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Marte Um

Pré-indicado ao Oscar em 2023 faz o retrato doloroso da árdua luta de uma família negra de classe média baixa brasileira contra as dificuldades diárias

Texto por Taís Zago

Foto: Embaúba Fimes

O encanto e a reflexão que habitam as pequenas histórias são o chamariz principal dessa força-tarefa de, praticamente, um homem só e seus amigos. Gabriel Martins é o diretor, produtor e roteirista dessa pequena pérola do cinema nacional financiada por meio de editais e que levou quatro anos para chegar aos nossos cinemas. Marte Um (Brasil, 2022 – Embaúba Filmes) nasceu de uma ideia que Gabriel teve em 2014 e foi filmado no final de 2018 – portanto, antes da pandemia e do agravamento da crise econômica e social que nos assola ainda hoje. A vida das quatro pessoas de uma família negra de classe média baixa da cidade mineira de Contagem, contada nos meses entre a vitória nas eleições e a posse do presidente Jair Bolsonaro, é cheia de verdades incômodas e marcada por fortes laços de ternura.

Wellington Martins (primorosamente interpretado por Carlos Francisco) é um porteiro, ex-dependente de álcool e pai de dois filhos, que aparentemente vive de forma conformada e pacata. Ele se adaptou à rotina do racismo institucional brasileiro, fazendo limonada dos limões azedos que aparecem constantemente em seu caminho. Como a maioria dos brasileiros, Wellington sonha com um futuro brilhante para suas crianças, trabalha com afinco e dedicação e fecha os olhos, mesmo que não completamente, para os abusos diários das relações patrão-funcionário que são evidentes em uma hierarquia torta do abuso de pequenos poderes. A dinâmica entre ele e a síndica do prédio onde bate ponto é uma perfeita caracterização desse processo. Seus colegas, não conformados, apontam os ditos abusos, mas Wellington apenas sorri com um “deixa disso”.

Tércia (Rejane Faria), a matriarca dos Martins, é uma diarista que trabalha para um influencer. À primeira vista, parece receber respeito e reconhecimento pelo seu trabalho, mas logo percebemos que nem tudo são flores quando um manda e o outro precisa obedecer. A filha mais velha do casal, Eunice (Camilla Damião em uma espetacular estreia como protagonista), cursa direito, é tutora e sonha com a independência da casa dos pais. Já o caçula da família Deivinho (interpretado pelo ator Cícero Lucas em seu primeiro papel), vive dividido entre seguir o sonho do pai, que almeja para ele uma carreira no futebol, sua paixão por astrofísica e o sonho de participar de uma missão a Marte. Daí o título Marte Um (Mars One, em inglês), que fora o nome dado à primeira expedição do homem para Marte, planejada para 2030 mas cancelada em 2019.

Gabriel Martins, não contente em já acumular várias funções na produção, também selecionou pessoalmente o casting e trabalhou na edição. Segundo Martins, Marte Um é, em parte, autobiográfico, principalmente nas representações do pai Wellington e do filho Deivinho. É um desses filmes em que o coração do realizador se derrama na tela, e nós, como público, sentimos isso. Quer seja nos conflitos de Deivinho sobre seu futuro profissional ou na batalha de Eunice para assumir seu relacionamento com uma mulher diante de seus parentes. Nas expectativas que Wellington deposita em Deivinho ou na crise existencial que abala até mesmo o entusiasmo natural de Tércia. São todos temas pesados e de difícil abordagem, principalmente para uma família de subúrbio brasileira, a qual muitas vezes não se permite o olhar para dentro de si mesma e segue a luta contra o olhar repreendedor e julgador dos mais bem situados economicamente. E essa é a delicadeza da obra de Gabriel: um olhar individual, um olhar mais profundo nos desejos das pessoas, em seus sonhos, em seus sentimentos.

É impossível sair de Marte Um sem lágrimas nos olhos e um sorriso no rosto. Com estreia no Sundance Festival de 2022, onde foi muito elogiado, e premiado no Festival de Cinema de Gramado, o longa-metragem é o nosso candidato escolhido para buscar a vaga entre os conconrrentes à premiação do Oscar de filme estrangeiro em 2023. Uma obra feita de forma independente, de baixo custo, por um diretor apaixonado, sobre um assunto que nunca deixa de ser atual no Brasil racista e classista que vivemos ainda hoje.

Para mim, Marte Um é, também, o melhor filme nacional lançado até agora nesse ano. Consegue unir crítica social e sensibilidade sem perder de vista a esperança e sem fazer concessões a preconceitos.

