Drama protagonizado por Sidney Poitier discute o preconceito racial no sul dos Estados Unidos em mostra clássica do festival Olhar de Cinema
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: United Artists/Divulgação
O Olhar de Cinema, que é o Festival Internacional de Cinema de Curitiba, foca em novos olhares e lançamentos em suas mostras principais, mas também oferece a icônica Olhares Clássicos, revisitando a história do cinema em busca de recortes dignos de nossa percepção. Neste ano, além de Jeanne Dielman e A Rainha Diaba (ambos com críticas publicadas no Mondo Bacana – leia aqui e aqui, respectivamente), a seleção contou com o casal Straub-Huillet, Carlos Saura e No Calor da Noite (In The Heat Of The Night, EUA, 1967 – United Artists), clássico drama policial de Norman Jewison com Sidney Poitier.
Primeiro filme cuja fotografia ilumina corretamente a pele negra, esta é a história do policial Virgil Tibbs (Poitier), que é detido e maltratado pelo departamento de polícia de Sparta, uma pequena cidade no sul racista dos Estados Unidos. A contragosto, o chefe Gillespie (Rod Steiger) aceita a ajuda de Tibbs em um caso complexo que se mostra incapaz à equipe amadora da cidade: o empresário Colbert, que estava prestes a inaugurar uma fábrica no município, é encontrado morto na madrugada.
Sétimo dirigido por Norman Jewison em apenas cinco anos de carreira, No Calor da Noite é composto pelo melhor da narrativa clássica norte-americana, amparada pelas composições eletrizantes de Quincy Jones e a fotografia de Haskell Wexler, que abusa de um claro-escuro tipicamente neonoir e torna a câmera sempre parte da ação do filme. No solo dos descendentes dos confederados, os espaços fechados e sombras duras oprimem a figura negra impassível que é Poitier. Não à toa, demoramos quase metade do filme para vê-lo nas ruas de Sparta durante o dia.
A atuação de Poitier é central e sua seriedade e assertividade contrastam em tema àquilo que o longa-metragem tenta exprimir em forma. Tibbs só consegue fazer seu trabalho porque ele interessa à esposa de Colbert (Lee Grant) – ou seja, o racismo só “pausa”, pois não acaba, por conveniência da classe dominante. Este é um ponto-chave, pois No Calor da Noite não é um filme que se ancora apenas no conflito racista entre Norte e Sul. Mesmo após a Guerra Civil americana, que termina com a dissolução da confederação escravagista, os estados perdedores continuaram com uma cultura largamente agrária e racista. Por outro lado, os estados do Norte gozaram de maiores avanços socioeconômicos, com ênfase à segunda fração desse termo.
Senhor Tibbs, como é chamado em seu estado natal, tem mais experiência, mais cultura e, claro, muito mais salário que os policiais de Sparta. É a mão preta de Sidney Poitier que desvela os mistérios da trama e seu olhar irascível que insiste em corrigir os erros da incompetência branca. Enquanto isso, o povo negro do município é visto em situações marginais, quando não na lavoura de algodão de Endicott, um dos antagonistas do filme e claro ex-senhor de escravos da região. A fábrica de Colbert, que também veio do Norte, promete mudar essa dinâmica, garantindo 50% dos postos de trabalho para pessoas pretas. De um jeito ou de outro, a lógica colonial sulista é ameaçada pelo avanço imparável da revolução econômica do pós-guerra nos Estados Unidos. O capital é uma força impassível, que dissolve, de um jeito ou de outro, a marginalidade negra na região – mas só o faz para beneficiar-se, fazer uso da mão de obra.
Este é o grande trunfo de No Calor da Noite, sua capacidade de explicitar um conflito central à industrialização americana do século 20. Aqui no Brasil, o filósofo Roberto Schwarz coloca essa tensão entre metrópole e colônia como um dos mais importantes para a definição do que é ser brasileiro. Se adotamos a hipótese deste filme, os Estados Unidos já tomam essa questão como resolvida: o que importa, acima de tudo, é que todos estejam à mercê do capital da forma que mais lhe convém. No fim, o racismo só “se resolve” quando beneficia a elite branca.
