Music

História do Rock: Nirvana – Parte 1

Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl faziam no Brasil, há exatos 30 anos, um show furioso, confuso, autossabotado e memorável

Texto por Fábio Soares

Fotos do show de SP: iaskara/Mondo Bacana

Um calor etíope recaía na capital paulista naquele sábado, dia 16 de janeiro de 1993 no calendário, que não era parte integrante de um final de semana qualquer. A quarta edição do extinto festival Hollywood Rock (ironicamente e ao lado do também finado Free Jazz o único benefício que o cigarro trouxe às nossas vidas) aportava no estádio do Morumbi com um aspecto elogiável: reunir numa única edição headliners de um recém-surgido estilo musical que varreria o mundo naquele início dos anos 1990.

L7 e Alice In Chains chegavam embalados pelos hinos “Pretend We’re Dead” e “Man In The Box”, respectivamente. Pegando carona no sucesso do grunge, os Red Hot Chilli Peppers promoviam o antológico álbum Blood Sugar Sex Magik com a dobradinha-chiclete “Give It Away” e “Suck My Kiss”. Mas venhamos e convenhamos: todos eles vieram a reboque da maior (sim, era a maior mesmo e aceita isso porque dói menos) banda do mundo naquele recorte temporal.

O Nirvana estava entre nós! Os caras que tocaram o terror no VMA, da MTV americana, no ano anterior. Os caboclos que expulsaram Michael Jackson, Guns N’Roses e Madonna do topo das paradas nos últimos meses de 1991. As cabeças por trás de Nevermind, a bolacha que pôs 3/4 do planeta pra chacoalhar o pescoço no biênio anterior. O Brasil veria uma banda no seu auge criativo e histórico, coisa que raramente aconteceu até então (e raramente voltaria a acontecer até hoje). Isso eria naquele sábado. Portanto, era a brecha que o sistema queria. AVISA O IML, CHEGOU O GRANDE DIA! 

Com maciça divulgação na MTV Brasil, os ingressos praticamente se esgotaram para aquela tarde/noite em São Paulo. As arquibancadas do Morumbi (setor em que fiquei) estavam tão lotadas como num hipotético jogo envolvendo todos os quatro grandes times paulistas num único domingo. Era uma época em que as famigeradas (e irritantes) arenas de Palmeiras e Corinthians não existiam e o Morumbi monopolizava quase todos os clássicos do futebol estadual. No setor de pista do estádio (o conceito de setor “premium” passava longe de ser cogitado!) a lotação não era diferente: pouquíssimos “buracos” eram vistos. Havia uma atmosfera diferente no ar e a ansiedade de todos ali estava a mil.

Mas cadê o Nirvana? 

Por volta de 21h30, João Gordo subiu ao palco para ler um pedido de desculpas do baixista Krist Novoselic por declarações proferidas numa entrevista concedida semanas antes e, claro, distorcidas na edição publicada no principal semanário impresso do país na época. “Quem quer saber?”, pensei, antes de ouvi-lo anunciar: “Com vocês, a maior banda underground de todos os tempos: NIRVANAAAA!”.

Um barulho ensurdecedor tomou conta do “Morumba” quando Kurt Cobain, Krist e o então baterista Dave Grohl surgiram em cena evidenciando o óbvio: a diminuta formação da banda era pequena demais para aquele palco gigantesco. Imagine, antes de mais nada, a sala da mansão de Chiquinho Scarpa contendo apenas uma estante (Novoselic), uma poltrona (Grohl) e uma TV de 14 polegadas (Cobain). Agora não imagine mais nada, pois toda essa impressão foi para as cucuias quando Kurt extraiu de sua Fender Jaguar o matador riff de “School”, minha predileta de Bleach, primeiro álbum dos caras. Um verdadeiro pandemônio se instalou no estádio e a visão das arquibancadas para a pista era assustadora: o “mar” de gente parecia estar de ressaca com todo mundo se espremendo na vã tentativa de se aproximar da grade.

