Dupla de diretoras do Ceará estreia com filme sobre os sentimentos do luto que chega após a perda de uma pessoa bem próxima
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Divulgação
Lidar com a perda é, possivelmente, uma das mais difíceis experiências de nossas vidas. É uma das poucas que é universal: chega para todos e fica cada vez maior, à medida em que os entes queridos e conhecidos falecem ou somem para nunca mais voltar. Esse segundo caso, ao que parece, é o mais dolorido, e é o mote do longa-metragem Quando Eu Me Encontrar (Brasil, 2023), das estreantes de Fortaleza Amanda Pontes e Michelline Helena.
O filme, mais um concorrente exibido na Mostra Competitiva Brasileira do 12° Olhar de Cinema, retrata como a fuga de Dayane muda a vida de sua mãe Marluce (Luciana Souza), sua irmã adolescente Renata (Pipa) e seu noivo Antônio (David Santos). A cantora Di Ferreira interpreta Cecilia, amiga de Dayane e a única que talvez saiba seu paradeiro. Começamos a projeção com um plano da cidade à noite, o mar batendo contra as rochas da praia de Fortaleza. Em off, Marluce e Dayane (de quem só ouvimos a voz) cantam “Preciso Me Encontrar”, o clássico samba de Cartola que tão bem imprime a melancolia brasileira.
Essa escolha musical é, no entanto, o componente mais brasileiro da forma do filme, que não parece certo da história que pretende contar. A abordagem de Pontes e Helena é de uma mise-en-scène estática, competentemente iluminada e que trata os cenários como atos de uma peça, em que conflitos se encerram com uma das personagens se retirando enquanto a outra permanece em cena, imóvel e em silêncio. Não há closes que explorem o rosto das ótimas atrizes e atores do longa, muito menos movimentos de câmera que adicionem materialidade aos eventos de Quando Eu Me Encontrar. A história que nos é contada soa, muitas vezes, plástica, falsa.
Uma decupagem minimalista, é certo, não significa ausência de qualidade ou mesmo preguiça. Tudo depende da história que se quer contar e uma narrativa como essa, que planeja focar nos sentimentos e paixões de três personagens distintas, não é favorecida pela escolha de um olhar tão distanciado à câmera. O poder da imagem é tolhido por uma direção descritiva, que não adiciona discurso às imagens que fotografa. Vez após outra, assistimos a conversas que não parecem reais estampadas sobre cenários que não parecem vividos, que por sua vez são iluminados sem criatividade. Um mundo sem textura, em que todo e qualquer conflito se torna monótono. Há narrativa, há até intenção, mas embaçadas pela falta de expressão da direção.
No entanto, é inegável a potência da atuação do trio de protagonistas, Luciana Souza, Pipa e David Santos. Se há materialidade em Quando Eu Me Encontrar, está na atuação contida de Souza, na raiva juvenil e ressentimento de Pipa, na entrega de um homem que nem sequer percebe o relacionamento que tinha por Santos. É uma pena que não pudemos assisti-los de perto, interpretando falas e comportamentos que lhes entregassem mais densidade, ao invés de retirá-la em nome de uma abordagem superficial de um conflito tão profundo.
A vida suburbana de um professor universitário, sua família nada convencional e o medo da morte nos anos 1980
Texto por Leonardo Andreiko
Foito: Netflix/Divulgação
Muito presente no cenário do cinema americano das últimas duas décadas, o diretor Noah Baumbach construiu sua carreira dedicando-se ao olhar cotidiano, à bagunça das interações contemporâneas e todo o emaranhado psicológico-social que acompanha a condição da vida na contemporaneidade. Com atenção especial aos artistas em conflitos para além da arte – como em Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe (2017), Enquanto Somos Jovens (2014) e História de um Casamento (2019) –, tem uma trajetória de colaborações com nomes como Wes Anderson, Adam Driver e, principalmente, a esposa Greta Gerwig, que é atriz e também diretora.
