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Doutor Sono

Sequência da história de O Iluminado se equilibra entre a fidelidade ao livro de Stephen King e o universo criado nas telas por Stanley Kubrick

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Warner/Divulgação

Stephen King demorou 36 anos para lançar a sequência de O Iluminado, livro que originou um dos mais clássicos filmes de terror, dirigido pelo inigualável Stanley Kubrick e lançado em 1980. O tal iluminado do título é o garotinho de cabelo tigelinha Danny Torrence, de cinco anos de idade, que se muda com os pais Jack (Jack Nicholson) e Wendy (Shelley Duvall) para o Hotel Overlook, nas montanhas do Colorado, onde o pai vai trabalhar de zelador. Por conta de seus poderes paranormais, Danny vive rodeado por fantasmas que habitam o lugar e tem um amigo imaginário chamado Tony. No decorrer do filme, Jack fica completamente transtornado, a ponto de colocar a família em risco.

Além da atmosfera de suspense kubrickiana, o êxito de O Iluminado se deve a uma interpretação espetacular de Jack Nicholson. Quase quarenta anos depois, a sequência, Doutor Sono (Doctor Sleep, EUA, 209 – Warner), estreia nos cinemas com a assinatura de Mike Flanagan, que dirigiu, escreveu o roteiro e também editou o longa. Flanagan já havia trabalhado com a obra de King na adaptação de Jogo Perigoso e é uma espécie de faz-tudo. É cria do gênero de terror, e tem em seu currículo filmes como A Maldição da Residência Hill (2018) e Ouija: Origem do Mal (2016). Doutor Sono recebeu o consentimento de King, mas ele pediu para ler o roteiro antes de Flanagan rodar o filme.

O rei do terror já havia revelado seu desgosto com a adaptação… digamos… mais fria de Kubrick (segundo ele, faltou o viés familiar!). É bem possível que tenha escrito a continuação para dar respostas sobre O iluminado e consertar erros do passado. Flanagan deve estar rindo à toa, pois King simplesmente amou o resultado. Em sua conta no Twitter – bastante ativa, por sinal – o escritor não se cansa de elogiar as críticas favoráveis à adaptação: “DOCTOR SLEEP: Mike Flanagan é um diretor talentoso, mas ele também é um excelente contador de histórias. O filme é bom. Você gostará dele se você gostou de O ILUMINADO, mas você também gostará se você gostou de UM SONHO DE LIBERDADE. É imersivo”, tuitou King no útlimo dia 23 de outubro.

As diferenças entre os dois filmes são muitas, começando pelo fato de que a história de O iluminado se passa quase exclusivamente dentro do hotel macabro. Já na primeira hora de Doutor Sono viajamos por um punhado de estados americanos. O garotinho Danny se transformou em Dan, um adulto alcoólatra, assim como o pai, e que se mudou para a Florida para fugir da neve que tanto o traumatizou na infância. O ator escocês Ewan McGregor, que interpreta o protagonista, surge na tela bem ao estilo Trainspotting, de ressaca ao lado de uma prostituta com quem passou a noite. Os inimigos na trama são um grupo de ciganos, meio vampiros meio hippies, que se alimentam do “vapor” de crianças especiais, fazendo com que eles vivam “eternamente enquanto dure”. Com essa informação, você consegue adivinhar o que esse bando, chamado de Verdadeiro Nó e liderado pela bruxa Rose The Hat (a atriz sueca Rebecca Ferguson), é capaz de fazer com as pobres criancinhas.

Em outro estado americano mora Abra Stone (a atriz-mirim Kyliegh Curran em seu primeiro grande papel). Paranormal, a garotinha se torna a única apta a derrotar os vilões. Aconselhado pelo guia imaginário Dick Hallorann (ex-chefe de cozinha do Hotel Overlook em O Iluminado), Dan viaja a Frazier, cidade de New Hampshire, decidido a se reabilitar do vício e a se reconciliar com seu dom de prever as coisas (chamado na história de shining). Começa a frequentar o Alcoólicos Anônimos (assim como fizeram também na vida real Ewan, que largou o álcool, e o próprio Stephen King) e recebe a oferta para trabalhar como enfermeiro num hospital cuidando de pacientes terminais, onde recebe o apelido de Doutor Sono – pois é capaz de adivinhar quem vai morrer, assim como o gato do hospital.

O tempo passa e Dan se torna mentor de Abra. Como ambos têm o poder da telepatia, eles mantêm uma conexão através de uma parede, onde escrevem um pro outro (parece coisa de tabuleiro ouija!). Durante boa parte do filme, Rose tenta encontrar Abra numa história de cão e gato, recheada de cenas de terror trash que nos anos 1980 fariam mais sentido do que na era do cinema digital. Como na sequência em que o bando sequestra um garotinho após uma partida de beisebol – e que remeteu ao filme O Campo dos Sonhos.