Pré-indicado ao Oscar em 2023 faz o retrato doloroso da árdua luta de uma família negra de classe média baixa brasileira contra as dificuldades diárias
Texto por Taís Zago
Foto: Embaúba Fimes
O encanto e a reflexão que habitam as pequenas histórias são o chamariz principal dessa força-tarefa de, praticamente, um homem só e seus amigos. Gabriel Martins é o diretor, produtor e roteirista dessa pequena pérola do cinema nacional financiada por meio de editais e que levou quatro anos para chegar aos nossos cinemas. Marte Um (Brasil, 2022 – Embaúba Filmes) nasceu de uma ideia que Gabriel teve em 2014 e foi filmado no final de 2018 – portanto, antes da pandemia e do agravamento da crise econômica e social que nos assola ainda hoje. A vida das quatro pessoas de uma família negra de classe média baixa da cidade mineira de Contagem, contada nos meses entre a vitória nas eleições e a posse do presidente Jair Bolsonaro, é cheia de verdades incômodas e marcada por fortes laços de ternura.
Wellington Martins (primorosamente interpretado por Carlos Francisco) é um porteiro, ex-dependente de álcool e pai de dois filhos, que aparentemente vive de forma conformada e pacata. Ele se adaptou à rotina do racismo institucional brasileiro, fazendo limonada dos limões azedos que aparecem constantemente em seu caminho. Como a maioria dos brasileiros, Wellington sonha com um futuro brilhante para suas crianças, trabalha com afinco e dedicação e fecha os olhos, mesmo que não completamente, para os abusos diários das relações patrão-funcionário que são evidentes em uma hierarquia torta do abuso de pequenos poderes. A dinâmica entre ele e a síndica do prédio onde bate ponto é uma perfeita caracterização desse processo. Seus colegas, não conformados, apontam os ditos abusos, mas Wellington apenas sorri com um “deixa disso”.
Tércia (Rejane Faria), a matriarca dos Martins, é uma diarista que trabalha para um influencer. À primeira vista, parece receber respeito e reconhecimento pelo seu trabalho, mas logo percebemos que nem tudo são flores quando um manda e o outro precisa obedecer. A filha mais velha do casal, Eunice (Camilla Damião em uma espetacular estreia como protagonista), cursa direito, é tutora e sonha com a independência da casa dos pais. Já o caçula da família Deivinho (interpretado pelo ator Cícero Lucas em seu primeiro papel), vive dividido entre seguir o sonho do pai, que almeja para ele uma carreira no futebol, sua paixão por astrofísica e o sonho de participar de uma missão a Marte. Daí o título Marte Um (Mars One, em inglês), que fora o nome dado à primeira expedição do homem para Marte, planejada para 2030 mas cancelada em 2019.
Gabriel Martins, não contente em já acumular várias funções na produção, também selecionou pessoalmente o casting e trabalhou na edição. Segundo Martins, Marte Um é, em parte, autobiográfico, principalmente nas representações do pai Wellington e do filho Deivinho. É um desses filmes em que o coração do realizador se derrama na tela, e nós, como público, sentimos isso. Quer seja nos conflitos de Deivinho sobre seu futuro profissional ou na batalha de Eunice para assumir seu relacionamento com uma mulher diante de seus parentes. Nas expectativas que Wellington deposita em Deivinho ou na crise existencial que abala até mesmo o entusiasmo natural de Tércia. São todos temas pesados e de difícil abordagem, principalmente para uma família de subúrbio brasileira, a qual muitas vezes não se permite o olhar para dentro de si mesma e segue a luta contra o olhar repreendedor e julgador dos mais bem situados economicamente. E essa é a delicadeza da obra de Gabriel: um olhar individual, um olhar mais profundo nos desejos das pessoas, em seus sonhos, em seus sentimentos.
É impossível sair de Marte Um sem lágrimas nos olhos e um sorriso no rosto. Com estreia no Sundance Festival de 2022, onde foi muito elogiado, e premiado no Festival de Cinema de Gramado, o longa-metragem é o nosso candidato escolhido para buscar a vaga entre os conconrrentes à premiação do Oscar de filme estrangeiro em 2023. Uma obra feita de forma independente, de baixo custo, por um diretor apaixonado, sobre um assunto que nunca deixa de ser atual no Brasil racista e classista que vivemos ainda hoje.
Para mim, Marte Um é, também, o melhor filme nacional lançado até agora nesse ano. Consegue unir crítica social e sensibilidade sem perder de vista a esperança e sem fazer concessões a preconceitos.