Movies

Pulsão

Documentário procura evidenciar a influência e o poder das redes sociais na política brasileira dos últimos anos

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Reprodução

Quando Guy Debord escreveu A Sociedade do Espetáculo, que serviu de base para os acontecimentos de maio de 1968, não poderia imaginar que a internet, seus algoritmos e o mar de fake news divulgados via WhatsApp potencializariam, algumas décadas depois, sua teoria sobre a submissão alienante proporcionada pela mídia. O livro é leitura fundamental para tentar compreender o mundo moderno do pós-guerra, quando a sociedade se viu dominada pela mercantilização das relações, sejam elas sociais, políticas e econômicas. 

Seguindo ideias marxistas que flertavam com o pensamento freudiano, Debord acreditava que o espetáculo é uma forma de dominação da burguesia sobre o proletariado. Alguns desses conceitos podem ser claramente percebidos no documentário Pulsão, dirigido, produzido e escrito por Diego “Di” Florentino em parceria com Sabrina Demozzi. A missão, aqui, é traçar uma retrospectiva que permite evidenciar a influência e o poder das redes sociais nos acontecimentos políticos dos últimos anos, desde as passeatas promovidas pelo Movimento Passe Livre em 2013 (e que eram organizadas via Facebook), passando pela operação Lava-Jato, o impeachment da presidente Dilma Rousseff e o desfecho com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

O título do documentário, lançado diretamente no YouTube no último dia 4 de setembro, evoca a teoria freudiana das pulsões: a pulsão da morte, o thanatos, é o movimento em direção à morte, à destruição. Ou seja, entende-se pelo desenrolar da narrativa que, há sete anos, o Brasil vem sendo empurrado ladeira abaixo, depois dos casos de corrupção que provocaram o impeachment de um nome eleito pelo povo até culminar na eleição, também democrática, de um representante da extrema-direita, que desde o início de sua campanha eleitoral não escondeu sua paixão por armas de fogo e sua aversão às minorias. A eleição de Bolsonaro teria sido um tiro no pé disparado pelos brasileiros num comportamento do tipo “efeito manada”, estimulado pelas redes sociais e criação de perfis falsos e, claro, pela verdadeira elite formada por grandes grupos econômicos e midiáticos. Agora, os marqueteiros de plantão, experts em SEO, somam-se à Rede Globo no que coube até hoje, na história do país, tornar o povo massa de manobra. A mensagem é simples: não acredite em nada daquilo que você vê. Não acredite em Bonners nem em Kataguiris. 

Lançado na esteira do celebrado e premiado Democracia em Vertigem, de Petra Costa, Pulsão tem um quê de Cambridge Analytica, ao passo que mostra como o brasileiro se vê refém das redes sociais e suas fake news – além de reconstruir, passo a passo, como a sociedade abalada pelas denúncias de corrupção foi capaz de alçar ativistas políticos a políticos ativistas, elevar um juiz de primeira instância ao status de super-herói e eleger um presidente de extrema-direita. Neste ponto, a montagem de Rodrigo Baptista é extremamente eficiente ao confrontar imagens e discursos contraditórios resgatando material de arquivo de canais de tevê aberta (sobretudo Globo e TV Cultura) ou divulgado por outros canais de imprensa, além de conteúdo amador. Há uma sequência, por exemplo, em que uma jornalista elogia o fato de as passeatas serem pacíficas, enquanto a imagem mostra exatamente o oposto: um rapaz “de vermelho” sendo agredido ao atravessar a rua durante uma passeata. 

Também há o momento em que o então juiz Sergio Moro afirmava, durante uma palestra, que não tinha intenção de se envolver com a política. Outras cenas são patéticas, como a então jornalista Joice Hasselmann (ex-aliada de Bolsonaro e atualmente candidata a prefeita de São Paulo pelo PSL) bajulando Moro e, depois, tendo um ataque de histeria ao comemorar sua eleição como a deputada federal mais votada. É constrangedor!

A direção do longa-documental consegue empreender o ritmo ágil, inclusive pelo uso de recursos visuais que lembram o ambiente digital, e ainda linkar os acontecimentos de forma dinâmica durante pouco mais de uma hora. Um dos personagens principais desse doc é o celular, que se transforma em algo muito maior que um mero aparelho: uma arma de guerrilha, de disparos de informações falsas, de memes e discursos demagógicos.  