Os efeitos sonoros são um dos destaques do filme e por vezes simulam a respiração e batimentos cardíacos, reforçando o clima de tensão. O longa também traz referências a O Iluminado. O número da casa onde Abra mora é 1980. Na parte final, o quarto de hotel número 217 também reaparece, quando Dan retorna ao Overlook, com seus carpetes coloridos, corredores intermináveis e o buraco na parede feito pelo machado de Jack.

Fato é que muitos fãs de King gostaram do livro e dizem que o escritor conseguiu entregar uma sequência à altura, com uma história bem amarrada. Na telona, o filme parece ter sido bastante fiel à publicação e ainda faz várias referências ao filme de Kubrick. E justamente essa fidelidade, a obrigação de entregar o que King queria, pode ter engessado Flanagan. A continuação nas telas se torna arrastada – com mais de meia hora a mais do que o primeiro – e tem personagens deslocadas, interpretações medianas dos coadjuvantes, cenas grotescas de homicídio e uma dose de suspense a conta-gotas.

Mas o que importa é que o diretor, montador e roteirista conseguiu entregar um filme com a chancela do rei do terror, que tem o incrível poder de escrever sobre temas pesados, como o alcoolismo destruidor de famílias, de uma forma que entretém e não faz ninguém cochilar na poltrona.

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Coringa

Joaquin Phoenix encarna com maestria o clássico vilão de Gotham em contundente história que metaforiza a psicopatia da sociedade atual

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Texto por Janaina Monteiro

Fotos: Warner/Divulgação

Sorria, mesmo que seu coração esteja dolorido. Sorria, mesmo que ele esteja partido. Charles Chaplin, que deu vida ao palhaço Carlitos, escreveu esses versos em “Smile”, música composta nos anos 1930 para o filme Tempos Modernos.

Mas como sorrir quando se é miserável de alma e conta bancária? Quando se é vítima de toda a sujeira mais imunda que o ser humano pode produzir? Quando o bullying e o abandono se arrastam pela vida adulta? Quando você perde emprego, vive sozinho, deprimido, e, pra piorar, sofre de transtorno psicótico? Esse é o dilema de Coringa (Joker, EUA, 2019 – Warner). No filme que leva o nome em português do personagem, o vilão se transforma em herói retratado de forma humanizada pelo diretor Todd Phillips (mais conhecido pela trilogia Se Beber Não Case). O aguardado e aclamado longa sobre um dos antagonistas de Batman, vencedor do último Leão de Ouro em Veneza, estreia nesta quinta-feira no Brasil cercado de polêmicas e protagonizado por Joaquin Phoenix, um ator com estrutura física e psicológica para viver o papel que já foi interpretado por Heath Ledger (morto por overdose acidental de medicamentos logo após terminar as filmagens de Batman: O Cavaleiro das Trevas), Jared Leto e Jack Nicholson.

O Coringa de Phoenix sorri por conta de sua psicose acompanhada de um distúrbio neurológico (ele ri incontrolavelmente a ponto de quase sufocar) e do seu trabalho como palhaço de rua. Arthur, na verdade, chora através de suas risadas histéricas. Ele é o freak, o weirdo, em busca de sentido de pertencimento no mundo cada vez mais apático e egocêntrico. Faz parte da escória da humanidade, que de tanto sofrer assume a personalidade de Joker e se transforma num monstro guiado pela violência nua e crua, similar à praticada por jovens armados em escolas e cujos massacres são exibidos e reexibidos pelos telejornais. Por isso a preocupação com a censura: no Brasil, o filme não é recomendado para menores de 16 anos.

A introdução mostra o drama de Arthur em seu ambiente hostil. Gotham City está infestada por ratos reais, numa analogia à Nova York do início dos anos 1980 quando o número de habitantes roedores quase ultrapassou a população. Arthur mora com a mãe num prédio decadente do Bronx e sonha em ser comediante de stand-up. O tempo todo ele é esculhambado, ridicularizado por colegas, agredido por gangue de adolescentes, refém de sua doença, dos remédios e da pilhéria da sociedade em que vive.

Phillips, que coescreveu o roteiro, conseguiu de forma soberba traduzir essa personagem dos quadrinhos capaz de causar tanto fascínio e terror. E humanizar o vilão, digno de pena. Todo o sofrimento serve como base de seu comportamento no decorrer da trama. Arthur não chega a ser um psicopata, pois consegue sentir compaixão: cuida da mãe tão perturbada quanto ele. E como todo psicótico, encontra fuga numa realidade paralela. Quando assiste, por exemplo, ao seu talk show preferido, chamado Live With Murray Franklin, imagina-se dentro do programa. Delira e encontra no apresentador  (interpretado por Robert De Niro) o pai que nunca teve. O mundo de Arthur está em vias de explodir quando perde o emprego, momento em que seu alterego passa a dominar.