Dezenove minutos de antigo filme sobre viagem familiar à Africa do Sul do apartheid levam a um longa de formidável investigação política
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Olhar de Cinema/Divulgação
Já assistiu a alguma coisa que te instigou a pausar e fazer uma investigação no Google? Aquela imagem de arquivo ou vídeo antigo repletos de rostos sem nome, retratando um passado misterioso mas obviamente importante? A diretora Janaína Nagata passou por isso ao comprar um carretel de filme que continha um filme particular. Essa investigação virou, claro, Filme Particular (Brasil, 2022 – Olhar de Cinema), longa que figurou a mostra competitiva da décima primeira edição do recém-realizado festival curitibano Olhar de Cinema.
Esse é um desktop movie: toda a ação está contida pelas bordas de uma tela de computador. O dispositivo não dá as caras até o vigésimo minuto de Filme Particular, que denuncia a investigação em letreiro antes de rodar os 19 minutos da viagem de uma família branca à África do Sul sessentista – ou seja, no auge do apartheid. Quando a tela trava e uma aba do navegador Google Chrome se abre, um burburinho toma a sala de cinema – ouve-se até um tímido “que m* é essa?”. O susto é rapidamente substituído por uma completa imersão no percurso do mouse de Janaína e se engana quem espera uma incursão entediante a um passado enfadonho.
O senso de humor de Filme Particular é muito aguçado, surpreendendo com suas locuções do tradutor do Google e tramas interrompidas por um paywall. Após a primeira projeção do filme de 19 minutos, acompanhamos passo a passo o desvelamento da profunda história da costa leste sul-africana. Se não podemos saber quem são os familiares que registram o empreendimento turístico racista, podemos ver o eco da opressão em vídeos de YouTube astutamente posicionados ao lado da montagem original. Aos poucos, saímos do safari à mística histórica do milionário bruxo Khotso Sethuntsha, culminando em uma investigação histórico-política de seu mais influente cliente: Hendrik Verwoerd, o neerlandês que marca a História como o arquiteto do apartheid.
Filme Particular é uma deliciosa experiência que leva do riso à angústia com rapidez ímpar, ancorada na sensação de que o espectador é agente da ação, analisando os links em que o mouse clica, conjurando qual será a próxima estratégia. Se não tivesse a exibição do longo vídeo de base, cuja tensa trilha composta pela produção do longa-metragem torna tenso e por vezes maçante, esta obra carregaria consigo, também, um frescor empolgante.Sobreviva aos primeiros vinte minutos, portanto, e conheça um pouco mais de como a aparente particularidade de um filme de viagem pode esconder uma trama política formidável – reiterando que, no fim das contas, tudo que fazemos é político e está contido nas implicações da política.
Uso do jazz nos salões dos ricos mascara problemas de um roteiro que não sabe explorar o choque social da Nova York dos anos 1920
Texto por Luca Passos
Foto: Netflix/Divulgação
O jazz, um estilo musical essencialmente popular que emergiu das classes mais pobres e marginais da vida urbana estadunidense, surgiu de uma interseção cultural em que se encontravam os escravos e ex-escravos do sul do país e, com o passar dos anos, ganhou uma dimensão quase erudita, sendo aceito nos mais requintados salões e bailes das classes média-alta e alta daquele país. Passou a ser elegante ouvir música sincopada, ela se tornou o som oficial dos loucos anos 1920.
A atriz britânica Rebecca Hall (conhecida por Vicky Cristina Barcelona, de Woody Allen, e Homem de Ferro 3) faz sua estreia na direção com Identidade (Passing, EUA/Reino Unido/Canadá, 2021 – Netflix), que também foi escrito e produzido por ela. Baseado em um romance homônimo escrito em 1929 por Nella Larsen, o filme se desenvolve em um fim de ano nova-iorquino da mesma década. Depois de caminhar por uma das regiões mais abastadas da cidade à procura de um presente para seu filho, Irene Redfield (Tessa Thompson) se refugia da opressão urbana em um café num saguão de hotel e ali encontra Clare Bellew (Ruth Negga), uma amiga de sua infância que há muito não vê. A base da trama é o choque entre essas duas personagens. O termo usado como o título original se refere a um fato comum entre as pessoas negras durante a era em que imperava a lei segregacionista de Jim Crow nos Estados Unidos: muitas delas “se passavam” por brancos, ato que alterava substancialmente sua realidade social. Clare é uma mulher que se passa por branca e vive uma vida abastada, quase afastada da realidade. Irene, por sua vez, ainda vive no Harlem, bairro historicamente negro de NY. Por mais que pudesse se passar por uma branca, não o faz – pelo contrário, é ativa dentro da comunidade negra de sua região.
