Music

Caetano Veloso – ao vivo

Ao lado dos três filhos, cantor comemora 78 anos fazendo da tão esperada live um doce acontecimento musical em meio à pandemia

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Globoplay/Reprodução

live de Caetano Veloso não foi qualquer coisa: foi um acontecimento. Depois de meses tentando convencer o baiano a se apresentar em tempo real, Paula Lavigne, empresária e companheira do artista, fez valer seu poder de persuasão – que já dura anos – e conseguiu que Caetano fizesse um show quase todo acústico ao lado dos filhos para comemorar seus 78 anos de vida, no último dia 7 de agosto e às vésperas do dia dos pais.

Às 21h30, a família Teles Veloso abriu a porta de casa para os convidados conectados no serviço de streaming Globoplay (com sinal inclusive para não-assinantes, vale ressaltar), indo na contramão de outros artistas, como Milton Nascimento e Gilberto Gil, que fizeram lives pelo YouTube. O cenário não deixou de seguir a grandiosidade de seus shows em teatros: Caetano e os filhos Zeca (à direita), Moreno e Tom (à esquerda), posicionaram-se como na turnê Ofertório, só que à frente de uma estante colossal. Atrás dos quatro, retratos, DVDs de filmes prediletos, coleções de CDs (como Chico Buarque), a Bíblia Sagrada (o baiano é ateu; Paulinha, evangélica), toca-discos e livros, muitos livros. Um pouco do acervo que preenche uma das mentes mais profusas da intelligentsia brasileira, apesar do cantor sempre se esquivar do título de intelectual.

Caetano é um pensador popular, que, desde o início da pandemia, virou hit nas redes sociais. Filmado pela insistente Paulinha, tornou-se o rei da dupla paçoca & kombucha. Deixou a vaidade de lado, aparecendo humildemente de pijamas ao estilo João Gilberto, ora deitado na cama assistindo à apresentação dos Rolling Stones no evento on-line One World Together at Home, ora na sala tocando violão no sofá amarelo. Surgiu como um vovô babão, ninando docemente o netinho recém-nascido, filho do caçula Tom.

À medida que divulgava os vídeos caseiros informais, a eterna Paulinha lançou a campanha #LiveALenda. Seria um exagero chamar Caetano de lenda, afinal?

Não, não é. Concorde-se ou não com seu posicionamento político-ideológico, fato é que a genialidade e contribuição artística de Caê transcendem qualquer opinião. Basta lembrar que a música popular brasileira é dividida entre antes e depois da Tropicália, quiçá o movimento artístico-musical mais original da cultura brasileira. Suas canções são objeto de análises semântico-discursivas em salas de aula Brasil afora e apreciadas por gênios da música pop internacional como David Byrne e Beck.

Caetano sempre foi um crítico de cultura, contraditório por natureza, apaixonado por artes (sobretudo o cinema) e nunca deixou de mostrar sua indignação pelas injustiças sociais desde a época dos festivais – quando ele cobrava a reação dos jovens que “queriam tomar o poder”. Como sobrevivente da ditadura e do exílio, Caetano tem respaldo e direito de se manifestar e discursar como bem entende. A diferença é que ele já não precisa gritar. Aos 78 anos, sussurra e canta sua revolta em modo acústico. Assim como fez em “Podres Poderes”, canção-manifesto que não poderia deixar de ser lembrada na live, cujo set list contou com vários de seus sucessos, a maioria espalhada entre as décadas de 1970 e 1990. Muitos deles inseridos em novelas e minisséries da Globo, como a primeira do repertório do show, “Milagres do Povo”. Aliás, só mesmo um milagre para nos salvar deste ano pandêmico.

Tranquilo e sereno, Caetano continuou passeando pelo seu repertório com uma série de canções-homenagem. “Tigresa”, composta para uma personagem vivida em novela por Sônia Braga; “Sampa”, uma declaração de amor para a cidade de São Paulo; “Cajuína”, sobre a morte de Torquato Neto; “Leãozinho”, que feita para o baixista Dadi (Tribalistas, A Cor do Som, Novos Baianos). E por falar em Novos Baianos, ao cantar “Coisa Acesa”, ele lembrou merecidamente Moraes Moreira, morto após um infarto no último mês de abril.

Pela primeira vez, cantou “Pardo”, que compôs para a talentosa Céu. Seus filhos também contribuíram com obras autorais. “Talvez”, lançada pelo baiano nas plataformas digitais no dia da live, foi cantada em dueto com seu autor Tom. A pedido da mãe, Zeca comandou a tocante “Todo Homem”, feita pelos quatro para a turnê Ofertório. “Sertão” é outra que veio deste show. Seu coautor Moreno encerrou a live com a sua animada “How Beautiful Could A Being Be”. Também em inglês, Caetano mandou uma inesperada “Nine Out Of Ten”, do conceituado álbum Transa (lançado em 1972 e gravado no ano anterior, ainda durante o exílio em Londres), na qual ele dispara: “I’m aliiiiiive”.