Após a aclamação de História de um Casamento nos circuitos comercial e de festivais, Baumbach arrisca uma mudança de rumos: ainda de mãos dadas com Gerwig e Adam Driver, volta-se para a adaptação de um romance de Don DeLillo sobre o professor universitário Jack (Driver), sua esposa Babette (Gerwig) e o medo da morte escrito nos anos 1980. Neste filme, o casal tem quatro filhos, cada um com sua exacerbada personalidade, e Jack é um notório hitlerólogo, um dos mais proeminentes estudiosos do líder nazista na América do Norte.
Estruturado em três partes, Ruído Branco (White Noise, EUA/Reino Unido, 2022 – Netflix) toma para si a estrutura episódica de sua contraparte literária. Se em “Waves & Radiation” nossa atenção é voltada para a vida suburbana dessa família e os entraves institucionais da faculdade em que Jack trabalha, “The Airborne Toxic Event” nos leva à alegoria anunciada da gestão de grandes eventos de risco à vida, figurada no vazamento de um gás tóxico sucedido pela desinformação, a confusão e ineficiência estatais e, no fim, o caos generalizado que parece ilustrar o conflito de intenções de todo o longa-metragem. Depois, “Dylarama” conclui a obra com a culminação de temas trabalhados nas duas partes anteriores: a saber, um mistério farmacológico e o conflito moral do “matar ou morrer”. Melhor dizendo, do “matar e morrer”.
Ainda que signatário dessa estrutura tripartite, que permite Baumbach a empregar diferentes tons para cada seção e operá-las como contos distintos, o fio da meada do mistério de Babette, que apresenta falta de memória e outros comportamentos estranhos em virtude do misterioso comprimido Dylar, confunde a estrutura narrativa do longa (afinal, esta é uma história ou são três?) e torna empacadas as diferentes idas e vindas sem rumo aparente.
Não é, contudo, isento das características que compõem o estilo de Baumbach, boas ou más. Seu comentário sobre a vida acadêmica, repleta de picuinhas e insignificâncias, ecoa aquelas muitas tiradas sarcásticas com a classe artística, que dão à sua obra, ao mesmo tempo, uma dimensão ácida e outra enfadonha, em que a pretensão das personagens se volta sobre o próprio filme. A caracterização ingênua e colorida que dá a seus personagens e locações desenvolve um oitentismo suburbano que é, assim como nas parcerias de Baumbach e Wes Anderson, levemente onírico e de um surrealismo contido na aparência de normalidade.
Está nessa dimensão da obra, inserida principalmente na primeira parte do filme, a camada mais divertida de Ruído Branco. Em uma hilária cena em que, tecendo comparações entre Hitler e Elvis Presley, Jack e seu colega Murray (Don Cheadle) estrelam um dramático bate-e-volta a fim de transferir a influência do protagonista para o recém-chegado professor, a espetacularização da tragédia se soma à presença constante do banal nas interações universitárias para formar um retrato preciso, ainda que superficial, da especialização acadêmica.
Mas a faca é de dois gumes. A mesma superficialidade que colore a obra com seus tons pasteis ilustra a má gestão de um discurso, no fim, tão banal quanto aquele que busca espezinhar. E talvez por não se levar a sério, Ruído Branco não nos impele a sentir as sérias consequências presentes em seu arco narrativo. Se o medo da morte está presente ao longo de todo o filme, seja por contradição ou na camada do “claramente implícito”, esse temor se faz ausente nas seções em que a vida suburbana é substituída pelas estruturas do cinema de ação.
Embora murche em algumas de suas intenções e brilhe mais onde Noah Baumbach já está muito bem acostumado a trabalhar, Ruído Branco é uma interessante experiência, ainda que inconstante. Uma visão otimista de sua forma confusa pode ser a seguinte: mesmo que esse não seja um de seus melhores filmes, é animador ver o diretor aspirar frentes distintas em seu cinema e, principalmente, receber a devida liberdade orçamentária para isso.
Oito motivos para não perder um dos dez concertos da turnê de 40 anos de carreira, que trará de volta os sete integrantes da formação clássica
Texto por Abonico Smith
Foto: Bob Wolfenson/Divulgação
Já dizia o velho provérbio: onde há fumaça, há fogo. Depois de algumas pistas deixadas na internet que colocaram os fãs alvoroçados sobre a possível realização de um antigo sonho, eis que tudo vem à tona oficialmente e agora como verdade: sim, os Titãs voltarão a reunir em um mesmo palco a sua formação clássica, com o retorno de quatro integrantes que deixaram a banda ao longo dos últimos trinta anos. Vale lembrar ainda que haverá, nesses shows, uma homenagem ao oitavo membro da trupe, Marcelo Fromer, falecido em 2001.
