Segunda temporada da série que explora a aventura no mundo do turismo luxuoso e sua fauna desconcertante encanta os olhos
Texto por Taís Zago
Foto: HBO Max/DIvulgação
Eu preciso confessar para vocês que a primeira temporada de The White Lotus, vencedora de onze Emmys em 2022, à primeira vista, não me empolgou muito. O elenco é inegavelmente espetacular, em especial as atuações de Murray Bartlett como Armond (o gerente da filial havaiana da franquia de hotéis de luxo) e Jennifer Coolidge, como a insensível, autocentrada e deprimida milionária Tanya. O enredo sob o sol escaldante do Havaí, apesar de multifacetado, causou-me incômodo, talvez pela simplicidade dos seus temas. Possivelmente, também, eu não tenha levado em consideração que durante sua concepção e realização estávamos vivendo tempos pandêmicos – o auge da produção data de meados de 2021, e, dadas as condições e as restrições internacionais e sanitárias, foi feito um esforço para criar um conteúdo de qualidade da forma mais segura e rápida possível. O ator, autor, produtor e diretor Mike White, mais conhecido por ter escrito especialmente para Jack Black o blockbusterEscola de Rock (2003), conseguiu criar uma trama em um ambiente relativamente hermético – a cadeia White Lotus é uma espécie de Club Med do nouveau riche norte-americano – e unir de forma interessante drama e humor macabro com bastante equilíbrio.
Na segunda temporada de The White Lotus (EUA, 2022 – HBO Max), com maior liberdade tanto criativa quanto espacial, Mike nos leva para a sede siciliana da cadeia da flor exótica. Temos diante de nós uma nova equipe de funcionários locais trabalhando no hotel e novos hóspedes a serem paparicados sem restrições. O formato da série nos lembra uma versão Upstairs, Downstairs (1971) contemporânea – sucesso britânico da década de 1970 cujo formato televisivo influenciou várias produções, entre elas a festejada série Downtown Abbey (iniciada em 2010), onde os dramas da crew do hotel têm o mesmo peso na narrativa dos dramas dos privilegiados visitantes.
Como personagens recorrentes da primeira temporada temos apenas a confusa Tanya (Jennifer Coolidge) e seu “novo” marido Greg (Jon Gries). Tanya chega ao encantador resort com uma nova assistente a tiracolo, Portia (Haley Lu Richardson). Junto a ela no barco estão dois casais de jovens amigos milionários – Cam (Theo James) e a esposa Daphne (Meghann Fahy), Harper (Aubrey Plaza) e o marido Ethan (Will Sharpe), completando a trupe dos bem-sucedidos temos os Di Grasso – o pai Domenic (Michael Imperioli), o avô Bert (F. Murray Abraham) e o filho/neto Albie (Adam DiMarco). Na frente do comando dos funcionários do hotel fica a gerente italiana Valentina (Sabrina Impacciatore), que nessa temporada assume o papel que Bartlett interpretou na primeira temporada. Completam o elenco ainda as duas garotas de programa locais Luccia (Simona Tabasco) e Mia (Beatrice Grannò).
Mike White não nos economiza no quesito encontros e desencontros. O roteiro possui várias reviravoltas e requisita a nossa atenção aos detalhes, às vezes, escondidos nas próprias imagens paradisíacas e objetos luxuosos. Repetindo o formato da primeira temporada, iniciamos essa jornada com mais corpos sendo encontrados. Do primeiro capítulo, então, voltamos no tempo até a chegada dos turistas ao hotel onde percorremos todo o caminho de volta à cena inicial. Um formato que vagamente lembra a antiga série Ilha da Fantasia, onde os visitantes usam suas férias para trabalhar seus problemas pessoais, dificuldades de comunicação, mistérios e conflitos familiares que a rotina do dia a dia teimava em enterrar.
As atuações são um deleite à parte. Todos os atores italianos merecem aplausos de pé, principalmente Sabrina, Simona e Mia. A leveza e a pungência do humor desse país dão à segunda temporada exatamente o tempero exótico que faltou à antecessora. Gargalhamos do absurdo, assim como gargalhamos do desespero. Ao mesmo tempo nos comovemos e somos encantados por um charme tão natural e genuíno que pensamos que em Taormina, o pitoresco vilarejo siciliano, tudo é permitido.
