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O Esquadrão Suicida

Sob o comando do diretor James Gunn, franquia ganha reboot e volta psicodélica às telas e repleta de criaturas bizarras

Texto por Andrizy Bento

Foto: Warner/Divulgação 

A DC é falha na construção de um universo cinematográfico estruturado e compartilhado nas telas, sendo pouco eficiente ao tentar conectar suas tramas devido à falta de unidade entre os filmes que compõem o DCEU (termo não oficial utilizado para se referir, em inglês, ao Universo Estendido DC). Em contrapartida, ganha do rival, o MCU (Universo Cinematográfico da Marvel), em estilo e por apostar em abordagens mais autorais em seus longas, distanciando-se do formulaico e da zona de conforto da Marvel Studios. A longeva parceria entre a DC e os estúdios Warner Bros investe em produtos ousados e se mostra mais disposta a correr riscos que, por vezes, acabam por condenar seus filmes nas bilheterias.

Portanto, ninguém pode dizer que a DC não tenta. Abraçar propostas diferenciadas, ainda que se trate de um negócio arriscado, é louvável. Enquanto as realizações do bem-sucedido MCU são o que chamamos de filmes de produtor ou de estúdio, é visível que os cineastas por trás dos longas-metragens da DC buscam imprimir seu estilo e assinatura nas aventuras que levam às telas protagonizadas pelos heróis da marca. Assim, temos filmes mais sérios, sombrios e empolados como O Homem de Aço (2013) e Batman Vs Superman: A Origem da Justiça (2016), propostas que o público, em sua maioria, rejeitou; entretenimentos de fim de semana direcionados à toda família, que se aproximam mais da identidade de filmes de super-heróis que o público se acostumou a ver nas telas, dosando bem elementos como ação, comédia e romance, que é o caso dos dois longas da Mulher-Maravilha (2017 e 2020) e Aquaman (2018); um longa que aposta em uma atmosfera despretensiosa e infanto-juvenil a fim de capturar o interesse dos mais jovens pelos filmes da casa, apostando na reinvenção e modernização de um herói old school, como Shazam! (2019); um híbrido entre a gravidade de Snyder e o cartunesco de Joss Whedon, que sofreu na transição de diretores devido aos problemas de ordem pessoal que o primeiro enfrentou, que é o caso de Liga da Justiça (2017); e até alguns com atmosferas mais experimentais e narrativas tresloucadas, como Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa (2020) e este novo O Esquadrão Suicida (2021).

O marginalizado grupo que surgiu nas páginas dos quadrinhos em setembro de 1959, integrado por delinquentes altamente perigosos que topam se aventurar em missões sigilosas e suicidas em busca de de liberdade – ou ao menos da redução de suas penas na prisão – tem sua segunda chance nos cinemas após o fiasco de 2016. Dirigido por David Ayer, Esquadrão Suicida (sem o artigo na frente do nome), foi detonado por público e crítica. Dessa vez, dirigido por James Gunn, cineasta que assinou os dois longas dos Guardiões da GaláxiaO Esquadrão Suicida (The Suicide Squad, EUA/Canadá/Reino Unido, 2021 – Warner) manteve poucos nomes do primeiro filme. Obviamente, Margot Robbie (uma das poucas escolhas que deram certo) reprisa seu papel como Arlequina, desta vez ainda mais insana. A ótima Viola Davis ressurge como a moralmente ambígua Amanda Waller, mentora do Esquadrão, uma das escalações mais eficientes. Joel Kinnaman é outro que reaparece, interpretando Rick Flag. Sem grande destaque, Jai Courtney também repete seu papel como Capitão Bumerangue.

O grupo desajustado de vilões ainda se beneficia de acréscimos ao elenco, que é o caso de Idris Elba interpretando DuBois, o Sanguinário; John Cena, na pele do Pacificador; Sylvester Stallone, emprestando sua voz para o Tubarão-Rei Nanaue; David Dastmalchian, como Abner Krill , o Homem-Bolinha; Daniela Melchior, vivendo Cleo, a Caça-Ratos 2, com direito a um rato de estimação chamado Sebastian (dublado por Dee Bradley Baker); Peter Capaldi, assustadoramente brilhante como Pensador; e Alice Braga na pele de Sol Soria, a líder de uma facção rebelde.

