiam inacreditáveis dezesseis horas. O emocional do cantor, no entanto, estava no buraco. Seu casamento com Anna Gordy, irmã do dono da Motown chegara ao fim, a depressão batia-lhe à porta e ele só tinha uma alternativa para exorcizar seus demônios: trabalhar, trabalhar e trabalhar. Muito!

Se arte é dor, What’s Going On foi totalmente concebido sobre este espectro. As gravações iniciaram-se em 17 de março de 1971 e a temática corria longe das canções de amor que tanto sucesso fizeram sob sua interpretação. “What’s Happening Brother”, por exemplo, é justamente sobre o relato de seu irmão quando o mesmo retornou do conflito vietnamita.

Não somente o tema da guerra permeia o álbum que soa como uma ópera. O final de cada faixa serve como fio condutor para a próxima e assim vai. Seu lado religioso é escancarado em “God Is Love” (“Deus é meu amigo/Jesus é meu amigo/ Ele fez o mundo para vivermos e nos deu tudo). Passa pela ecologia, que é esmiuçada na antológica “Mercy, Mercy (The Ecology)” (“Radiação subterrânea e, no céu, animais e pássaros que vivem próximos estão morrendo”) para, finalmente, desaguar nas drogas em “Flying’ High (In The Friendly Sky)” (“Mas eu fico louco quando não consigo encontrar/De manhã, ficarei bem, meu amigo/Mas logo, a noite trará as dores/A dor, oh, a dor”).

Já a capa, esta é um caso à parte. Registrado nos fundos de sua residência, em Detroit, mostra um Marvin com serena expressão em seu rosto sob um chuva fina, transmitindo uma melancolia atroz em seu olhar. Eram tempos difíceis. Difíceis como este biênio 2020/2021, açoitado pela pandemia, pela fome e por uma atmosfera de luto interminável.

Neste 21 de maio de 2021, o multiplatinado What’s Going On, completa cinquenta anos mais atual do que nunca. Uma das mais extraordinárias obras de arte do século vinte, envelheceu bem, porém, ainda triste. Venhamos e convenhamos, entretanto: há motivo para sorrirmos?

>> A Universal Music, que detém os direitos do nome e do catálogo da Tamla-Motown lancou nas plataformas digitais uma edição comemorativa dos 50 anos de What’s Going On?, com doze faixas-bônus escolhidas entre demos, versões alternativas e edições para rádios

Music

Ranking Roger (1963 – 2019)

Toaster do grupo Beat, expoente do movimento Two Tone, foi um símbolo dos descendentes caribenhos na música pop britânica

ranking roger

Texto por Emmanuel do Valle (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Figura de proa no movimento Two Tone, que aglutinou de vez o ska jamaicano ao som pop britânico da virada dos anos 70 para os 80, Ranking Roger morreu aos 56 anos no último dia 26 de março. Alçado à popularidade como um dos frontmen do Beat – banda fundamental do período, também conhecida como English Beat nos Estados Unidos – ao lado do vocalista e guitarrista Dave Wakeling, Roger se destacava pelo toasting, estilo de canto falado próprio dos ritmos da ilha do Caribe. Mais ainda: era um dos símbolos de uma geração de descendentes dos imigrantes afro-caribenhos que aportaram no Reino Unido entre o fim dos anos 1940 e começo dos anos 1970, impactando decisivamente no cenário cultural do país.

Nascido Roger Charlery, em Birmingham (segunda cidade mais populosa do Reino Unido), em 21 de fevereiro de 1963, era filho de um casal que imigrou da ilha caribenha de Santa Lúcia. Na adolescência, tornou-se fã do então nascente punk rock, passando a tocar bateria num grupo chamado Nam Nam Boys. Nos encontros da cena local, fez amizade com os integrantes de um grupo de ska, o Beat, dando uma canja nos shows com sua performance no toasting. Logo estava convidado a se juntar de vez à banda, que não demoraria muito a estourar.

No finzinho de 1979, a formação lançou seu primeiro compacto contendo uma regravação quicante para “Tears Of A Clown” (imortalizada pelo mestre do soul Smokey Robinson) e, do outro lado, “Ranking Full Stop”, na qual Roger comandava o microfone. Único lançamento do grupo pelo selo Two Tone – que batizou o movimento e divulgou novos e importantes nomes como os Specials, o Madness e o Selecter –, o disquinho chegou ao sexto posto da parada britânica em janeiro do ano seguinte e levou o Beat a tocar pela primeira vez no Top Of The Pops, o mais famoso programa musical de TV da BBC.