Visualmente, The White Lotus é uma série de tirar o fôlego. A fotografia, a música, a ambientação, tudo nos leva a viajar pelo mundo do luxo dos resorts e dos cenários de nossos sonhos. É o olhar do turista e, portanto, também há um amontoado de clichês bem selecionados, como um catálogo de uma agência de viagens. A Sicília nos é mostrada pelos olhos encantados dos norte-americanos – com vulcão, praias de água turquesa, palazzos decadentes cobertos de ouro e pinturas renascentistas, vinhedos e ilhas rochosas cheias de mistério. White também não poupou recursos para nos alimentar os olhos. Por outro lado, também não economiza recursos ao esfregar na nossa cara a amargura, a feiúra e a traição latentes no âmago de seus personagens. De novo, não existem aqui mocinhos e bandidos: existem pessoas que ora nos encantam ora nos causam repulsa com suas atitudes. E nós, de uma distância segura, rimos muito de tudo isso.
Em uma entrevista recente, o criador explicou que o tema da primeira temporada no Havaí foi o amor, o da segunda na Sicília foi o sexo e que o da terceira será a espiritualidade. Com isso, já nos deixa na expectativa de qual paraíso desse mundo será o novo destino e na certeza da confirmação da produção da próxima aventura no mundo do turismo luxuoso e sua fauna desconcertante.
Neste último dia 13 de março foi anunciada a morte do ator William Hurt, aos 71 anos de idade, de causas naturais. O ator norte-americano deixou uma extensa trajetória com seu nome nos créditos de interpretação de 106 filmes.
Para os brasileiros, o mais conhecido e importante foi, com certeza, O Beijo da Mulher Aranha. Na produção de 1985, com produção dividida entre Brasil e Estados Unidos e cenas dirigidas por Hector Babenco em São Paulo, sua presença em cena foi tão esfuziante que arrebatou o Oscar de melhor ator daquela temporada.
Em homenagem a Hurt, o Mondo Bacana enumera os oito trabalhos mais significativos de toda a carreira, marcada por uma série de grandes longas-metragens nos anos 1980, praticamente um emendado após o outro.
Corpos Ardentes (1981)
Lawrence Kasdan escreveu o roteiro de dois filmes marcantes do início dos anos 1980: O Império Contra-Ataca e Os Caçadores da Arca Perdida. O passo seguinte natural seria estrear como diretor e ele optou por fazer uma releitura de Pacto de Sangue, clássico filme noir dirigido em 1944 por Billy Wilder. Em Corpos Ardentes, acompanhamos o dia a dia de um advogado comum e sem ambições, Ned Racine, vivido por William Hurt. A vida dele se resume aos poucos clientes que defende e aos dois amigos com quem costuma beber no bar de uma quente cidade da Flórida. Certo dia, ele conhece Matty Walker, papel de estreia de Kathleen Turner, que diz para Ned: “Você não é muito esperto. Gosto disso em um homem”. Tem início um tórrido romance entre os dois que culmina na morte do milionário esposo de Matty. O diretor Kasdan, também autor do roteiro, revela um domínio absoluto de sua narrativa. Todo o elenco merece um destaque especial. Principalmente, Hurt e Turner, que exalam uma química arrebatadora quase sem igual no cinema. Preste atenção na participação de Mickey Rourke, em início de carreira. Corpos Ardentes é simplesmente imperdível.
O Reencontro (1983)
Em sua estreia como diretor, no drama noir Corpos Ardentes, Lawrence Kasdan tinha chamado a atenção da crítica. Ele resolveu, então, partir para uma história mais pessoal e introspectiva e realizou O Reencontro. O filme conta a história de um grupo de sete amigos que estudaram juntos na Universidade de Michigan. Dez anos depois da formatura, ele se reencontram em uma pequena cidade do interior da Carolina do Sul para o funeral de Alex, que se suicidou. Os outros seis: Sam (Tom Berenger), Michael (Jeff Goldblum), Nick (William Hurt), Harold (Kevin Kline), Chloe (Meg Tilly) e Sarah (Glenn Close) aproveitam o momento para fazer um balanço de suas vidas. Kasdan, que escreveu o roteiro junto com Barbara Benedek, inspirou-se em seus amigos dos tempos de faculdade. O Reencontro se desenrola praticamente todo em um mesmo cenário. As personagens falam sem parar e lavam bastante roupa suja. Parece filme francês, mas é americano. E dos bons. O elenco, hoje famoso, na época, em início de carreira, está excepcional. Duas curiosidades: 1) Kevin Costner fez o papel de Alex, mas as cenas de flashback foram cortadas na montagem final. Para compensar, o diretor o colocou em papel de destaque em seu filme seguinte, Silverado (1985); 2) Kasdan pediu ao elenco que ficasse junto antes das filmagens para que desenvolvessem aquela naturalidade comum em velhos amigos. O Reencontro foi indicado a três Oscar: filme, roteiro original e atriz coadjuvante (Glenn Close). Não ganhou nenhum. Ao invés disso, tornou-se cultuado por toda uma geração.