No palco, porém, ocorria algo fora do comum. Novoselic e Grohl estavam visivelmente a 120 por hora, mas Cobain a 60. Um desencontro para o qual ninguém ligou, afinal de contas o que veio a seguir passou por cima da audiência como um rolo compressor. “Drain You”, veio seguida pela inacreditável linha de baixo de Novoselic em “Breed”, a espetacular bateria de Grohl em “In Bloom”. Estas todas, além de “Sliver”, não deixaram pedra sobre pedra. A arrasa-quarteirão “Dive” (desconhecida até aquele momento e que seria lançada logo depois na compilação de singles e raridades Incesticide) preparou o terreno para “Come As You Are”, com o estádio inteiro entoando a letra em uníssono.

Em “Lithium”, uma cena que jamais sairá de minha memória: durante o refrão (aquele em que Cobain esgoela-se num “iêiêêiêêê” interminável), trinta mil pessoas na pista pulavam e giravam suas camisetas acima de suas cabeças, levantando uma nuvem de poeira que mais parecia uma tempestade noturna no Saara. Nas arquibancadas, outras cinquenta mil faziam o mesmo. A estrutura do estádio começou a balançar assustadoramente e as antigas torres de iluminação dançavam mais do que os bonecos de Olinda no carnaval pernambucano. “Esta porra vai cair!”, gritaram alguns (eu, incluso). Que momento! “Daqui pra frente, será um “showzão da porra, pensaram todos. Contudo, foi aí que o caldo começou a entornar.

Reza a lenda que, horas antes da apresentação, Kurt enchera a cara no bar do hotel onde eles estavam hospedados, o hoje fechado Maksoud Plaza. Também se entupira de comprimidos. Chegando ao estádio, alguém teria dito a ele que o festival era patrocinado por uma marca de cigarros (dããã!) e isso o teria deixado puto. O que existe de verdade ou não nesta historieta é difícil saber, mas o fato é que a segunda metade do show foi uma auto-sabotagem explícita e proposital. Antes de iniciarem “Smells Like Teen Spirit”, os três chamaram ao palco o baixista dos Chilli Peppers para tocar trompete em substituição ao solo de guitarra da canção. O resultado, porém, foi esquisito demais. O hit ficou praticamente irreconhecível e o constrangimento de Flea era evidente diante da presepada.

Daí em diante, a coisa desandou de vez! A banda iniciou um festival de covers com versões que em quase nada se parecia com as gravações originais. Pior: Cobain (doidão de pedra) encasquetou que o trio deveria trocar instrumentos entre si. É isso mesmo o que você está lendo: a estante virou TV de 14 polegadas (Novoselic na guitarra), a poltrona virou estante (Grohl no baixo), a TV de 14 polegadas virou poltrona (Cobain na bateria). O que se viu e ouviu dali por diante foi difícil de engolir. Foi um espetáculo de horrores! “Run To The Hills” (Iron Maiden), “Rio” (Duran Duran),  Kids In America” (Kim Wilde), “867-5309/Jenny” (Tommy Tutone), “Heartbreaker (Led Zeppelin), “Seasons In The Sun” (adaptação em inglês de uma chanson de Jacques Brel) “Should I Stay Or Should I Go” (Clash) e até “We Will Rock You” (Queen) foram tocadas com essa formação, algumas em rotação mais lenta. O que ocorreu durante a execução das mesmas jamais esquecerei: a pista se esvaziou! Inacreditável foi presenciar milhares de pessoas dirigindo-se aos portões de saída tais quais muçulmanos numa peregrinação a Meca. Nas arquibancadas, não foi diferente: presenciei um fulano, sentado num canto, gritar “Acaba, ‘pelamor’ de Deus!”. A debandada foi geral.

Confesso que quase fui embora também. Não sei por qual motivo fiquei. Fiquei para presenciar a maior banda do mundo pisar no tomate. Fiquei para ver uma trinca “responsa” de canções finais: “Territorial Pissings”, “Heart Shaped-Box” (que jamais havia sido executada ao vivo até aquele momento e viria gravada no fim daquele ano, no álbum In Utero) e a hecatombe nuclear “Scentless Apprentice” (também de In Utero). Fiquei pra ver Kurt Cobain destruir sua guitarra antes do momento Led Zeppelin, descer do palco e distribuir os pedaços da coitada para poucos sortudos e corajosos que ainda permaneciam junto à grade, como se fosse um padre a distribuir hóstias aos seu fiéis. Fiquei, enfim, para ser testemunha ocular de uma tortura sonora que durou quase três horas regada a muito cansaço e letargia exacerbados.