O tom didático, sobretudo por conta da narração em off de Cesinha Mattos (autor da trilha sonora), é uma das falhas. Com sua voz suave, parece que estamos diante de uma propaganda de maionese. O descuido na edição também incomoda. Ninguém lembrou-se de legendar os nomes das personalidades que aparecem no decorrer do documentário. Todo mundo sabe quem é Lula, mas nem todos são obrigados a saber quem é Marco Antônio Villa discursando com seu sotaque paulistano no microfone da rádio Jovem Pan. Também não há referência quanto à frase citada no desfecho do filme. É preciso recorrer ao “oráculo” Google para descobrir tais informações.

Outra questão é o caráter panfletário da obra, mesmo porque a ideia inicial do projeto era registrar o “Circo da Democracia”, evento ligado a entidades sindicais que reuniu em Curitiba diversas figuras políticas e acadêmicas de esquerda para debater a conjuntura política da época. Além disso, uma repórter do Intercept Brasil, veículo que publicou a série de vazamentos envolvendo Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, foi a responsável pela pesquisa ao lado de Sabrina. Mas ao contrário do que se costuma – ou costumava – aprender nas faculdades de Jornalismo, é impossível ser isento. O simples fato de eleger a sequência das imagens já se trata de um posicionamento.

Talvez se não estivéssemos num ano pandêmico, Pulsão teria outro alcance e engajamento da população. Movimentos populares se traduzem, na circunstância atual, em aglomerações nas praias, numa clara atitude displicente da população, condizente com o perfil do governante-mor brasileiro. De fato, as retóricas se confundem. O mesmo consumidor-cidadão-eleitor que acredita em fake news também parece acreditar que não será vítima de uma simples “gripezinha”. Resta saber se nessa massa sem máscara que invadiu as areias num final de semana de calor invernal estão apenas eleitores da esquerda ou direita. Para usar uma linguagem bem popular, para não dizer “dilmesca”, todos – seja lá qual lado for – são farinha do mesmo saco. Todos pagam o mesmo pato. À milanesa.

Music

Caetano Veloso – ao vivo

Ao lado dos três filhos, cantor comemora 78 anos fazendo da tão esperada live um doce acontecimento musical em meio à pandemia

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Globoplay/Reprodução

live de Caetano Veloso não foi qualquer coisa: foi um acontecimento. Depois de meses tentando convencer o baiano a se apresentar em tempo real, Paula Lavigne, empresária e companheira do artista, fez valer seu poder de persuasão – que já dura anos – e conseguiu que Caetano fizesse um show quase todo acústico ao lado dos filhos para comemorar seus 78 anos de vida, no último dia 7 de agosto e às vésperas do dia dos pais.

Às 21h30, a família Teles Veloso abriu a porta de casa para os convidados conectados no serviço de streaming Globoplay (com sinal inclusive para não-assinantes, vale ressaltar), indo na contramão de outros artistas, como Milton Nascimento e Gilberto Gil, que fizeram lives pelo YouTube. O cenário não deixou de seguir a grandiosidade de seus shows em teatros: Caetano e os filhos Zeca (à direita), Moreno e Tom (à esquerda), posicionaram-se como na turnê Ofertório, só que à frente de uma estante colossal. Atrás dos quatro, retratos, DVDs de filmes prediletos, coleções de CDs (como Chico Buarque), a Bíblia Sagrada (o baiano é ateu; Paulinha, evangélica), toca-discos e livros, muitos livros. Um pouco do acervo que preenche uma das mentes mais profusas da intelligentsia brasileira, apesar do cantor sempre se esquivar do título de intelectual.

Caetano é um pensador popular, que, desde o início da pandemia, virou hit nas redes sociais. Filmado pela insistente Paulinha, tornou-se o rei da dupla paçoca & kombucha. Deixou a vaidade de lado, aparecendo humildemente de pijamas ao estilo João Gilberto, ora deitado na cama assistindo à apresentação dos Rolling Stones no evento on-line One World Together at Home, ora na sala tocando violão no sofá amarelo. Surgiu como um vovô babão, ninando docemente o netinho recém-nascido, filho do caçula Tom.

À medida que divulgava os vídeos caseiros informais, a eterna Paulinha lançou a campanha #LiveALenda. Seria um exagero chamar Caetano de lenda, afinal?

Não, não é. Concorde-se ou não com seu posicionamento político-ideológico, fato é que a genialidade e contribuição artística de Caê transcendem qualquer opinião. Basta lembrar que a música popular brasileira é dividida entre antes e depois da Tropicália, quiçá o movimento artístico-musical mais original da cultura brasileira. Suas canções são objeto de análises semântico-discursivas em salas de aula Brasil afora e apreciadas por gênios da música pop internacional como David Byrne e Beck.