O primeiro reencontro entre as duas, com uma intimidade interrompida pelo marido de Clare (Alexander Skarsgård), um típico ricaço nova-iorquino racista alheio à origem de sua esposa, marca profundamente ambas as protagonistas. Acompanhamos a vida de Irene, pequenas amostras de seu dia a dia, sua relação com o marido Brian (André Holland), os dois filhos (Justus David Graham e Ethan Barrett) e a empregada, Zu (Ashley Ware Jenkins). A casa da família Redfield é grande e eles vivem relativamente bem, porém o incômodo de Irene se faz latente desde o começo. Na verdade, há algo que a tira da realidade, que a faz fixar seus olhos no vazio em diversos momentos, algo que fica oculto para o público: um mal-estar geral que nunca é satisfatoriamente abordado. No entanto, ela procura uma paz mínima nas coisas que preenchem seu cotidiano, até que este é revirado por uma visita de Clare à sua casa, que é, na verdade, quase uma invasão.
O filme, portanto, tem um argumento excelente, fecundo de possibilidades de exploração e desenvolvimento tanto das personagens quanto da teia social na qual elas estão envolvidas. No entanto, é um enredo difícil para que se trabalhe um tema complexo, que traz uma necessidade de uma visão única, corajosa e tenaz, que não subscreva a cacoetes quaisquer, com perigo de perder completamente a mão do filme, tornando-se um entre muitos. Isso é, justamente, o que acontece.
Há diversos caminhos para explicitar a mornidão com que o longa trabalha um tema que é tudo, menos morno. Os personagens que gravitam as duas protagonistas são, na melhor das hipóteses, pífios. O marido interpretado por André Holland é, de longe, o mais carismático, em grande parte por mérito do ator, que trabalha diálogos banais com uma desenvoltura cativante e tem alguns trejeitos que fazem com que a história caminhe (em especial na desconfiança progressiva que Irene tem de relacionamento com a amiga). O marido de Clare, interpretado por Alexander Skarsgård, é sintetizado nas palavras que usei sobre ele há dois parágrafos. Nada mais se tem a dizer sobre ele, que não serve sequer como contraponto a outros personagens. Hugh Wentworth (Bill Camp), escritor amigo dos Redfield (e interesse intelectual de Clare), é um cara insuportável, intelectualizado, sempre tentando explicar para os outros o mundo que os cerca, com “sacadinhas” espirituosas e uma falsa autoconsciência que só poderia ter saído de um roteiro mal delineado, que precisa de verborragia explicativa (mesmo que seja para “sabiamente” subvertê-la) para ter condução. Zu, personagem de Ware Jenkins, a empregada da família Redfield, é sub-aproveitada ao extremo. O comentário social que é uma mulher que não “passaria” como branca como empregada de uma que passaria é evidente, porém não passa disso: algo que está no filme e nem espacialmente Rebecca Hall é capaz de inserir um comentário digno sobre a situação (o pior é constatar o potencial perdido).
As protagonistas passam metade de suas interações projetando diálogos de um algoritmo que produz frases tocantes e a outra metade com falas artificiais socialmente engajadas, coisas que até um HAL 9000 teria a sensibilidade poética de não dizer. A ambiguidade da personagem de Clare – uma mulher que largou seu passado, aproveita sua riqueza material, mas que volta para seu lugar de origem, mesmo com todos os riscos que isso acarreta – e as dúvidas de Irene – que vê sua vida mudar constantemente e ser “descartada” por uma mulher mais desenvolta e mais branca que ela, tanto por parte de seu marido quanto de seus filhos – causam tanta emoção na roteirista quanto devem causar no público: zero. O filme é feito sem emoção alguma, sem adequação à própria história que pretende contar.