O grupo era um sexteto racialmente miscigenado: três ingleses brancos oriundos da classe operária de Birmingham (o já citado Dave Wakeling, o guitarrista Andy Cox e o baixista David Steele) e três negros de origem caribenha: além de Ranking Roger (então com apenas 16 anos), havia o baterista Everett Morton e o veterano saxofonista Lionel Augustus Martin, o Saxa, já beirando os 50 anos, e que ao longo da carreira havia acompanhado nomes históricos do ska como Laurel Aitken, Desmond Dekker e Prince Buster. Era um símbolo de que não só a influência como também a presença negra na música pop britânica havia chegado para ficar.

O dado negro na música e na cultura pop britânicas é relativamente recente em comparação com suas correspondentes norte-americanas. A explicação é simples, mas vem de longe. Como matriz colonial, o Reino Unido utilizou mão de obra escrava de africanos majoritariamente em suas colônias (entre elas os Estados Unidos), e não em seu próprio território – a escravidão foi legalmente abolida dentro do país em 1772, embora tenha continuado na prática, de forma sub-reptícia, ainda por quase um século.

Desta forma, até a Segunda Guerra Mundial, a população afrodescendente no Reino Unido não passava de 1% do total, ou pouco mais de 10 mil. Com o país em ruínas ao fim do conflito após os bombardeios alemães, além das expressivas perdas humanas, havia a necessidade urgente de se reconstruir. O governo britânico então passou a incentivar a imigração de habitantes das colônias, inclusive concedendo cidadania do país por meio do British Nationality Act, de 1948.

Em 22 de junho do mesmo ano, o navio HMT Empire Windrush desembarcou no porto de Tilbury, perto de Londres, com cerca de 800 imigrantes oriundos das chamadas Índias Ocidentais (ou o conjunto de colônias do Caribe). O nome da embarcação virou símbolo do fluxo que se estendeu até o início dos anos 1970, já em meio ao processo de descolonização do antigo Império Britânico: os imigrantes afro-caribenhos do período – entre eles, o teórico cultural jamaicano Stuart Hall e os próprios pais de Ranking Roger – ficaram conhecidos como “geração Windrush”.

A chegada massiva de imigrantes começou aos poucos, a partir dos anos 1960, a se fazer notar na cultura britânica. Incorporado ao mainstream da música pop mundial só em meados dos anos 1970, o reggae já marcava presença nas paradas do Reino Unido mesmo em plena Swingin’ London. Antes disso, outros gêneros como o ska e o rocksteady já haviam sido incorporados ao repertório dos mods – tribo urbana juvenil oriunda da classe operária, que ganhou notoriedade no país naquela década – ao lado do soul e do rhythm & blues norte-americanos.

Em abril de 1969, o astro jamaicano do ska Desmond Dekker chegou ao topo da parada britânica de singles com seu clássico “Israelites”. No ano seguinte, ele arrastou multidões de jovens como a principal atração de um festival de música caribenha realizado no estádio de Wembley. Enquanto isso, em 1971, o censo britânico apontava uma população de cerca de 304 mil habitantes de origem afro-caribenha no país, trinta vezes mais do que os números praticamente estáveis das quatro primeiras décadas do século.

Previsivelmente, houve forte reação das alas conservadoras da política e da sociedade britânicas. Ainda em abril de 1968, o parlamentar conservador Enoch Powell fez um inflamado discurso anti-imigração que ficou conhecido informalmente como “Rivers Of Blood” (“Rios de Sangue”) e entrou para a História do país. Citando uma conversa que havia tido com trabalhador de meia-idade pouco tempo antes, Powell afirmava que, caso os fluxos migratórios não fossem contidos, “neste país, dentro de 15 ou 20 anos, o negro terá o domínio sobre o branco”.

Dez anos antes, os distúrbios raciais ocorridos no bairro de Notting Hill marcaram o primeiro grande tumulto deste tipo no país. Ao longo da década de 1970, eles se tornariam mais frequentes, graças ao crescimento de grupos de extrema-direita com matizes neonazistas, como o National Front e o British Movement, que organizavam passeatas e ataques a áreas urbanas com grande concentração de imigrantes, como na chamada Batalha de Lewisham, que envolveu milhares de pessoas no bairro do sudoeste de Londres em agosto de 1977.