O turning point acontece quando ele descobre a verdade sobre sua mãe, sobre o seu passado, sua doença, sobre o pai que nunca conheceu e que poderia ser o mesmo pai de Bruce Wayne, o Batman, super-herói nascido em berço de ouro. Thomas Wayne, bem ao estilo Donald Trump, é candidato a prefeito de Gotham e se refere aos pobres como sendo palhaços. O filme, aliás, faz um paralelo surpreendente com a história de Batman e confronta as duas personagens, dando uma suposta prévia do novo filme sobre o Homem-Morcego.

Na mente do Joker (o nome original do Coringa, em inglês), Arthur passa do homem ridicularizado, vítima de chacota e agressão, ao palhaço vingativo, terrorista. Sua satisfação vem através da violência. Em vez de estourar seus miolos, Arthur decide eliminar quem o ridicularizou. E poupa aqueles que o trataram bem, na maioria das vezes também minorias.

Cenas chocantes não faltam no filme, que alimentam a polêmica de fomentar atos de violência. Entretanto, o roteiro consegue a proeza de, em algumas delas, nos fazer rir com uma certa culpa por conta da atitude perturbada do protagonista. Phillips e Phoenix transformam em arte cenas de dança em que o Coringa comemora e parece emular Carlitos, incorporando gestos de tai chi. Aliás, o balé do Coringa foi feito de improviso. Joaquin e Todd não gostaram do primeiro resultado e o ator, gênio, começou a dançar, o que rendeu uma cena de beleza poética e transformou em marca registrada desse Joker.

A tensão é mantida do início ao fim, garantida pela riqueza da personagem e o brilhantismo do ator. Como é possível esperar qualquer coisa da mente de um psicótico, há tomadas tão carregadas de suspense que o espectador sente aquele frio na espinha. Somando a isso, a trilha sonora do filme é fundamental na manutenção dessa condição de ansiedade e expectativa. Muitas vezes, por si só, uma canção é capaz de dar sentido à determinada sequência. Como “Send In The Clows” (gravada originalmente por Frank Sinatra e interpelada por uma das vítimas do Coringa) e “Smile”, de Chaplin, sobre quem há faz várias referências durante esta história (o homem por trás de Carlitos era um gênio, filho de mãe doente mental e que acabou tendo fama de pedófilo).

Além de close-ups reveladores e movimentos de câmeras sempre em sintonia com o tom sombrio do filme, Phillips também faz uso de elementos não verbais para mostrar o conflito de personalidade e a angústia de Arthur. Exemplos disto são as cenas em ele aparece numa escadaria, sinônimo de verticalidade, representando os planos do espírito, da mente, a ligação entre o céu e a Terra. A trama, aliás, é tão bem costurada que o espectador não consegue definir quais são momentos de delírio e sanidade da personagem até que, quase na metade do filme, um flashback desnecessário surge como uma explicação para os improváveis desatentos.

Muito mais que a história de um conflito pessoal, Coringa é a metáfora de uma sociedade que caminha para uma psicopatia, na qual seus cidadãos usam da violência, desprezo, abandono para resolver diferenças e exigir seus direitos, num mundo em que a raiva toma conta e os fins justificam os meios. Essa sociedade exclui, ignora, marginaliza e trata essas pessoas como meros clowns.

Quando o protagonista se transforma em vigilante, há referências claras a Guy Fawkes e críticas evidentemente políticas a injustiças sociais, como o fato da extinção do serviço social que garante os remédios de Arthur.

Coringa é um soco na cara. Pisa na ferida e escancara a violência de modo brutal, pura, ácida, nua e crua. É um papel tão forte, poderoso, trágico que só um Phoenix (irmão do ator River, morto por overdose em 1993, aos 23 anos de idade) para encará-lo de forma esplêndida. O ator emagreceu 23 quilos para encarnar o vilão e lembra Christian Bale em O Operário (Bale, aliás, foi Batman nas telas). Nessa nossa sociedade delirante, nem todos são psicóticos, mas pobres mortais são, sim, todos palhaços.

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Represálias

Por evocar a violência e transformar o vilão em herói, embora a Warner negue isso, o filme vem sofrendo represálias e chegou a ser proibido em Aurora, cidade norte-americana onde um rapaz supostamente inspirado no Coringa abriu fogo numa sala de cinema matando doze pessoas em 2012. O medo é que este novo filme inspire novas tragédias. O diretor Todd Phillips, porém, diz que não é justo fazer essa associação. “É um personagem de ficção num mundo fictício que existe há 80 anos”, justificou Phillips numa entrevista.