Uma experiência esquisita demais e que mesmo hoje, tanto tempo depois, ainda me faz procurar por respostas. O que fora aquilo? Teria sido aquela horror history um marco na carreira da banda? Teria Cobain agido como um moleque dono da bola e do campinho que, de repente, diz “se eu não jogar, ninguém mais joga”? Estaria o Nirvana a um passo da dissolução bem ali, diante de 80 mil pessoas?

Saí do Morumbi naquela noite com a quase certeza de que a resposta viria depois de algum tempo, numa segunda vinda do grupo ao Brasil. “Farão um show num local fechado e será bem melhor”, pensei. Não deu. Quinze meses depois, Kurt estourava os próprios miolos em Seattle e o resto da história todo mundo já sabe.

Fiquei puto na época mas este sentimento não carrego mais. Trago comigo a certeza de que hoje, tanto tempo depois, presenciei um fato histórico. Uma banda no auge, fazendo um concerto ruim. Aliás, a maior banda do mundo promovendo uma ópera do horror.

Em 16 de Janeiro de 1993, o Nirvana tocava em São Paulo. Há exatos 30 anos eu estava lá! 

E eu me lembro muito bem de tudo.

Set list: “School”, “Drain You”, “Breed”, “Silver”, “In Bloom”, “About a Girl”, “Dive”, “Come As You Are”, “Molly’s Lips”, “Lithium”, “(New Wave) Polly”, “D-7”, “Smells Like Teen Spirit”, “On a Plain”, “Negative Creep”, “Something In The Way”, “Blew”, “Run To The Hills”, “Heartbreaker”, “We Will Rock You”, “Seasons In The Sun”, “Kids In America”, “Should I Stay or Shuld I Go?” “867-5309/Jenny”, “Rio”, “Lounge Act”, “Territorial Pissings”, “Heart-Shaped Box” e “Scentless Apprentice”.

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Me Chama Que Eu Vou

Documentário revive a trajetória do furacão “cigano” Sidney Magal, que varreu a música brasileira a partir do final dos anos 1970

Texto por Abonico Smith

Foto: Vitrine Filme/Divulgação

No final dos anos 1970 um furacão varreu a música verdadeiramente popular brasileira. Não houve como passar incólume. Muita gente gostava, adorava, não tirava os olhos da televisão quando ele aparecia nos programas de auditório. O mais importante: sabia cantar a letra todinha, assoviava a melodia. Todo dia, o tempo inteiro. E não eram só mulheres. Muitos homens também. E claro, muitas crianças. Afinal, não tinha como não se apaixonar por aquela figura esguia de fartos cabelos negros encaracolados dançando e rebolando sem paridade em nosso país e cantando letras imageticamente fortes, extrapolativamente sensuais.

Argentino que havia sido artista de rock nos anos 1960, Roberto Livi estava no Brasil na condição de empresário de artistas e produtor fonográfico. Sua missão mais importante era descobrir novos artistas para projetar suas carreiras e fazê-los vender muitos discos e shows. Foi assim com nomes como Alcione e Peninha, por exemplo . Com Sidney Magalhães também. Aliás, Magal, rebatizado sem a metade do sobrenome oficial desde que voltara de uma viagem pela Europa para tentar a carreira artística cantando e dançando nos seus vinte e poucos anos. O shape de Sidney Magal já existia antes mesmo de Livi descobri-lo. Fazia sucesso na noite, soltando o vozeirão no palco de uma churrascaria na Barra da Tijuca, já com o mesmo figurino exótico (couro, correntes grossas, cabelão, peito nu, preto como cor dominante) utilizado quando passou a gravar discos. Aliás, Magal desde sempre foi um artista não apenas para ser ouvido, mas principalmente para ser visto. 