Caetano sempre foi um crítico de cultura, contraditório por natureza, apaixonado por artes (sobretudo o cinema) e nunca deixou de mostrar sua indignação pelas injustiças sociais desde a época dos festivais – quando ele cobrava a reação dos jovens que “queriam tomar o poder”. Como sobrevivente da ditadura e do exílio, Caetano tem respaldo e direito de se manifestar e discursar como bem entende. A diferença é que ele já não precisa gritar. Aos 78 anos, sussurra e canta sua revolta em modo acústico. Assim como fez em “Podres Poderes”, canção-manifesto que não poderia deixar de ser lembrada na live, cujo set list contou com vários de seus sucessos, a maioria espalhada entre as décadas de 1970 e 1990. Muitos deles inseridos em novelas e minisséries da Globo, como a primeira do repertório do show, “Milagres do Povo”. Aliás, só mesmo um milagre para nos salvar deste ano pandêmico.

Tranquilo e sereno, Caetano continuou passeando pelo seu repertório com uma série de canções-homenagem. “Tigresa”, composta para uma personagem vivida em novela por Sônia Braga; “Sampa”, uma declaração de amor para a cidade de São Paulo; “Cajuína”, sobre a morte de Torquato Neto; “Leãozinho”, que feita para o baixista Dadi (Tribalistas, A Cor do Som, Novos Baianos). E por falar em Novos Baianos, ao cantar “Coisa Acesa”, ele lembrou merecidamente Moraes Moreira, morto após um infarto no último mês de abril.

Pela primeira vez, cantou “Pardo”, que compôs para a talentosa Céu. Seus filhos também contribuíram com obras autorais. “Talvez”, lançada pelo baiano nas plataformas digitais no dia da live, foi cantada em dueto com seu autor Tom. A pedido da mãe, Zeca comandou a tocante “Todo Homem”, feita pelos quatro para a turnê Ofertório. “Sertão” é outra que veio deste show. Seu coautor Moreno encerrou a live com a sua animada “How Beautiful Could A Being Be”. Também em inglês, Caetano mandou uma inesperada “Nine Out Of Ten”, do conceituado álbum Transa (lançado em 1972 e gravado no ano anterior, ainda durante o exílio em Londres), na qual ele dispara: “I’m aliiiiiive”.

Como todos esperavam, Caetano aproveitou o espaço na mídia para tecer críticas ao (des)governo federal. Lamentou o fato de, no meio de uma pandemia, o país ter há três meses um ministro da saúde interino e um ministro do meio ambiente “que é contra o meio ambiente”. Lembrando os indígenas mortos pela covid-19, entoou “Um Índio”.

Além disso, falou um pouco sobre o seu próximo projeto, em parceria com o Balé Folclórico da Bahia, que está pausado por conta da pandemia. Ao perguntar como poderiam ser feitas as doações para o grupo, por meio do link de seu Instagram, Caetano brincou: “preciso ler a minha bio”. Moreno teve que explicar a painho o que significava isso.

A live deixou evidente que Caetano foi capaz de construir um legado cultural com sua obra, filhas-canções e filhos de carne e osso. Um alento para o futuro da MPB. E quando o pai errava a letra de alguma canção, Moreno o ajudava, com sua tranquilidade de um monge.

Enquanto o futuro está nas mãos dos bioquímicos e aguarda pelo milagre da vacina, “Desde que o Samba é Samba” (gravada no álbum Tropicália 2, lançado em 1993 em dupla com Gilberto Gil) se torna um mantra capaz de deixar nossa cuca e mundo um pouco mais odara. Seus versos dizem: “Solidão apavora/ Tudo demorando em ser tão ruim/ Mas alguma coisa acontece/ No quando agora em mim/ Cantando eu mando a tristeza embora”.

Set list: “Milagres do Povo”, “Tigresa”, “Coisa Acesa”, “Pardo”, “Sampa”, “Pulsar”, “O Homem Velho”, “Luz do Sol”, “Um Índio”, “Cajuína”, “Talvez”, “Queixa”, “Sertão”, “Reconvexo”, “Nu com a Minha Música”, “Desde que o Samba é Samba”, “Trilhos Urbanos”, “Diamante Verdadeiro”, “Podres Poderes”, “Nine Out Of Ten”, “Qualquer Coisa”, “Tá Combinado”, “Todo Homem”, “Odara”, “Leãozinho”, “Sozinho” e “How Beautiful Could a Being Be”.