Como todos esperavam, Caetano aproveitou o espaço na mídia para tecer críticas ao (des)governo federal. Lamentou o fato de, no meio de uma pandemia, o país ter há três meses um ministro da saúde interino e um ministro do meio ambiente “que é contra o meio ambiente”. Lembrando os indígenas mortos pela covid-19, entoou “Um Índio”.

Além disso, falou um pouco sobre o seu próximo projeto, em parceria com o Balé Folclórico da Bahia, que está pausado por conta da pandemia. Ao perguntar como poderiam ser feitas as doações para o grupo, por meio do link de seu Instagram, Caetano brincou: “preciso ler a minha bio”. Moreno teve que explicar a painho o que significava isso.

A live deixou evidente que Caetano foi capaz de construir um legado cultural com sua obra, filhas-canções e filhos de carne e osso. Um alento para o futuro da MPB. E quando o pai errava a letra de alguma canção, Moreno o ajudava, com sua tranquilidade de um monge.

Enquanto o futuro está nas mãos dos bioquímicos e aguarda pelo milagre da vacina, “Desde que o Samba é Samba” (gravada no álbum Tropicália 2, lançado em 1993 em dupla com Gilberto Gil) se torna um mantra capaz de deixar nossa cuca e mundo um pouco mais odara. Seus versos dizem: “Solidão apavora/ Tudo demorando em ser tão ruim/ Mas alguma coisa acontece/ No quando agora em mim/ Cantando eu mando a tristeza embora”.

Set list: “Milagres do Povo”, “Tigresa”, “Coisa Acesa”, “Pardo”, “Sampa”, “Pulsar”, “O Homem Velho”, “Luz do Sol”, “Um Índio”, “Cajuína”, “Talvez”, “Queixa”, “Sertão”, “Reconvexo”, “Nu com a Minha Música”, “Desde que o Samba é Samba”, “Trilhos Urbanos”, “Diamante Verdadeiro”, “Podres Poderes”, “Nine Out Of Ten”, “Qualquer Coisa”, “Tá Combinado”, “Todo Homem”, “Odara”, “Leãozinho”, “Sozinho” e “How Beautiful Could a Being Be”.

Comics

Mort Walker

Oito curiosidades sobre o criador do Recruta Zero e o cartunista com a produção de maior longevidade dos quadrinhos

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Texto por Abonico R. Smith

Foto: Bob Daugherty/Associated Press/Reprodução

No último sábado, dia 27 de janeiro de 2018, a agência Associated Press comunicou ao mundo a morte de Mort Walker, por pneumonia. O cartunista norte-americano tinha 94 anos, ainda estava na ativa e há quase 68 fazia, sem interrupção, as histórias de seu mais famoso personagem, o Recruta Zero. Era auxiliado, á havia algumas décadas, pelos dois filhos Brian e Greg. Eles anunciaram que irão dar prosseguimento ao trabalho do pai.

Em sua homenagem, o Mondo Bacana publica oito curiosidades sobre o artista, batizado Addison Morton Walker e que detinha o recorde de permanência de produção contínua de um trabalho em quadrinhos de um mesmo trabalho – inclusive batendo seu principal “rival” na área, Charles Schulz, o criador de Peanuts. As tiras diárias do recruta Zero começaram a ser publicadas em jornal no dia 4 de setembro de 1950. De lá para cá elas alcançaram 200 milhões de leitores em 1,8 mil jornais de mais de 50 países, com extensão para o formato de histórias em quadrinhos, desenho animado e até selo do serviço postal dos Estados Unidos.

Inspiração na vida real

As histórias do recruta se passam no Camp Swampy, quartel militar inspirado no Fort Crowder, construído durante a Segunda Guerra Mundial no sudoeste do estado de Missouri. Walker serviu ao exército dos EUA lá em 1943, quando foi enviado em uma tropa para a Itália. Chegou ao posto de tente, quando acabou sendo dispensado em 1947. Muitas das referências às burocracias e trapalhadas internas vieram de observações e experiências reais do cartunista. A década de 1960 também trouxe bastante inspiração, devido ao envolvimento de seu país na Guerra Fria e na Guerra do Vietnam.

Início universitário

Depois de se graduar na universidade de Missouri em 1948, onde já era chefe de arte de uma revista de humor feita pelos alunos da instituição. Mort desenhava desde a pré-adolescência. Aos 11 publicou seu primeiro cartoon e dois anos depois passou a realizar trabalhos periódicos na área. Aos 15 acabou contratado por um jornal para publicar sua primeira tira de HQ. mudou-se para Nova York para tentar a vida na área. Em setembro de 1950 começou a publicar no Saturday Evening Post as tiras de Spider, um estudante universitário que primava pela preguiça mas sempre conseguia se dar bem através de astúcia e esperteza para driblar as sanções e perseguições.

Mudança bem-sucedida

Spider não fazia muito sucesso perante os leitores e Walker resolveu adaptar a sua criação a um detalhe do momento nos EUA. Aproveitando a onda de nacionalismo que se abatia sobre o país por cauda Guerra da Coreia, em 1951 ele “alistou” o personagem nas Forças Armadas, transformou-o em soldado raso do exército e trocou seu nome (e o da HQ) para Beetle Bailey. Conseguiu renovar seu contrato com a distribuidora de quadrinhos King Features Syndicate, do magnata das comunicações William Randolph Hearst, e passou a publicar em diversos jornais norte-americanos.