Não é definitivo nem duradouro este reencontro, claro. Isso será parte de uma turnê que celebra os 40 anos de trajetória deste grande ícone do rock brasileiro. O evento ganhou o nome de Encontro – Todos ao Mesmo Tempo Agora. Ao todo serão dez datas entre abril e junho de 2023. As cidades que receberão o show especial serão, pela ordem, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Florianópolis, Porto Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza, Brasília, Curitiba, São Paulo. A pré-venda dos ingressos começa hoje para quem fez cadastro no site oficial da tour. A venda para os outros compradores tem início no próximo dia 22. Informações sobre preços, locais e cadastro você tem ao clicar aqui. Mais para a frente, ainda haverá a disponibilização de particularidades aos fãs, como peças oficiais de merchandising, NFT e até um grupo de Telegram.
Por tudo isso, o Mondo Bacana elenca oito motivos para você não perder de jeito nenhum uma destas dez apresentações dos agora todos 60+. E não titubeie se você nunca teve a sorte de ver a banda “inteira” de uma só vez – já o autor deste texto foi agraciado por esta oportunidade várias vezes pela TV e in loco entre os anos de 1984 e 1992. Esta poderá ser a última reunião dos sete músicos que escreveram o nome dos Titãs na história o rock nacional.
Pós-punk Rio-São Paulo
O começo da década de 1980 foi de uma efervescência mágica nas praias cariocas e nos inferninhos subterrâneos das ruas da cidade de São Paulo. Eram os anos em que a ditadura militar se esfacelava e se arrastava moribunda no Brasil e, talvez por isso mesmo, toda uma cultura jovem se formava nos grandes centros urbanos. Ainda plenamente insatisfeitos com o cotidiano e sua consequente relação com a sociedade tupiniquim que ainda não parecia querer lhes dar muita atenção, esses jovens procuravam falar, gritar, espernear. No Rio de Janeiro, a verborragia e atitude criativa dos vinte e poucos anos se estendia das praias à lona do Circo Voador e às ondas da rádio Fluminense FM, que botava no ar toscas gravações de fitas cassete de novas bandas e cantores (Blitz, Kid Abelha, Paralamas do Sucesso, Lobão, Sangue da Cidade), ainda longe de qualquer espaço no mainstream artístico nacional. Já em São Paulo, a coisa acontecia no circuito de boates alternativas como Napalm, Rose Bom Bom, Madame Satã e Carbono 14. A estética traduzia para o português muito do que acontecia no eixo anglo-americano em sonoridades, figurinos e penteados. Enquanto esse underground fervilhava de representatividade nos quadrinhos e tiras de jornal criados por cartunistas como Glauco, Laerte e sobretudo Angeli, bandas como Titãs, Gang 90 e Absurdettes, Ira!, Magazine, Mercenárias, Fellini, Akira S e as Garotas que Erraram, Patife Band, Voluntários da Pátria, Inocentes, Violeta de Outono e Ultraje a Rigor (mais agregados que volta e meia vinham de Brasília, como Plebe Rude, Legião Urbana e Capital Inicial) começavam todo um culto e burburinho ao redor de apresentações ao vivo e gravações em cassete da turma. Lojas como a Baratos Afins, cultuado ponto de encontro de apaixonados por música e colecionadores de discos que circulavam pelas grande galerias do centro paulistano, viravam selos e passavam a transformar, aos poucos, essa cena em realidade fonográfica. Comunicadores como Kid Vinil e Serginho Groisman (mais programas musicaisda TV Cultura e constantes matérias dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo) promoviam também todo um oba-oba em torno desses artistas e sonoridades ainda estranhas para os ouvidos da grande massa.