Recém-estreado em circuito nacional, Me Chama Que Eu Vou (Brasil, 2022 – Vitrine Filmes) disseca o personagem Sidney Magal através da ótica e dos comentários de seu criador Magalhães. É aquele documentário básico e clássico, cronologicamente linear, que vai da gestação da carreira em seus momentos prévios aos tempos de hoje, passando, claro, pelo apogeu, decadência, redescoberta e renascimento artístico. Bom para quem não conhece direito a sua história, mas também curioso para quem acompanhou tudo isso em tempo real no decorrer das décadas. Prato cheio aliás, é o tratamento dado pela mídia durante os três primeiros álbuns. Além de algumas imagens da época, o crème de la crème são as entrevistas para TV e sobretudo as revistas de fofoca e semanários jornalísticos. Mesmo que aparecendo de maneira fugaz na tela, as páginas diagramadas com textos, fotos e manchetes são uma delicia de serem lidas. Nestas cenas são reveladas todo o fascínio com o qual a imprensa tratava aquela persona rebolativa que pervertia a MPB. A elite o tachava de brega. Os mais preconceituosos não conseguiam compreender que aquela figura já havia sido criada antes mesmo do lançamento do primeiro disco. Muita gente o considerava uma estrela fabricada pela indústria fonográfica, um “cigano de araque, fabricado até o pescoço” (como cantava Rita Lee, de pura pirraça, na segunda versão da letra da não menos debochada canção “Arrombou a Festa”, no qual espinafrava os nomes mais importantes da música nacional da época). Uma das reportagens até dava a receita para se “fabricar” um ídolo.

O que poderia jogar contra o documentário dirigido por Joana Mariani acaba, entretanto, sendo o maior trunfo dele. O filho do cantor, um dos entrevistados, também assina a obra como coprodutor-executivo. Mas também não se pode dizer que Me Chama que Eu Vou seja um filme chapa-branca. Mesmo porque, fora a polêmica sociológica do início de carreira, Sidney Magalhães nunca foi uma figura de fato polêmica. Nunca precisou esconder na de sua vida, nem mesmo protagonizou escândalos pessoais de qualquer tipo. Por isso mesmo nunca foi necessário Mariani sequer pensar em qualquer outra narrativa para o doc. Magal ainda ajuda por ser uma pessoa extremamente organizada, sobretudo no que tange ao arquivo de itens sobre a sua trajetória artística. Ele, sempre que pode, guarda até hoje recortes, cartazes, fotos. Se todo este material enriqueceu muito o material apresentado na edição final (inclusive coisas pré-estouro nacional nas rádios e TVs) dá para ficar imaginando todo o resto que ficou de fora da montagem.

O trabalho de Mariani é bastante elucidativo ao jogar luz para os espectadores compreender algo que talvez muitos deles não saibam: a diferença tamanha entre o que são os dois Sidneys. Enquanto o Magal é espalhafatoso, sensual e ousado, o Magalhães é quieto, família e até certo ponto conservador nos costumes (inclusive os musicais). Aliás, o gosto pelas canções mais tradicionais (bossa nova, sobretudo) veio de casa. Tia tocando piano, mãe apaixonada por canto (a ponto de se lançar na carreira depois da fama do filho, aproveitando inclusive para usar o pseudônimo dele), primo dos mais festejados pelas artes brasileiras. Para quem não sabe: o tal primo era ninguém menos que o poetinha Vinicius de Moraes, letrista de algumas das principais canções em língua portuguesa.

Só que Vinícius nunca compôs uma letra para Sidney gravar, mesmo porque o garoto mais novo nunca ficou insistindo nisso. Nem precisaria mesmo. Com versos afiados (e quentes, muito quentes!) como os da polca “Sandra Rosa Madalena, a Cigana” e a meio rumba meio disco “Meu Sangue Ferve Por Você” , não há como não cantar junto com Magal e suas reboladas. Outras versões em nosso idioma também são poderosas. O rock “Tenho” veio importada do repertório do famoso cantor argentino Sandro Anderle (1968), também com estilo visual cigano e principal referência de Livi ao trabalhar com Magal. De outro portenho, o cantor de boleros Cacho Castaña, o produtor trouxe outra disco music, “Se Te Agarro Com Outro Te Mato”, seu primeiro compacto, lançado em 1977, com direito até a guitarra turbinada por um discreto porém não menos poderoso e psicodélico pedal fuzz.