Personagens coadjuvantes

O Sargento Tainha (Sgt. Snorkel, no original) é o eterno antagonista do recruta Zero nas suas histórias. Procura sempre ser linha dura com o recruta preguiçoso e seus demais companheiros. Entretanto, Zero sempre acha uma maneira de driblar seu superior imediato. Nisto reside o mote principal das histórias. Tainha também tem um cachorro buldogue chamado Otto, que, por sinal, tem a mesma cara e o temperamento do dono. O intelectual Platão (Plato), o tapado Dentinho (Zero), o jogador Cosme (Cosmo), o revoltado Roque (Rocky) e o mulherengo Quindim (Killer) são os soldados que estão sempre ao redor de Zero (Bailey) nas histórias.

Politicamente incorreto

Alguns tipos secundários do quartel, entretanto, formavam a deixa para Wlaker exercer a sua veia de sátira e contestação sexual. O cozinheiro Cuca (Cookie) é um destes personagens. Além de ser mestre em fazer pratos que acabam com o apetite de toda a caserna, tinha sempre um cigarro junto à boca, inclusive deixando cair as cinzas nas panelas. Um dos dois tenentes, Mironga (Lieutenant Flap) foi criado em 1970 e é o primeiro personagem afro-americano retratado em uma HQ diária norte-americana. Sua marca registrada, aliás, é o cabelo black power, estilo bastante comum entre os negros da época. Já o General Dureza (Halftrack) é a representação da inaptidão completa. A esposa Martha faz dele de gato e sapato, o Pentágono nem lembra que seu quartel existe, os militares sob seu comando não o respeitam e quase sempre aparece nas histórias entregue à bebida. Uma história acabou não publicada por um jornal de Minneapolis por ser tachada de “sexista”. Na verdade, era apenas mais uma das muitas investidas de assédio sexual do general à sua secretaria, a loira Dona Tetê (Miss Buxley), cujo combinado de decotes, minissaias e rebolados atiça os desejos da macharada inteira do Swampy e a torna “mais competente” do que a colega que tem a mesma função. Mas também era o ano de 1981 e o assunto estava bastante longe de figurar na pauta das conversas e jornais do dia a dia.

Parceria com outro mestre

Em 1954 Walker criou a irmã de Bailey e passou a desenvolver, paralelamente, outra gama de histórias. Com o nome de Hi and Lois (publicado no Brasil sob o nome Zezé & Cia), o spin-off de Recruta Zero era uma publicação centrada em uma família, mais voltada para o universo classe média norte-americano. Mort apenas escrevia os roteiros. Quem assumiu os traços foi o desenhista nova-iorquino Dik Browne, que se tornaria famoso mundialmente bem depois, ao criar as história do viking Hagar, o Horrível em 1973.

Humor bíblico

Depois de explorar o universo militar e o das famílias classe média, Mort criou em 1968 uma terceira HQ, desta vez com inspiração nas religiões pentecostais que já haviam se transformado em uma forte instituição em seu país. Com base em um famoso trecho da Bíblia, o cartunista, assinado apenas com o primeiro nome Addison, lançou Boner’s Ark, a sua versão bem-humorada da mítica Arca de Noé. Ali ele retratava uma variada mistura de animais, todos monocromáticos, presos em um barco e constantemente em busca de uma terra. A tal Arca, aparentemente pequena vista por fora e inacreditavelmente gigante por dentro, era conduzida pelo Capitão Boner e possuía quartos de dormir para todos os bichos, além de um cinema, um restaurante (dirigido pelo hipopótamo), um pub e um campo de golfe (?!?!).

Em defesa da classe

Além de ter ocupado temporariamente o cargo de presidente do Sindicato dos Cartunistas dos EUA, em 1974 Mort Walker criou o National Cartoon Musem, dedicado à preservação e exibição de trabalhos de desenhistas de quadrinhos (revistas e tiras de jornais) e animação. Na verdade ele já tinha iniciado em 1940 uma grande coleção particular, iniciada em 1940. O material de acervo – com valor avaliado em 20 milhões de dólares – compreendia, entre outras coisas, 200 mil originais, vinte mil livros e mil horas de fitas e filmes. O item mais importante era o primeiro desenho do personagem Mickey Mouse, feito por Ub Iwerks (que trabalhava para Walt Disney nos anos 1920) para o curta-metragem Plane Crazy, em 1928. Grande parte disso veio de doação de importantes artistas da área, como Chester Gould (criador de Dick Tracy), Hal Foster (Príncipe Valente), Stan Lee (super-heróis da Marvel) e Dik Browne. O museu começou na cidade de Stamford, em Connecticut. Depois sua sede, em virtude de apoios e patrocínios, foi transferida para Greenwich (no mesmo estado), Port Chester (Nova York) e terminou em Boca Ratón (na Florida) até ser fechado em definitivo ao público em 1992. Até que, em 2008, Walker aceitou uma oferta de transferir todo o material para a universidade do estado de Ohio.