Performance de palco
Os Titãs começaram com nove pessoas, aglutinando gente que vinha de trabalhos anteriores, como a Banda Performática do artista plástico Aguilar, o Trio Mamão e a banda de ritmos caribenhos Sossega Leão. Quando assinaram contrato com a gravadora Warner e passaram a se apresentar em programas de emissoras de TV paulistas (Cultura, SBT Band) em 1984, fecharam a formação em oito. Era, ainda assim, muita gente para dividir um mesmo palco. Alguns praticavam revezamento de instrumentos. Os dois guitarristas (Marcelo Fromer e Tony Bellotto) e o baixista (Nando Reis, na maior parte do repertório) inventavam coreografias sincronizadas para este subgrupo. Já os três backing vocals de cada música (Branco Mello, Arnaldo Antunes e uma terceira posição que trazia às vezes Nando, Paulo Miklos e Sergio Britto) chamavam a atenção com coreografias esquisitas e individualizadas: Branco se esbaldava no pogo, Arnaldo encantava pelos passos robóticos, Paulo já chamava a atenção pelas caretas e gestos que reforçavam sua aura de esquisito. A esbórnia em cena era tamanha que trazia todo um novo significado para aquela leitura rock’n’rollcult de canções de alma brega (“Sonífera Ilha”, “Toda Cor”). Também havia traços de ska e do reggae jamaicano (“Querem Meu Sangue”, “Marvin”) e um pequeno eco de poesia marginal/tropicalista (“Go Back”).
Televisão
Mal o primeiro álbum, homônimo, abria espaço na mídia e trazia uma pequena popularidade aos Titãs, eles já entraram em estúdio para o segundo álbum, agora sob a produção de Lulu Santos, nome escolhido pelos próprios músicos para conseguir fugir da sonoridade pós-punk das bandas da época. E em menos de um ano depois da estreia, o álbum Televisão chegava às lojas revestindo a alma brega do início da banda com um pouco mais de agressividade nos arranjos e nos vocais. A faixa-título era um libelo contra a programação idiotizante das emissoras de TV da época e, ao mesmo tempo, tornou-se um trunfo sarcástico para eles próprios frequentarem programas de auditório da telinha (Hebe, Chacrinha, Bolinha, Raul Gil, Barros de Alencar) e esfregarem na cara dos espectadores toda aquela passividade sem muito questionamento ou inteligência à qual estavam expostos nas camás, sofás e poltronas de sua casa. Além deste grande hit, o disco proveu outros sucessos menores como “Insensível” e o hardcore “Massacre”. Curiosamente duas faixas deste repertório passaram completamente em branco nesta época e somente se transformaram em hits na década seguinte, depois que o grupo se rendeu à moda dos acústicos da MTV Brasil: “Pra Dizer Adeus” e “Não Vou Me Adaptar”.
Cabeça Dinossauro
Alguns indícios já vinham de Televisão, mas o grupo lançou em 1986 seu grande disco de explosão, visceralidade e revolta depois que dois integrantes (Tony e Arnaldo) foram presos em novembro de 1985, sob a acusação de porte e tráfico de heroína. Liminha, que já assinara a supervisão do disco anterior, agora tomou as rédeas da produção destas 13 faixas que traziam o Titãs se esbaldando feito pintos no lixo no território do punk rock. Em uma tacada só, detonavam instituições (“Igreja”, “Família”, “Polícia”). Previam as criaturas odiosas que sairiam dos esgotos décadas depois para tomar conta do noticiário e da política nacional (“Bichos Escrotos”). Vociferavam contra a elite (“Porrada”), as melodias bonitinhas (“AAUU”), a violência do capitalismo selvagem ( “Homem Primata”) e a do Estado contra seu povo (“Estado Violência”). E, segundo o exemplo da obra anterior, apontavam para um futuro próximo da banda na última faixa – “O Que” partia de uma poesia visual-concretista de Arnaldo para brincar com a sonoridade eletrônica que se acentuaria nos dois álbuns vindouros. Com o passar dos anos, Cabeça Dinossauro apenas confirmou sua condição de clássico, um dos maiores trabalhos do rock brasileiro em todos os tempos.
Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas
Em 1987, depois do avassalador sucesso do acesso de fúria de Cabeça Dinossauro, os Titãs – de novo sob a batuta de Liminha – passaram a flertar mais com a eletrônica e os grooves do funk. Ao mesmo tempo, carregava as letras de protestos contra a situação sócio-econômica de um país que prometia um futuro promissor ao deixar para trás a ditadura militar mas ainda rastejava para dar melhores condições a seu povo. Por isso, além da faixa-título, “Comida”, “Desordem”, “Lugar Nenhum”, “Armas Para Lutar”, “Mentiras” e “Nome aos Bois” definem o lado panfletário do discurso, que ainda traz reflexões sobre excessos pessoais (“Diversão”) e polarizações (“Corações e Mentes”). Em tempo: nesses últimos anos o carregamento de bichos escrotos que pipocou aos quatro cantos do Brasil e do mundo já faz urgente uma necessidade da banda fazer uma versão 2.0 de “Nome aos Bois”.
Õ Blésq Blõm
Prevendo o diálogo com as sonoridades regionais brasileiras que daria o tom ao rock nacional da década seguinte, os Titãs, lançaram outro clássico supremo de sua discografia em 1989, também produzido por Liminha. Assumindo cada vez mais a paixão pelas programações, “Miséria” abre o trabalho logo após a vinheta com um breve sample dos repentistas Mauro e Quitéria. A capa, uma colagem gráfica assinada por Arnaldo, voltava a levar a banda ao território punk. Faixas como “Flores”, “32 Dentes e “O Pulso” (uma lista que intercala doenças e situações doentias que servia, justamente como indica o título, para ratificar toda e qualquer forma de vida) ainda mantinham um pezinho do rock, mas outras como “Deus e o Diabo” e “O Camelo e o Dromedário” reafirmavam o crescimento de um novo Titãs, cada vez mais imerso em experimentações, sintetizadores e batidas eletrônicas. Em tempo: o título veio de uma expressão cantada pelo casal pernambucano em uma língua inexistente, que misturava sonoridades do português com as de outros idiomas. O que, esteticamente, combinava demais com o momento sonoro do octeto.
Muito além da banda
Já faz alguns anos que os Titãs hoje tem a formação reduzida a três integrantes originais (Sergio, Branco e Tony). Pouco a pouco, os demais foram deixando o grupo. Arnaldo foi o primeiro, em dezembro de 1992, a optar por seguir uma carreira solo na qual pudesse conciliar a música com projetos literários e de artes gráficas. Entre 1994 e 1995, durante um período de hibernação da banda para descanso das relações pessoais, alguns dos integrantes fundaram o selo alternativo Banguela ao lado dos saudosos produtores Carlos Eduardo Miranda e Vagner Garcia, revelando nomes como Raimundos, mundo livre s/a, Little Quail and the Mad Birds e Maskavo. Paulo e Nando, neste período, também se lançaram “solo em paralelo”. O baixista se separou de vez do coletivo em 2002, dando início a uma cultuada carreira de cantautor, inclusive regravando sucessos seus na voz de sua amiga recém-falecida Cassia Eller. Em 2010, o baterista Charles Gavin, que já tinha dado bons passos no ramo de pesquisador e produtor musical e estava sofrendo sintomas de pânico e depressão, não aguentou mais a vida na estrada e pendurou as baquetas titânicas. Seis anos depois, Paulo partiu de vez, agora para se equilibrar entre as facetas de cantor solo e ator no cinema e televisão. Os três que ficaram, entretanto, também fizeram bons trabalhos longe da marca Titãs. Sergio e Branco, naquela parada de meados dos 1990, criaram o grupo de pós-punk Kleiderman. O primeiro também chegou a lançar discos solo depois disso. O segundo apostou as fichas na criação de trilhas sonoras para peças teatrais e programas de TV. Já Tony abraçou outra grande paixão, a literatura. Já publicou 12 livros, sendo quatro do detetive Bellini (dois transformados em filme para o cinema). Sua mais recente obra, Dom, também se transformou em série de dramaturgia para o streaming, com roteiro também assinado pelo autor.