O que o documentário não fala (infelizmente, porque seria uma informação mais completa e não desmereceria de maneira nenhuma a carreira do carioca) é que o grosso dos hits dos anos dourados de Magal são compostos por versões. “Meu Sangue Ferve Por Você”, no caso, é versão de uma versão. A original é francesa e teve duas letras e gravações em 1973: uma em inglês, pelo artista Sunshine, sob o nome de “Melody Lady”; a outra, em francês, por Sheila (que anos depois viria a apostar na disco music como Sheila B Devotion), chamada “Mélancolie”. O argentino Sabú pegou a mesma base sonora e levou a canção para o espanhol, agora como “Oh Cuanto Te Amo”. Deste sucesso veio a ideia para a letra “quente” de Magal. Também de Buenos Aires veio mais um rock, “Amante Latino”, gravada com o andamento um pouco mais desacelerado por Rabito em 1974.

A segunda parte do trabalho de Joana foca na ruptura da parceira entre Magal e Livi e a espiral descendente na qual seu trabalho caiu logo no começo dos anos 1980. Curiosamente, tudo surgiu do esgotamento da fórmula da imagem forjada de cigano. A letra “Sandra Rosa Madalena”, idealizada por Livi, pode ter forjado a imagem de Magal, que tinha apenas um fiapo de ascendência cigana lá pelo lado de uma tataravó, e catapultado o artista ao estrelato, mas também fora a maldição da qual ele tentou se livrar. Por diferenças pessoais e profissionais rompeu os laços com seu produtor e lançou-se na música romântica, incentivado pela gravadora, com outro look, de gomalina e cabelos presos com rabo de cavalo. Lançou vários discos mas nenhuma música nova fez sucesso. Na época em que Magal mais tentou sair do personagem e passar a ser ele mesmo – inclusive se casando e tendo filhos, contra a vontade de seu até então mentor de bastidores, que considerava ser o suicídio de um ídolo abrir o jogo da vida pessoal para seus fãs. Aí que entra uma fase interessante do filme, com Magalhães refletindo sobre os efeitos colaterais da mudança e os atos para a sua reinvenção, mudando-se para a Bahia e atuando como ator de novelas e cantor de teatro musical, inclusive sendo convidado e dirigido por Bibi Ferreira. Até a reviravolta provocada pela chegada da febre da lambada, o sucesso de “Me Chama Que Eu Vou” com tema de abertura da novela da Globo (em um período em que isso ainda representava um bilhete premiado de loteria para um artista da música) e a consequente redescoberta do cantor pelas geração MTV Brasil. Todo este período de ostracismo e redenção, sob a análise do próprio Sidney (mais uma boa dose de sentimentalismo familiar) funciona contra a tentadora queda para uma possível glorificação do astro de um documentário.

Me Chama Que Eu Vou, o doc, não só informa aquele que não conhece direito a trajetória do ídolo. Gráfica e ritmicamente dinâmico, sobretudo na fase inicial da fama, diverte todo mundo. Como uma apresentação do “falso” cigano, seja em um show completo ou apenas em um número em antigos programas de auditório na TV. Aliás mais do que produto da mera mente comercial de Livi ou resultado do puro instinto daquele jovem que cresceu banhado em arte e só queria fazer da vida o ato de cantar e dançar, Sidney Magal é fruto daqueles tempos de recente formação de redes nacionais de televisão, proporcionadas pela possibilidade cada vez mais barata de transmissões via satélite (leia-se anos 1970 em diante). Sorte de quem faz audiovisual e de quem gosta de ver documentários.