A Warner divulgou um comunicado respondendo a uma carta escrita por familiares do massacre de Aurora, enfatizando que violência por arma de fogo é um assunto crítico e que o estúdio tem uma longa história de doações a vítimas de violência, incluindo esta cidade do estado do Colorado. “Ao mesmo tempo, a Warner Bros acredita que uma das funções da arte de contar histórias é provocar diálogos difíceis sobre questões complexas. Não se engane: nem o personagem fictício Joker, nem o filme, é um endosso de qualquer tipo de violência no mundo real. Não é esta a intenção do filme, dos cineastas ou do estúdio manter esse personagem como um herói”, declarou a empresa.

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Infiltrado na Klan

Novo longa de Spike Lee é tão atual que parece ter sido feito sob encomenda para estes tempos de retrocesso ideológico

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Texto por Fábio Soares

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Sabe o atirador que mira um objeto mas, sem querer, atinge o alvo com maestria mesmo com “trocentos” graus de dissonância? Pois bem: assim é Spike Lee com seu novo longa. Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman, EUA, 2018 – Universal Pictures) não é um instrumento de indiretas do diretor, atualmente com 61 anos, contra Donald Trump. É um grito de revolta contrário à eleição do republicano em 2016. Em suas entrevistas, Lee refere-se ao mandatário como “agente laranja” ou, pura e simplesmente, “filho da p***”, baseado em declarações racistas, homofóbicas e misóginas proferidas pelo então candidato ao pleito de dois anos atrás, aliado à sua intransigente posição contra imigrantes.

Neste momento, seu cérebro deve estar traçando um paralelo com ao recém-eleito presidente do Brasil mas esta etapa mais uma coincidência que cai por terra pelo fato de o diretor nominalmente citar Jair Bolsonaro como personificação de uma ameaça ideológica na América Latina. “É necessário abrirmos o olho contra o retorno do fascismo. Veja o que recentemente ocorreu no Brasil e, paralelamente, na Europa com a eleição de partidos conservadores”, afirmou o cineasta, em recente entrevista no México. Spike Lee sabe o quanto é importante sua verve ativista neste momento e, sabiamente, usa de sua arte a seu favor.

Mas vamos à película. Não seria inexato afirmar que Infiltrado na Klan caminha entre a linha tênue entre a comédia e o drama. Conta a história verídica de Ron Stallworth (interpretado por John David Washington) um jovem negro, morador do Colorado no final dos anos 1970, que consegue entrar nos quadros da polícia local. Ao iniciar seus trabalhos, sente o preconceito desde o início: é escalado para trabalhar no inexpressivo arquivo de dados de infratores do estado. E Ron queria mais. Com personalidade, peita seus superiores e consegue o improvável: uma investigação para chamar de “sua”.

O que era para ser um simples monitoramento sobre a classe negra oprimida da região, transforma-se numa inimaginável imersão ao núcleo de Ku Klux Klan com um ingrediente quase inverossímil se não tivesse sido registrado na História: Ron comunicava-se com os líderes da organização através de telefonemas mas, a certa altura, a presença de sua figura era mais que necessária às reuniões da organização. Foi então que imaginou uma “sacada” improvável mas certeira. Com a ajuda de Flip Zimmermann (um colega policial branco interpretado por Adam Driver) Ron é a “voz” de um novo integrante da Klan, enquanto Flip é seu “dublê de corpo”, comparecendo pessoalmente às reuniões e encontros da seita racista. Assim, os dois “Rons” (original e “dublê”) conseguem exercer papel de liderança dentro da organização e assim, literalmente frustrar diversos ataques contra negros previamente arquitetados. Até David Duke (eterno líder da KKK, aqui vivido por Tolher Grace) é personificado e ludibriado pela dupla.

Em se tratando de Spike Lee, deve-se deixar de lado a busca pelo primor cinematográfico. O diretor aposta todas as suas fichas do ativismo na estética de seus personagens, assim como numa pesadíssima trilha sonora. Em Infiltrado na Klan ouve-se de Temptations (“Ball Of Confusion”) a James Brown (“Say It Loud, I’m Black And I’m Proud”). De Dan Whitener (com a belíssima “We Are Gonna Be Okay”) até “Lucky Man”, o clássico de Emerson, Lake & Palmer. Somado à fotografia do longa, com seus tons pastéis, isso leva o espectador à imersão do Colorado do final dos 1970.

Se os diálogos, em diversos momentos, apresentam irregularidade, Infiltrado na Klancumpre bem o papel a que se propõe: um manifesto contra o racismo e a intolerância que já deveriam estar (há muito tempo) erradicados. Um retrato do retrocesso ideológico iniciado nos EUA dois anos atrás e que, desde então, expandiu seus reflexos sobretudo na América Latina.