“Típicos americanos. Mal chegam e já vão atirando”

A abertura frenética introduz uma equipe descartável que faz jus ao título de O Esquadrão Suicida, utilizada como mera distração enquanto a equipe original executa sua missão. Como se tratam de personagens com pouco tempo de tela, isso impede que o espectador chegue a se afeiçoar a algum deles. Contudo, essa amostra visceral de carnificina durante a introdução já dá uma ideia ao espectador do que serão as próximas duas horas de filme: alto teor de sangue, violência gráfica e humor corrosivo que tomam conta da tela. O novo Esquadrão Suicida ainda alia a narrativa sombria a uma estética psicodélica, lançando mão de uma cartela cromática intensamente colorida porém funcional e injetando doses cavalares de acidez em seu texto.

A ação ocorre no fictício Corto Maltese, pequeno país insular próximo à costa da América do Sul. O objetivo da equipe é se infiltrar em Jotunheim, instalação científica que abriga o Projeto Estrela-do-Mar, um misterioso experimento criado durante a 2ª Guerra Mundial e que, segundo as fontes confiáveis que abastecem Waller de informações, tem procedência extraterrestre. Nas mãos erradas, porém, ela oferece risco de catástrofe global. Waller, então, recruta novos integrantes para seu Esquadrão e cabe ao grupo destruir todos os vestígios do projeto.

A trama resgata e utiliza personagens bizarros e obscuros das HQs, que só poderiam ter a oportunidade de brilhar e fazer alguma diferença nas telas em um filme da estirpe de O Esquadrão Suicida, onde o tom autorreferente e autossatírico impera. A produção é repleta de sequências de ação inverossímeis, passagens indigestas e uma overdose de cenas absurdas temperadas com sangue, recheadas de mutilações e que culminam em uma tremenda sinfonia de caos e destruição. Ainda investe em tiradas cômicas bem pontuadas que conseguem arrancar risadas genuínas do público, muitas delas vindas da personagem de Margot Robbie. A cinematografia elegante compõe planos engenhosos, com movimentos de câmera inteligentes e certeiros, garantindo um visual arrojado capaz de surpreender o espectador. Destaque para uma determinada sequência de luta que é visível através do reflexo de um capacete – sem dúvida, uma das mais memoráveis do ano.

É fato que nem tudo funciona. Boa parte da passagem que elucida o drama da Caça Ratos 2, uma cena constrangedora na pista de dança e a sequência com timing arrastado em que Nanaue faz “novos amigos estúpidos” (bem em meio ao clímax do longa), poderiam ter sido cortadas na ilha de edição, pois são momentos que soam deslocados na trama. Sem contar os excessos da trilha sonora e o quanto alguns personagens parecem guardar ecos das figuras apresentadas em Guardiões da Galáxia (não é difícil se pegar fazendo associações entre Nanaue e Groot, por exemplo). Porém, seus méritos mais do que compensam essas e outras falhas.

Com um roteiro objetivo, extremamente simples, mas bem costurado, reserva espaço considerável em meio ao humor e às sequências de ação, para tecer uma crítica afiada à hipocrisia e hegemonia norte-americana em situações de guerra, O governo americano aparece, como de praxe, pregando uma falsa ideia de paz que se trata de pura estética, revestindo-se de uma aura pacifista para encobrir sua participação em esquemas de corrupção e atos bárbaros. Nesse sentido, é no personagem do Pacificador que o texto alcança um simbolismo perfeito. James Gunn foi a escolha ideal para fazer o reboot desta franquia nos cinemas. O diretor já havia mostrado que era bom em conduzir tramas fantásticas, repleta de criaturas bizarras, com muito bom-humor, mas conferindo humanidade aos personagens e plausibilidade ao enredo – como é possível observar nos longas dos Guardiões da Galáxia. Aqui, além de dosar de maneira assertiva os elementos dramáticos, Gunn parece ter tido mais autonomia no que confere tanto às escolhas narrativas quanto visuais, fazendo prevalecer sua assinatura. O resultado é um filme psicodélico, inventivo, experimental, ousado e altamente divertido. A chance que o Esquadrão Suicida merecia na telona.