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Coringa

Joaquin Phoenix encarna com maestria o clássico vilão de Gotham em contundente história que metaforiza a psicopatia da sociedade atual

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Texto por Janaina Monteiro

Fotos: Warner/Divulgação

Sorria, mesmo que seu coração esteja dolorido. Sorria, mesmo que ele esteja partido. Charles Chaplin, que deu vida ao palhaço Carlitos, escreveu esses versos em “Smile”, música composta nos anos 1930 para o filme Tempos Modernos.

Mas como sorrir quando se é miserável de alma e conta bancária? Quando se é vítima de toda a sujeira mais imunda que o ser humano pode produzir? Quando o bullying e o abandono se arrastam pela vida adulta? Quando você perde emprego, vive sozinho, deprimido, e, pra piorar, sofre de transtorno psicótico? Esse é o dilema de Coringa (Joker, EUA, 2019 – Warner). No filme que leva o nome em português do personagem, o vilão se transforma em herói retratado de forma humanizada pelo diretor Todd Phillips (mais conhecido pela trilogia Se Beber Não Case). O aguardado e aclamado longa sobre um dos antagonistas de Batman, vencedor do último Leão de Ouro em Veneza, estreia nesta quinta-feira no Brasil cercado de polêmicas e protagonizado por Joaquin Phoenix, um ator com estrutura física e psicológica para viver o papel que já foi interpretado por Heath Ledger (morto por overdose acidental de medicamentos logo após terminar as filmagens de Batman: O Cavaleiro das Trevas), Jared Leto e Jack Nicholson.

O Coringa de Phoenix sorri por conta de sua psicose acompanhada de um distúrbio neurológico (ele ri incontrolavelmente a ponto de quase sufocar) e do seu trabalho como palhaço de rua. Arthur, na verdade, chora através de suas risadas histéricas. Ele é o freak, o weirdo, em busca de sentido de pertencimento no mundo cada vez mais apático e egocêntrico. Faz parte da escória da humanidade, que de tanto sofrer assume a personalidade de Joker e se transforma num monstro guiado pela violência nua e crua, similar à praticada por jovens armados em escolas e cujos massacres são exibidos e reexibidos pelos telejornais. Por isso a preocupação com a censura: no Brasil, o filme não é recomendado para menores de 16 anos.

A introdução mostra o drama de Arthur em seu ambiente hostil. Gotham City está infestada por ratos reais, numa analogia à Nova York do início dos anos 1980 quando o número de habitantes roedores quase ultrapassou a população. Arthur mora com a mãe num prédio decadente do Bronx e sonha em ser comediante de stand-up. O tempo todo ele é esculhambado, ridicularizado por colegas, agredido por gangue de adolescentes, refém de sua doença, dos remédios e da pilhéria da sociedade em que vive.

Phillips, que coescreveu o roteiro, conseguiu de forma soberba traduzir essa personagem dos quadrinhos capaz de causar tanto fascínio e terror. E humanizar o vilão, digno de pena. Todo o sofrimento serve como base de seu comportamento no decorrer da trama. Arthur não chega a ser um psicopata, pois consegue sentir compaixão: cuida da mãe tão perturbada quanto ele. E como todo psicótico, encontra fuga numa realidade paralela. Quando assiste, por exemplo, ao seu talk show preferido, chamado Live With Murray Franklin, imagina-se dentro do programa. Delira e encontra no apresentador  (interpretado por Robert De Niro) o pai que nunca teve. O mundo de Arthur está em vias de explodir quando perde o emprego, momento em que seu alterego passa a dominar.

O turning point acontece quando ele descobre a verdade sobre sua mãe, sobre o seu passado, sua doença, sobre o pai que nunca conheceu e que poderia ser o mesmo pai de Bruce Wayne, o Batman, super-herói nascido em berço de ouro. Thomas Wayne, bem ao estilo Donald Trump, é candidato a prefeito de Gotham e se refere aos pobres como sendo palhaços. O filme, aliás, faz um paralelo surpreendente com a história de Batman e confronta as duas personagens, dando uma suposta prévia do novo filme sobre o Homem-Morcego.

Na mente do Joker (o nome original do Coringa, em inglês), Arthur passa do homem ridicularizado, vítima de chacota e agressão, ao palhaço vingativo, terrorista. Sua satisfação vem através da violência. Em vez de estourar seus miolos, Arthur decide eliminar quem o ridicularizou. E poupa aqueles que o trataram bem, na maioria das vezes também minorias.