Music

História do Rock: Synth Pop 81 – Parte 1

Há quarenta anos começava a temporada mágica que tornou os sintetizadores tão populares quanto as guitarras na música pop britânica

Kraftwerk

Texto por Abonico Smith

Fotos: Divulgação/Reprodução

instrumentos reservados à vanguarda do mundo da música eletrônica, de limitado potencial comercial e mais adaptável às viagens psicodélicas da cena contracultural, os sintetizadores começaram a entrar no mundo do rock sorrateiramente no começo dos anos 1970. Como eram grandiloquentes peças não muito apropriadas para se levar aos palcos e concertos, versões mais simplificadas, portáteis e baratas começaram a ser utilizadas por membros de bandas artsy ou progressivas britânicas (Roxy Music; Pink Floyd; Emerson, Lake & Palmer). Contudo, passou a ser amplamente adotado por uma geração de jovens alemães mais interessados em expandir os limites e as possibilidades da música popular germânica (Tangerine Dream; Neu!; Cluster; Kraftwerk). Este último, quando reformulou formação e sonoridade para gravar seu quarto álbum, em 1974), começou a definir as bases de toda uma geração de adolescentes espalhados por grandes cidades inglesas e que se encontravam sob uma peculiar condição sociocultural.

Esta última safra de baby boomers (isto é, aquelas pessoas nascidas no Pós-Guerra, quando as tropas militares já haviam voltado para seus países e a economia dos principais países do mundo lutava para se recuperar de todas as perdas provocadas pelo conflito bélico ocorrido entre os anos de 1939 e 1945) cresceu bombardeada por múltiplas referências da cultura pop dos anos 1960 e sob a crença do desenvolvimento de um mundo melhor, onde a evolução da tecnologia (transporte, eletrodomésticos, comunicação) proporcionaria um cotidiano mais confortável e aprazível, tal qual se via em episódios de desenhos animados dos Flintstones e Jetsons. Por outro lado, o sistema político macarthista, que imperou nos Estados Unidos  durante quase toda a década anterior foi crucial para que os universos do cinema e da literatura promovessem a ampla popularidade de narrativas de ficção científica, nas quais um futuro tomado por viagens no tempo e espaço e luta contra monstros e alienígenas traduzia em metáforas todos os medos e anseios daquela época.

Maravilhados pelo brilhantismo distópico de escritores como Bernard Quatermass, Philip K Dick, William Burroughs e JG Ballard, turbinados pelo movimentos artísticos de vanguarda do início do século 20 como o futurismo e o dadaísmo, estimulados pelos sintetizadores subvertidos por Wendy Carlos na trilha sonora da ultraviolência do filme Laranja Mecânica e por Giorgio Moroder na revolução que “I Feel Love” fez na disco music e ainda consumidos por centenas de horas na frente da televisão para assistir aos episódios da série da BBC Doctor Who, estes jovens aspirantes a cantores e instrumentistas britânicos viram, a partir dos meados dos 1970, a conjunção ideal de fatores musicais que possibilitavam a eles levar para o mundo de versos, harmonias e melodias todas as suas paixões dos primeiros anos de vida. Tudo começou com a extrema popularidade do Kraftwerk depois de Autobahn. Seus discos tornaram-se febre nas lojas da ilha, gerando frequentes apresentações por lá e a ótima receptividade da imprensa local – que, com a tradicional verve do fino humor irônico inglês, acabou batizando como krautrock (“rock chucrute”, em português) um suposto movimento gerado em terras germânicas por bandas que não primavam lá muito bem por uma uniformidade e coesão de proposta sonora). Apaixonado por discos como Autobahn (1974), Radio-Activity (1975) e Trans-Europe Express (1977), um dos maiores astros do rock britânico da época, o anteriormente glam David Bowie, resolveu fazer imersão total em Berlim entre os anos de 1977 e 1979, gravando por lá três discos (LowLodge e Heroes), todos com a produção artística de Brian Eno, que naquela altura já havia se desligado das funções de tecladista do Roxy Music para investir em uma carreira solo mais experimentalmente eletrônica sob o rótulo cunhado por ele mesmo de ambient music.