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Roma

Oito motivos para cair de amores pelo novo longa-metragem escrito e dirigido pelo mexicano Alfonso Cuarón

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Texto por Abonico R. Smith

Foto: Netflix/Divulgação

Desde o último dia 14 de dezembro já está disponível na Netflix, o mis novo filme do diretor e roteirista mexicano Alfonso Cuarón. Primeira obra do artista após o badalado Gravidade, o novo longa-metragem também vem a reboque de um grande hype. Festejado pelos críticos de todo o mundo com as mais altas cotações de suas resenhas, Roma traz motivos de sobra para não apenas para o oba-oba em torno de si, mas também para as polêmicas a respeito de apontar para novos caminhos para o cinema, nem que, para isso, paradigmas sejam quebrados em todos os sentidos. Inclusive no de dar um toque mais artístico ao que é extremamente popular, propondo a saída do quadrado e uma luz que aponta para bem longe do que é simplesmente comercial. E o Mondo Bacana apresenta abaixo oito motivos para você cair de amors pelo filme.

Tom autobiográfico

Muito do que costura a história da babá Cleo e da família de classe média de quatro filhos e pais professores universitários veio das próprias vivencias e memórias do roteirista e diretor Alfonso Cuarón – tanto que ele não apenas se autorretrata em um dos meninos mais novos que habitam a casa número 21 da Rua Tapeji do bairro Roma, na Cidade do México como também dedica, antes dos créditos finais, a obra a Libo, a Cleo da vida real. Isso explica toda a ternura com que ele trata a personagem central. E nada mais atraente do que toda a sinceridade autobiagráfica imposta por Cuarón ao seu filme.

Yalitza Aparicio

Cleo é uma jovem analfabeta que mora nos fundos da casa de seus patrões e passa todos os dias em função dos afazeres em torno das quatro crianças da casa. Veio para a cidade grande ainda na adolescência para trabalhar na metrópole. Não perdeu a ingenuidade tampouco as referências de sua origem, a região pobre de Oaxaca, situada ao sul do país. Entretanto, impõe-se com simplicidade no dia a dia, mantendo a ordem de toda uma engrenagem sem nunca revelar a sua real importância para toda a estrutura, Para interpretar a personagem, Cuarón escalou Yalitza Aparicio, professora infantil também oriunda de Oaxaca e sem qualquer experiência anterior como atriz, tampouco havia visto ou sabia o nome de algum dos filmes anteriores do diretor. A sua Cleo pouco diz palavras durante as duas horas do filme. O silêncio pode imperar em boa parte do tempo, mas é inegável que olhares, postura e gestos falam muito. Yalitza acabou não sendo indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz dramática e se ficar de fora das outras premiações da temporada (inclusive do Oscar) isso será uma grande injustiça. Outro detalhe: Yalitza fala várias vezes no dialeto mixtec, característico de sua região.

Roteiro oculto

Cuarón era a única pessoa no set a saber todo o roteiro e a direção que cada personagem tomaria. Os atores só recebiam as suas falas no próprio dia das filmagens, apenas um pouco antes da câmera começar a rodar.  O objetivo era garantir a maior espontaneidade possível de seu elenco, sobretudo quanto às reações ao que se passava em cena. O que se reflete de modo positivo durante todo o longa, sobretudo em alguns dos momentos decisivos da trama. Se você quiser conhecer mais a fundo o roteiro, ele foi disponibilizado por Cuarón, tanto em inglês quanto em espanhol, e pode ser lido aqui.

Nostalgia do cinema

Entre as reminiscências da infância de Cuarón o cinema aparece de maneira clara e cristalina dentro da história. Como válvula de escape para os problemas da vida, alguns de seus personagens vão duas vezes a um dos principais cinemas da Cidade do México. Yalitza é abandonada pelo namorado no meio de uma sessão de A Grande Escapada  (1966). Outra hora, fica bem claro o quanto o filme Sem Rumo no Espaço (1969) fascinou o futuro diretor de Gravidade. O mais legal é perceber o quanto uma ida ao cinema mexia com as pessoas. As instalações monumentais, a entrada glorificante, sempre cheia de pessoas e ambulantes ao redor (vendendo de pipocas a balões), e a ligação direta com a calçada e a grande avenida talvez não passem de meras elocubrações inverossímeis para uma geração que já nasceu mecanizada com a ida a um multiplex insípido incrustado em um shopping center ou mesmo o conforto total do streaming no sofá da sala ou na cama do quarto. Este último detalhe ainda se mostra um completo contrassenso quando vem a reflexão de que Roma é um filme que glorifica a experiência do cinema de rua que quase todo mundo verá sem precisar sair de casa.