Marcelo Fromer
Aluno de violão de Luiz Tatit (professor, linguista e músico do grupo Rumo) na adolescência, apaixonado por gastronomia (publicou o livro Você Tem Fome de Quê? em 1999) e torcedor fervoroso do São Paulo (a loucura apor futebol levou-o ao posto de comentarista do canal esportivo SporTV durante a Copa do Mundo de 1998, frilas de cronista do jornal Folha de S. Paulo e uma biografia inacabada do ex-centroavante Casagrande), Fromer morreu aos 39 anos, no dia 13 de junho de 2001, após ser atropelado por um motoqueiro nos Jardins, em São Paulo. A banda, recém-contratada pelo selo Abril Music, braço fonográfico da Editora Abril que pouco durou no mercado mas teve atuação intensa e lançou discos de nomes como Los Hermanos, Ira!, Capital Inicial, CPM 22, Erasmo Carlos, Inocentes, Ultraje a Rigor, mundo livre s/a, Marina Lima, Rita Lee, Gal Costa, Alceu Valença e Marcelo Nova), estava prestes a começar a gravar as 16 faixas que sairiam no álbum A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana. Abalado pelo trágico acontecimento, o grupo chegou a cogitar encerrar suas atividades. Se isso realmente acontecesse, não sairiam mais clássicos para o repertório dos Titãs como “Epitáfio”, “Isso” e a música-título. Detalhe: este foi o último disco de estúdio do grupo produzido por Jack Endino (Nirvana Soundgarden, Mudhoney), que já havia feito com os brasileiros Titanomaquia (1993), Domingo (1995) e Volume Dois (1998).
Longa brasileiro sobre mulher trans que luta por um casamento religioso ganha prêmios mas não deixa de ser desastrado no percurso narrativo
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Pandora Filmes/Divulgação
Na arte contemporânea, assim como no cinema, o século 21 trouxe consigo uma mudança nos paradigmas que definem o que é a ‘boa arte’ e a ‘arte ruim’. Em linhas gerais, a parte relevante ao discurso não é mais a forma com que ele é estabelecido, mas o tema sobre o qual versa. A arte toma seu lugar no mundo não somente como expressão do sujeito, mas sua expressão sobre algo.
No cinema, a situação é a mesma, a se demonstrar pelas recentes polêmicas e mudanças de rumo sobre diversidade e inclusão na indústria. Em um cenário em que a vivência de quem está diante e detrás das câmeras é essencial para a compreensão do filme enquanto obra, a autoficção e o retrato de si vêm ganhando corpo e notoriedade. Sobre o que as vozes que nunca tiveram o direito de portar o megafone das artes falarão senão delas mesmas?
Nesse panorama, Paloma (Brasil/Portugal, 2022 – Pandora Filmes) ganha tração como um dos fortes nomes do cinema nacional. Desde sua estreia no Festival de Munique de 2021, o longa sobre uma mulher trans que luta por um casamento religioso foi exibido ao redor do mundo e comemorou os prêmios de Melhor Filme da mostra competitiva e Melhor Atriz do Festival do Rio 2022 para Kika Senna, que interpreta a personagem-título. O destaque, contudo, é que a situação não é tão autoficcional assim.
Inspirado em uma notícia de jornal que dá a premissa já citada, Paloma se constrói narrativamente como uma ficção atenta à realidade, tecendo em si mesmo um comentário sobre o mundo sem fazer do concreto seu objeto de análise. A protagonista é mãe da pequena Jenifer (Anita de Souza Macedo) e vive junto de Zé (Ridson Reis), um pedreiro que não parece embarcar no sonho do casamento com véu e grinalda. Trabalha no campo, tem amigas por lá e mantém forte contato com a comunidade trans de Saloá, cidade no Pernambuco onde vive. Ao apresentar Paloma com profundidade e complexidade, o longa-metragem não comete o erro de simplificar sua protagonista e, com isso, prejudicar a narrativa.
Paloma ama, trabalha, cuida. Mas também erra, e tais erros dão o andar da carruagem à história do filme. Marcelo Gomes, que dirigiu Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), é diretor e corroteirista deste longa (junto de Gustavo Campos e Armando Praça) e aqui opta por meandros entre a narrativa convencional e o estudo de personagem contemporâneo (aquele em que o tema é a lente focal ao mesmo tempo que seu próprio objeto). A decupagem é simplista e as sequências são conduzidas com um ou dois planos e pouco dinamismo clássico, como o jogo de campo/contracampo e planos de contexto (os planos gerais que nos apresentam o espaço da cena). Isso confere à ação um tom muito mais teatral, e ao ritmo do longa um senso de lentidão – embora o marasmo pareça buscar uma atmosfera que incita a reflexão.