Dentro deste contexto, era previsível que o componente sociopolítico se tornasse marcante nos grupos do movimento Two Tone, que revigoraria o skae o reggae, fundindo-os à chamada new wave, que despontava na música britânica no fim dos anos 1970. Em maio de 1980, quando o Beat lançou seu álbum de estreia, I Just Can’t Stop It, as canções sobre relacionamentos e os tributos aos velhos mestres do som jamaicano dividiam espaço com afiadas crônicas sociais (“Mirror In The Bathroom”, “Big Shot”) e políticas (“Stand Down Margaret”, que exigia a saída da primeira-ministra conservadora britânica, eleita um ano antes).

O som enérgico do Beat conquistou a molecada e chegou a reverberar até mesmo deste lado do Atlântico: o grupo foi uma das grandes inspirações no som dos primeiros discos dos Paralamas do Sucesso, até mais do que o Police, com o qual se costuma associar o trio liderado por Herbert Vianna. Everett Morton, por exemplo, era influência declarada do baterista João Barone. E o hit paralâmico “Óculos”, de 1984, “pegava emprestado” o riff de marimba de “Hands Off, She’s Mine”, segundo compacto do Beat, que chegou ao nono lugar da parada britânica em março de 1980 – além de ter sido o primeiro lançamento do selo próprio da banda, o Go Feet.

Lançado no ano seguinte, o segundo disco do grupo, Wha’ppen, era mais lento e sombrio, refletindo o momento calamitoso vivido pelo país naqueles primeiros anos de Thatcherismo, com profunda recessão econômica e desemprego recorde, além da série de novos conflitos raciais deflagrados em várias das principais cidades do país entre abril e julho. Apesar disso – e embora tenha sido recebido com maior frieza pelo público –, o álbum ainda oferecia momentos sublimes, como a emocionante “Doors Of Your Heart”, que ganhou um clipe maravilhoso, gravado em plena euforia do carnaval de rua afrocaribenho de Portobello Road.

O terceiro ábum, Special Beat Service, lançado em outubro de 1982, ampliava ainda mais a paleta sonora do grupo: “Save It For Later” – considerada por Pete Townshend uma de suas canções favoritas da vida – puxava mais para um estilo guitar band, enquanto a funkeada “I Confess” remetia aos grupos new romantic. Ambas foram lançadas em single. Mas o grande momento de Ranking Roger era a canção na qual ele apresentava um certo toaster novato chamado Pato Banton, “Pato And Roger A Go Talk”.

Aquele seria o último disco de estúdio da banda, que se despediria no ano seguinte com a coletânea What Is Beat? e uma turnê que incluiu uma participação antológica no US Festival, na Califórnia, em maio de 1983. O grupo se desintegrou aos pares: enquanto Andy Cox e David Steele formaram o Fine Young Cannibals recrutando o vocalista Roland Gift, Everett Morton e Saxa, os mais experientes do grupo, passaram a acompanhar outros artistas, antes de formarem o International Beat, que seguiria na ativa até a década de 1990.

A dupla de frente, Ranking Roger e Dave Wakeling, por sua vez, seguiu junta no projeto seguinte, o General Public, que lançou dois álbuns e teve sucesso com a canção “Tenderness”, de 1984, que volta e meia aparece em coletâneas de flashback de sons oitentistas. Com o fim de mais esta empreitada, Roger lançou um disco solo, formou o Special Beat, com ex-integrantes dos Specials e gravou com Sting e com o Smash Mouth Até trazer o Beat de volta à ativa nos anos 2000 – ou melhor, um dos Beats, já que Wakeling, agora residindo nos Estados Unidos, também fez shows pelo país com o nome da banda. Nunca houve, porém, qualquer animosidade.

A formação que tinha Ranking Roger à frente, da qual também fazia parte seu filho Ranking Junior, chegou a gravar dois álbuns de inéditas: Bounce, de 2016, e Public Confidential, que saiu em janeiro deste ano, na mesma época em que o cantor anunciou pelas redes sociais que havia sido operado de dois tumores no cérebro, além de passar por tratamento contra um câncer no pulmão – antes, em agosto, já havia sofrido um infarto. “Ele lutou & lutou & lutou. Roger era um lutador”, disse o comunicado que anunciou sua morte no perfil oficial do Beat no Facebook, antes de revelar que o cantor falecera “em paz em sua casa, rodeado por sua família”.

Também pelas redes sociais, amigos de bandas contemporâneas como Neville Staple (Specials), Pauline Black (Selecter), Billy Bragg e o UB40 lamentaram a morte de Ranking Roger, que se torna a segunda perda na formação clássica do Beat, após o falecimento de Saxa em maio de 2017, aos 87 anos. O cantor havia recentemente acabado de escrever sua autobiografia, que leva o mesmo nome do primeiro álbum do grupo, I Just Can’t Stop It, e deve ser publicada em breve.