Autorreferências

A citação a Gravidade (2013) pode aparecer de modo bem explícito lá pela metade final, mas não é a única autorreferência feita nele por Cuarón. A cena do parto de Cleo é similar à de Filhos da Esperança (2006). Outra coisa comum a Filhos da Esperança e Romaé o uso do mantra “Shantih Shantih Shantih” (“paz, paz, paz”). Além de marcar o retorno do diretor ao idioma e o cinema mexicano após dezoito anos, Roma também tem a ver com E Sua Mãe Também (2001) na hora em que a mãe reúne os filhos em um bar ao ar livre perto da praia para contar a eles que seu pai os abandonou.

Subtrama politizada

Halconazo é um dos mais tristes episódios sociopolíticos mexicanos no Século 20. Ocorreu no dia 10 de junho de 1971, durante as celebrações do feriado de Corpus Christi. Estudantes protagonizaram uma grande manifestação pública pelas ruas da Cidade do México, em protesto contra recentes medidas tomadas pelo presidente Luis Echeverría Álvarez e seus comparsas nos governos nacional e regionais. Cento e vinte manifestantes (número divulgado oficialmente, embora as suspeitas sejam de uma contagem ainda maior) foram cruelmente assassinados neste dia por membros de um exército paramilitar formado por civis exaustivamente treinados com artes marciais e armas de fogo para reprimir os opositores. Aos poucos, o Halconazo vai se desenhando na história de Cuarón. Primeiro quando Cleo retorna a Oaxaca e acaba assistindo um grande treinamento coletivo realizado em um campo de futebol de várzea e que, de certa forma, acaba se esgueirando rumo ao ridículo. Depois, no clímax desta subtrama, envolve-se como testemunha em um chocante caso de disparos à queima-roupa em um líder estudantil que tenta, em vão, salvaguardar sua vida escondendo-se na mesma loja de móveis em que a mãe de sua patroa a leva para escolher um berço para o bebê que carrega na barriga. O nome Halconazo vem de Los Halcones (Os Falcões, em espanhol), o grupo clandestino secretamente treinado secretamente – inclusive com a ajuda do governo dos Estados Unidos – para combater os frequentes protestos civis e estudantil realizados por todo o México naquela época. O uso do Halconazo em Roma serve como o clímax de uma série de denúncias de desigualdades sociais realizada no decorrer da trama.

Cinematografia de primeira

O convite fora feito inicialmente para o compatriota Emmanuel Lubezki, com quem já trabalhara antes em Gravidade e Filhos da Esperança. Diante da impossibilidade do amigo assumir o compromisso em Roma, Cuarón decidiu ele mesmo assinar pela primeira a fotografia de um filme. Não poderia ter feito a estreia em melhor estilo. Rodado em 70mm, Roma é um delírio para os olhos dos cinéfilos. Todo em preto-e-branco e com seu drama familiar espalhado por cenas cotidianas em casa ou nas ruas, começa sugerindo uma bela homenagem ao neorrealismo italiano e seus ícones (Visconti, Pasolini, Rosselini, De Sica). Não por acaso, o título faz uma ligação sináptica com o nome da capital desse país. Mas a fotografia de Roma vai além. Através de lentos e frequentes travellings, a câmera nunca para de os ambientes da história e transformando as locações em personagens tão importantes quanto os de carne e osso. Tanto quanto fixar-se nas ações e nos diálogos vale muito a pena deixar os olhos percorrerem tudo o que está ao redor e é dito apurada e silenciosamente por objetos, móveis, paredes, carros, aviões e figurantes.

Leão de Ouro

Impedido de ser inscrito em Cannes, que só permite filmes concorrentes que possam vir a ser lançados no cinema em um determinado intervalo de tempo posterior ao evento, Roma acabou abocanhando o Leão de Ouro, o prêmio máximo de outro importante festival europeu de cinema. Ao comentar a vitória em Veneza, ocorrida no mesmo dia de aniversário de Libo, Alfonso Cuarón disparou, em tom de brincadeira: “é seu presente e eu te cantaria ‘Parabéns Pra Você’, mas não vou ofender os ouvidos de toda esta gente”. No ano passado, o vencedor de Roma foi A Forma da Água, do também mexicano Guillermo Del Toro e que meses depois levou o Oscar de melhor filme. Aliás, a indicação de Roma aos Academy Awards já está sendo bastante esperada e é considerada a mais alta aposta já feita pelo serviço mundial de streaming, nos últimos anos “banido” da categoria principal pela rixa com os principais estúdios que ainda apostam nas bilheterias tradicionais.