Cenas chocantes não faltam no filme, que alimentam a polêmica de fomentar atos de violência. Entretanto, o roteiro consegue a proeza de, em algumas delas, nos fazer rir com uma certa culpa por conta da atitude perturbada do protagonista. Phillips e Phoenix transformam em arte cenas de dança em que o Coringa comemora e parece emular Carlitos, incorporando gestos de tai chi. Aliás, o balé do Coringa foi feito de improviso. Joaquin e Todd não gostaram do primeiro resultado e o ator, gênio, começou a dançar, o que rendeu uma cena de beleza poética e transformou em marca registrada desse Joker.

A tensão é mantida do início ao fim, garantida pela riqueza da personagem e o brilhantismo do ator. Como é possível esperar qualquer coisa da mente de um psicótico, há tomadas tão carregadas de suspense que o espectador sente aquele frio na espinha. Somando a isso, a trilha sonora do filme é fundamental na manutenção dessa condição de ansiedade e expectativa. Muitas vezes, por si só, uma canção é capaz de dar sentido à determinada sequência. Como “Send In The Clows” (gravada originalmente por Frank Sinatra e interpelada por uma das vítimas do Coringa) e “Smile”, de Chaplin, sobre quem há faz várias referências durante esta história (o homem por trás de Carlitos era um gênio, filho de mãe doente mental e que acabou tendo fama de pedófilo).

Além de close-ups reveladores e movimentos de câmeras sempre em sintonia com o tom sombrio do filme, Phillips também faz uso de elementos não verbais para mostrar o conflito de personalidade e a angústia de Arthur. Exemplos disto são as cenas em ele aparece numa escadaria, sinônimo de verticalidade, representando os planos do espírito, da mente, a ligação entre o céu e a Terra. A trama, aliás, é tão bem costurada que o espectador não consegue definir quais são momentos de delírio e sanidade da personagem até que, quase na metade do filme, um flashback desnecessário surge como uma explicação para os improváveis desatentos.

Muito mais que a história de um conflito pessoal, Coringa é a metáfora de uma sociedade que caminha para uma psicopatia, na qual seus cidadãos usam da violência, desprezo, abandono para resolver diferenças e exigir seus direitos, num mundo em que a raiva toma conta e os fins justificam os meios. Essa sociedade exclui, ignora, marginaliza e trata essas pessoas como meros clowns.

Quando o protagonista se transforma em vigilante, há referências claras a Guy Fawkes e críticas evidentemente políticas a injustiças sociais, como o fato da extinção do serviço social que garante os remédios de Arthur.

Coringa é um soco na cara. Pisa na ferida e escancara a violência de modo brutal, pura, ácida, nua e crua. É um papel tão forte, poderoso, trágico que só um Phoenix (irmão do ator River, morto por overdose em 1993, aos 23 anos de idade) para encará-lo de forma esplêndida. O ator emagreceu 23 quilos para encarnar o vilão e lembra Christian Bale em O Operário (Bale, aliás, foi Batman nas telas). Nessa nossa sociedade delirante, nem todos são psicóticos, mas pobres mortais são, sim, todos palhaços.

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Represálias

Por evocar a violência e transformar o vilão em herói, embora a Warner negue isso, o filme vem sofrendo represálias e chegou a ser proibido em Aurora, cidade norte-americana onde um rapaz supostamente inspirado no Coringa abriu fogo numa sala de cinema matando doze pessoas em 2012. O medo é que este novo filme inspire novas tragédias. O diretor Todd Phillips, porém, diz que não é justo fazer essa associação. “É um personagem de ficção num mundo fictício que existe há 80 anos”, justificou Phillips numa entrevista.

A Warner divulgou um comunicado respondendo a uma carta escrita por familiares do massacre de Aurora, enfatizando que violência por arma de fogo é um assunto crítico e que o estúdio tem uma longa história de doações a vítimas de violência, incluindo esta cidade do estado do Colorado. “Ao mesmo tempo, a Warner Bros acredita que uma das funções da arte de contar histórias é provocar diálogos difíceis sobre questões complexas. Não se engane: nem o personagem fictício Joker, nem o filme, é um endosso de qualquer tipo de violência no mundo real. Não é esta a intenção do filme, dos cineastas ou do estúdio manter esse personagem como um herói”, declarou a empresa.