As personagens principais têm sentimentos tão indefinidos que a diretora parece ficar na dúvida se os trabalha de forma visual ou dialógica. Na falta de resolução, ela faz os dois. Pessimamente. Clare e Irene são o produto da sociedade que as gerou e de seus anseios mais internos. A exposição do racismo intrínseco da sociedade estadunidense se dá do modo mais didático possível, interrompendo qualquer vínculo com as personagens e se intrometendo nos diálogos de forma invasiva. Se o problema é tão entranhado na sociedade, por que não mostrá-lo de uma forma que privilegie a dimensão estrutural do problema, a razão calada? A demonstração das personagens é, quando feita, tosca: palavras quaisquer que não dão dimensão nenhuma de realidade às personagens e que não são ajudadas por duas atuações afetadas (obviamente tentando compensar por algo que as falas não têm).
Porém, o maior problema, é estético. O filme é elegante. A fotografia em preto-e-branco é por vezes estourada, por vezes bem contrastada, mas tudo isso faz um sentido com a atmosfera de cada cena. Uma atmosfera, que, no entanto, não é balizada em nada: é um desperdício de pensamento, de esforço para a construção de planos “bonitos”, agradáveis. Esse filme é, antes de tudo, um exemplo perfeito da “damienchazellização” (Damien Chazelle, diretor, ficou famoso com obras que se utilizam do jazz como motivo rítmico e temático, como Whiplash e La La Land, porém de uma maneira polida, enlatada) do filme por meio, sobretudo, desse veneno chamado elegância. Ela faz o público não pedir nada que ultrapasse um solo de sax distante, o aproveitamento inócuo da arquitetura estadunidense, superenquadramentos como mote estético, um pseudopsicologismo baseado em planos com pessoas de costas, closes e desfocalizações presunçosas que pretendem dar profundidade a personagens que são mais instrumentos inertes do que pessoas. É como se Hall quisesse que acreditássemos que Clare e Irene têm facetas incapturáveis pela câmera, apenas uma pequena parte delas é traduzível nessas imagens semigrandiosas, um uso espetacular da linguagem, que adensa o que não pode ser penetrado. Evidentemente, isso não existe em cinema.
Há uma cena em que a personagem Clare, antes de entrar num salão de jazz, passa, muito bem vestida, por uma fila de pessoas negras e pobres que esperam para poder entrar no mesmo recinto, e olha para elas com os olhos arregalados, como se fossem de outro mundo. Esse filme parece ter sido gravado com os olhos dela nessa cena, olha para o absurdo da realidade, mas mantém a consciência de ser elegante. E digo isso sem querer dar a entender que ele tem o mínimo de empatia com a personagem.
Em Identidade, o uso do jazz nos salões dos ricaços dos anos 1920 se conjuga com o uso do jazz nos filmes algoritmizados e “relevantes” dos anos 2020. Uma cega e hipócrita ditadura da finesse.
A amazona Diana retorna às telas em história bastante fraca e confusa, o que acaba por ameaçar as expectativas para o próximo filme da trilogia
Texto por Ana Clara Braga
Foto: Warner/Divugação
Em 2017, Patty Jenkins apresentou ao mundo o primeiro filme solo da Mulher-Maravilha. O longa agradou público e crítica e criou altas expectativas para sua sequência. Depois de boatos e adiamentos, Mulher-Maravilha 1984 (Wonder Woman 1984, EUA/Reino Unido/Espanha, 2020 – Warner) estreou e, ao contrário do primeiro, passou longe de um consenso entre fãs e imprensa. O segundo filme da franquia é fraco, confuso e repete os mesmos erros do primeiro, mas sem o principal que fez o título de três anos antes gerar uma boa experiência: o carisma.
A primeira cena do filme é um flashback da infância da protagonista, quando ainda vivia em Themyscira, em que ela trapaceia em um jogo com outras amazonas. Com isso, aprende a importância da verdade. É isso? Sim, é isso. Os visuais são muito bonitos e a ação entretém, mas o formato sermão é meio esquisito. A segunda cena mostra Diana (Gal Gadot) já adulta, nos anos 1980, salvando pessoas de ladrões em um shopping center. A amazona esconde sua identidade heróica e torna-se uma espécie de justiceira silenciosa. Sem uniforme, trabalha lidando com antiguidades.
Se não tivesse 1984 no título, seria difícil precisar em que época a história está situada. Tirando alguns momentos como a cena do shopping ou quando o personagem de Chris Pine prova roupas, a ambientação é genérica. Aliás, continuando o tópico do visual, os pôsteres podem ter contribuído muito para a decepção com o filme. O novo uniforme, dourado, grandioso, com asas, é extremamente mal utilizado. Aparece por tão pouco tempo que não dá para entender porque foi parte tão importante da divulgação.