Gary Numan

O impulso decisivo, entretanto, foi dado pela efervescência do punk rock, que sacudiu e abalou as estruturas da sociedade britânica entre os anos de 1976 e 1978. Não era apenas a simplicidade dos três acordes na guitarra ou a fúria das letras contra o estabilishment. O que pegou mesmo foi o slogan do “faça você mesmo” e a ideia de que qualquer pessoa pode tocar um instrumento. Movidos pela vontade de fazer o que se quer mesmo que não existam as condições técnicas, econômicas e tecnológicas ideais, estes jovens começaram a formar bandas apoiadas na sonoridade dos sintetizadores. Mais do que isso, também viabilizaram a gravação de suas músicas em pequenos estúdios caseiros e o lançamento destes discos através de seus próprios selos e a criação de um circuito de clubes de shows e pistas de danças do gênero que, além da selva de concreto de Londres, envolvia importantes cidades do norte inglês como Manchester, Liverpool, Leeds e Sheffield. Todas, não por acaso, grandes centros industriais, cheias de fábricas jorrando fumaça nos céus e poluição sobre as ruas. A conjunção entre a criação e  a distopia, enfim, agora estava não só ao alcance das mãos como também na ponta dos dedos de todo este pessoal. Os sintetizadores (e na cola destes as percussões eletrônicas) anunciavam a chegada do futuro ao rock’n’roll. Sem guitarras ou baterias. Ou, pelo menos, sem elas na linha de frente dos arranjos.

O enfastio com a linguagem do rock – sobretudo naquela megalômana primeira metade dos anos 1970 – e o diálogo com a cara-de-pau e a força de vontade do punk deu início aos primeiros microsselos de synth pop, como Industrial (tocado pelo pessoal do grupo Throbbing Gristle e que também tinha bandas como Cabaret Voltaire e Clock DVA no elenco) e Mute (criado pelo produtor e músico Daniel Miller, que também lançava suas composições, mas sob a alcunha de The Normal e SIlicon Teens). Tudo no inicio tinha uma cara bastante experimental, com os músicos e produtores dando vazão às suas ideias de fuga do lugar-comum e fabricando sons de todo modo possível, chegando até mesmo a gravar ruídos captados nas barulhentas ruas dos bairros londrinos para depois processá-los através das teclas e botões. Nada comerciais, estes discos de pequenas tiragens passavam longe de despertar a atenção da grande mídia. Ficavam restritos a um nicho de seguidores fieis e, no máximo, recebiam resenhas nos semanários especializados em música (NME, Melody Maker) e eram tocados no programa do DJ da BBC John Peel, cultuado por “descobrir” excelentes sons alterativos do underground e tocá-los pela primeira vez nas ondas do rádiooc

Foi o que bastou, porém, para gerar um culto. Aos poucos, mais artistas dedicados aos sintetizadores surgiram e outros selos independentes (porém com maior estrutura de distribuição) como Beggars Banquet, Factory, Rough Trade, Island e Virgin também investiram no segmento Até que veio o primeiro grande êxito nas paradas com o cantor Gary Numan em seu primeiro álbum solo após a desistência de continuar usando o nome Tubeway Army como uma banda formal. Composta apenas por duas células harmônicas (uma estrofe com dois acordes apenas e uma ponte instrumental, sem um refrão característico), “Cars” ganhou performance até no programa Top Of The Pops, que mostrava na televisão, para todo o país, a cara e a imagem dos artistas mais vendidos na semana. Naquela noite de 30 de agosto de 1979, atrás do  microfone estava um quase-androide de gestos minimalistas, terno preto como o contorno dos olhos, a face toda pintada de branco e sem qualquer expressão. Ao seu redor, os músicos do extinto Tubeway Army, com uma bateria à frente e cinco sintetizadores dispostos lateralmente. Então a porta estava aberta para o sucesso nacional de uma turma que reunia nomes como Visage, Japan, Ultravox (e o primeiro frontman John Foxx, que largou a banda em 1979 para se lançar solo), Orchestral Manoeuvres In The Dark, Human League, Heaven 17, Cabaret Voltaire, Depeche Mode, Soft Cell, New Order, Yazoo, Eurythmics, Frankie Goes To Hollywood e Pet Shop Boys.

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