Ainda, na medida em que as cenas se iniciam e terminam no decorrer dos diálogos – o que nos dá a sensação de estarmos sempre atrasados ou saindo muito depressa –, a presença da câmera no espaço é berrante: estamos conscientemente adotando a perspectiva da câmera, o olhar da lente sobre a história. Sua imobilidade faz de si um corpo existente no espaço; a montagem é também realizada nos planos, ações e reações que essa inércia nos tira.
A forma do filme, então, suscita reflexão e, embora apresente problemáticas, não deixa de se fazer parte integral do discurso e demarcar muito bem a autoralidade de Marcelo Gomes, cuja carreira desponta como uma das mais sólidas desses 20 anos. Por outro lado, a narrativa solta do longa-metragem traz consigo outra série de complicações à estrutura do filme.
A partir daqui me debruço sobre a história retratada e, ainda que busque evitar spoilers, a oclusão de seus elementos impossibilitaria a clareza do meu argumento. Então, prossiga com certa atenção se prefere, assim como eu, saber o mínimo possível de um filme antes de vê-lo.
Paloma é um filme desastrado. Seu percurso narrativo é dissonante; ou seja, há relações esparsas entre uma determinada cena e a cena seguinte de modo que, se já empacamos na narrativa por estar sempre fora do tempo (sempre atrasados ou adiantados), a situação piora pela falta de continuidade que aqui se instaura. E embora exista uma preocupação com a premissa (mulher trans deseja casar na igreja), esse não é o principal vetor da história contada.
Destaco alguns exemplos. Logo no começo da trama, quando Paloma verbaliza pela primeira vez para Zé seu desejo de casar-se de véu e grinalda, cita a conexão especial que teve com o padre no casamento de uma amiga. “Olhava para mim, parecia que falava diretamente para mim”. No entanto, há pouco vimos a cerimônia, e o que se filma é a manifestação visual do desejo que viria a se concretizar na fala – Paloma fita o vestido que ajudou a ajustar e transborda em expectativa.
Ainda, conflitos são estabelecidos ao léu e jamais tensionados. Desde o início, Zé deixa clara sua indisposição em seguir com o casamento. Prefere gastar o dinheiro com uma moto nova e se refere ao casório como “coisa tua”. Em outras palavras, durante todo o filme, Zé não parece querer estar lá. Contudo, o embate desenhado no decorrer do longa só é concretizado no clímax da narrativa; e tão logo se coloca e já é resolvido.
Por fim, ocorre uma importante morte no andar da trama, mas sua repercussão é displicente e não condiz com os laços construídos pela história. O impacto parece, no fim das contas, nulo. E houve claras oportunidades de referenciá-la, o que tornaria um comentário “por fazer” em uma sólida e forte demonstração da barbárie à qual é submetida a comunidade trans no Brasil, o país que mais mata pessoas transexuais há 13 anos. O exemplo final é uma confusão de intenções, uma traição que se inicia com a tensão de um assédio e termina sem conclusão, um conflito irresolvido para sempre.
Paloma é um lançamento interessante deste ano, com fortes atuações e um esmero formal que se desgarra do panorama contemporâneo sem desgarrar-se completamente. Um mérito, por assim dizer. No entanto, o trato hesitante e embargado de sua história deixa evidente uma tentativa de desgarrar-se da narrativa convencional, novamente, sem fazê-lo completamente. Uma mácula, infelizmente.
Projeto documental acompanha uma das lideranças das ocupações realizadas por estudantes gaúchos durante o ano de 2016
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Galo de Briga Fimes/Divulgação
Em 2016, centenas de escolas de ensino médio foram ocupadas ao redor do Brasil. Nossa modesta Primavera Árabe, aquela chamada Primavera Secundarista, inseriu-se no contexto arisco da defesa da presidente Dilma Rousseff contra o golpe que sofria por parte do Congresso Nacional, de Michel Temer e demais setores dos três poderes – “Com o Supremo, com tudo”, como imortalizou Romero Jucá.