Steve (Pine) é um dos personagens principais do longa de 2017. A escolha para trazê-lo novamente ao elenco é difícil de justificar. Ele é divertido, mas a forma como seu personagem “volta” não é convincente. Se no primeiro filme tínhamos uma Mulher-Maravilha que discursou sobre não precisar de homens, na sequência temos outra que está disposta a sacrificar a vida de uma pessoa e prejudicar o destino da humanidade por outro. Confuso, não é? A mudança repentina de personalidade da personagem é difícil de engolir, é abrupta. O sentimento de luto de Diana deveria ter sido tratado de maneira diferente.
O grande vilão do filme é o ambicioso Maxwell Lorenzano (Pedro Pascal), que encontra uma pedra realizadora de desejos. A relíquia é chamada neste filme como “pata do macaco” – o que significa que na mesma medida que ela dá, ela tira algo. É nessa lógica que os grandes acontecimentos do filme se desenrolam. Por mais que seja interessante, torna-se forçado. Ver Maxwell induzindo as pessoas a dizerem o que desejam não é sutil nem para uma ficção.
Falando em sutileza, Patty Jenkins teve zero disso ao conduzir uma cena da Mulher-Maravilha salvando crianças em um Egito oitentista e fruto do imaginário racista estadunidense. Gal Gadot nasceu em Israel e nunca escondeu suas posições a respeito da Palestina. Colocá-la falando árabe, tirando crianças da estrada para que não fossem atropeladas por outros “egípcios sem coração” é falta de noção. A escolha por um ator e um personagem latinos para emular a megalomania de Trump também é uma falta de tato sem tamanho. A sorte é que Pedro Pascal é ótimo ator.
A primeira parte de WW84 (como o longa foi apelidado na internet) é muito abaixo do esperado. A química entre Pine e Gadot não se repete, a história ainda está se desenvolvendo e Pascal e Kristen Wiig acabam roubando a cena. A comediante, que manteve sua audição para o filme em segredo, interpreta a cientista Barbara Minerva, que torna-se a vilã Cheetah. Inicialmente tímida e desengonçada, após desejar a pedra mágica para ser mais igual a Diana adquire superpoderes. Como filmes de herói com dois vilões precisam balancear a história para não desperdiçar um destes personagens, infelizmente Cheetah é desperdiçada. Sua transformação chega tarde, dura pouco, não impressiona e deixa o desejo dela ter aparecido em outra obra.
A Mulher-Maravilha de 2017 encantou por mostrar a amazona conhecendo um mundo novo e se apaixonando por um humano. A narrativa da vilania humana era um bom caminho, um bom espelho – uma pena que, no final, o roteiro escolheu transformar o vilão em um deus. A mudança repentina de tom se repete na sequência de 2020. Quando o clímax do filme chega, somos surpreendidos com mais um sermão. Lutas? Estratégias? Uso da nova armadura? Não, conversa-clichê com o público. Essa é a grande arma usada pela heroína. Ela palestra sobre a importância da verdade. Isso já seria questionável, considerando que o principal defeito do vilão não era mentir e sim ser ambicioso e inescrupuloso. Contudo, o papo meia-boca para salvar o mundo se parece mais com Gal Gadot cantando “Imagine” com outros artistas do que uma heroína salvando o mundo.
Jenkins é uma boa diretora, mas precisa aprender a editar suas ideias. Um filme menor, mais contido, seria certeiro. A história expõe fraquezas de roteiro, de atuação, de edição e de efeitos especiais (a cena do laço da verdade repelindo tiros é muito mal feita!). Quem sabe se o enredo fosse a busca pela amazona perdida Asteria o resultado seria mais empolgante. Na era dos filmes de super-heróis, o melhor pode ser mirar em tramas simples e que encantem pelo desenvolvimento.
Não é injusto dizer que Mulher-Maravilha 1984 é decepcionante – pode-se falar muito de um filme quando sua melhor cena é a que vem após créditos. E mais um título já está confirmado, criando novas esperanças de uma história como a de 2017, mas mantendo o medo de uma como a de 2020. Fica a expectativa de uma aventura digna da heroína e que explique o porquê, em Batman Vs Super Homem, dela não ter qualquer lembrança de seu passado.