Nesse contexto, mas também reivindicando mais atenção às políticas públicas de educação, o Brasil foi tomado pelo breve protagonismo da juventude. Se o corajoso movimento não rendeu muitos frutos, afinal a democracia atual se encontra sob ataques muito mais graves que o neoliberalismo do governo Temer, ainda nos propicia uma série de reflexões.
Observando de perto a movimentação das ocupações gaúchas, Hamlet (Brasil, 2022 – Galo de Briga Filmes) é um projeto documental que acompanha Fredericco Restori, uma das lideranças dos ocupantes de uma grande escola de Porto Alegre. A narrativa dispersa é muito mais uma coleção de momentos – plenárias, assembleias, reuniões entre ocupantes, palestras e até a hora do videogame – que uma representação ampla e didática do período da ocupação.
Num primeiro momento, a câmera errática dirigida por Zeca Brito parece incerta do que quer filmar. O registro histórico se inicia numa grande plenária, em que já desponta a presença de Fredericco. Embora este seja nosso protagonista desde a primeira cena do longa-metragem, Brito parece muito mais interessado na coletividade dos ocupantes do colégio, um conjunto de sem nomes que insiste na “horizontalidade democrática”, por assim dizer, e nunca é gravada só.
O foco constantemente desregulado, a princípio, parece sintoma de uma operação de câmera ansiosa em capturar a essencialidade do momento, mas logo se denuncia em seu exagero: ao compor as sequências cotidianas da ocupação, assim como suas seções mais dialógicas, Zeca Brito escancara seu próprio processo de formalização, ainda que busque escondê-lo sob um fino véu de naturalismo. Partimos do “parece ser” para o “quer parecer ser”, um movimento que não é ruim em si mesmo, mas interessante por nos lembrar que documentário não é realidade – é cinema.
Num segundo momento, esteticamente mais interessante, Hamlet assume seu discurso mais narrativo que repórter, utilizando ligações telefônicas de Fredericco como meio para a exposição de seu conflito interno, que também é refletido em sequências subjetivas. A bem da verdade, esse estatuto da obra sempre esteve presente, já que o filme se inicia, antes do registro histórico das ocupações, com uma conversa entre Fredericco e um homem mais velho tecendo comparações entre sua condição de liderança e a dúvida central de Hamlet: “ser ou não ser, eis a questão”.
Se o filme não esconde a condição de líder que caracteriza Fredericco, sua ideologia juvenil, a princípio, recusa-se a aceitá-la. Ao longo de Hamlet, sua posição vai de “precisamos manter a horizontalidade para não tornar este um movimento fascista” para “eu queria ser líder, e era líder, mas não tinha coragem de admitir”. A ingenuidade da mobilização secundarista permeia todos os acontecimentos do filme – desde a rusga desmobilizada com entidades de base da categoria, como a UBES e a UNE, até a escuta atenta aos ensinamentos do grande crítico e cineasta brasileiro Jean-Claude Bernadet sobre a conjuntura política.
Justamente por essa inerente ingenuidade, alguns dos momentos aqui retratados conferem ao filme um curioso frescor: um “vai chorar” que vaza na captação sonora durante um protesto; o canto “Bololo ha ha, quero ver desocupar”, eco da relação entre política e cultura que é muito única a cada geração que a vive; a incessante descoordenação da massa durante momentos de tensão, em que o silêncio é um episódio raro que, quando acontece, é muito efêmero.
Contudo, se esses momentos evocam no espectador não mais que a curiosidade e, quando muito, um sorriso de canto de boca, igualmente não se sente o peso que se propõe em Fredericco. A deslocada comparação com Hamlet, que pretende dar tom ao filme, só se dá com clareza na última cena, numa fraca articulação entre o concreto (a ocupação) e o abstrato (as conjecturas posteriores sobre a relação entre vida e arte) que não oferece material suficiente para se realizar. De fato, às vezes a vida imita a arte, assim como a arte imita a vida. Mas nem sempre.