O Beijo da Mulher-Aranha (1985)
“Ela é… bem, ela é algo um pouco estranho. Isso é o que ela percebeu, que ela não é uma mulher como todas as outras. Ela parece toda envolta em si mesma. Perdida em um mundo que ela carrega fundo dentro de si”. É assim que Molina (William Hurt) começa a contar a história de uma mulher misteriosa para Valentin (Raul Julia). Ambos estão presos. O primeiro, é homossexual. O segundo, é um prisioneiro político. Molina adora cinema e para fugir daquela triste realidade, inventa enredos cinematográficos cheio de mulheres fatais, mistério e romance. Uma de suas heroínas é a Mulher-Aranha (Sonia Braga). Primeiro filme internacional dirigido por Hector Babenco, O Beijo da Mulher-Aranha é baseado no livro homônimo escrito pelo argentino Manuel Puig. Após o sucesso de Pixote (1981), Babenco teve as portas de Hollywood abertas e optou por uma trama próxima do universo narrativo com o qual ele estava acostumado. É curioso observar no desenrolar do filme a maneira como os estereótipos vão sendo trabalhados. Nem sempre o mais forte é o mais valente e muito menos o mais fraco se revela um covarde. Uma direção ao mesmo tempo seca e poética, característica marcante do cinema babenquiano. Além disso, estamos diante de um elenco estupendo e de William Hurt em estado de graça. Ele, que conquistou, merecidamente, o Oscar de melhor ator e também diversos outros prêmios de atuação naquele ano. Rodado em São Paulo, o filme teve uma excelente acolhida de crítica e público, o que possibilitou ao diretor outros trabalhos no exterior, mas sem o mesmo sucesso obtido por este.
Nos Bastidores da Notícia (1987)
Se James L. Brooks tivesse apenas produzido Os Simpsons, só isso já seria suficiente para que ele tivesse seu nome marcado na história da TV americana. Brooks, entretanto, fez muito mais do que isso. Ele é a mente criativa por trás de outras séries populares como Mary Tyler Moore e Taxi. Paralelo a seu trabalho na televisão, ele escreveu, produziu e dirigiu alguns filmes para cinema. Um deles trata justamente de um lugar que ele conhece muito bem: uma emissora de TV. Em Nos Bastidores da Notícia acompanhamos um triângulo amoroso-profissional que se estabelece entre as personagens de Tom (William Hurt), Jane (Holly Hunter) e Aaron (Albert Brooks). O filme é uma comédia romântica. Porém, mesmo sem se aprofundar nas questões propostas pelo roteiro, provoca uma discussão sobre ética jornalística e a espetacularização da notícia. Brooks é um ótimo roteirista e um excelente diretor de atores. É fácil comprovar isso pela maneira como o trio principal é apresentado no prólogo e a forma harmoniosa de interação em cena de todo o elenco.
O Turista Acidental (1988)
Existem aqueles que adoram viajar. Outros precisam por conta do trabalho. Alguns até viajam, mas gostam de se sentir em casa quando estão fora. Para este último grupo existe o guia do “turista acidental”. Este é o caso de Macon Leary (William Hurt), que detesta viajar e fazer qualquer coisa fora de sua rotina já programada. No entanto, o trabalho de Macon o “obriga” a viajar continuamente. Ele escreve guia de viagens para quem não gosta de viajar. Baseado no livro de Anne Tyler e adaptado e dirigido por Lawrence Kasdan, esse é o mote inicial de O Turista Acidental. Macon é metódico e vem de uma família igualmente metódica. Sua vida vira de cabeça para baixo quando uma tragédia familiar modifica completamente sua vida e motiva a separação de sua esposa, Sarah (Kathleen Turner), que não entende a aparente indiferença do marido. Um pequeno acidente doméstico faz com que ele conheça Muriel Pritchett (Geena Davis, no papel que lhe rendeu um Oscar de atriz coadjuvante). Kasdan, que iniciou a carreira como roteirista, sabe muito bem como estruturar uma história e faz isso com maestria neste tocante drama que tem seus bons momentos de “respiro” de humor, seja com a figura extrovertida de Muriel ou com a excêntrica família de Macon. E o elenco é de primeira.
Um Golpe do Destino (1991)
É comum ouvirmos dizer que os médicos se sentem como deuses. Muitos deles parecem insensíveis e não costumam estabelecer qualquer tipo de relação mais próxima com os pacientes. Pode até ser verdade, mas, em alguns casos, trata-se de um mecanismo de defesa. O doutor Jack MacKee (William Hurt) se enquadra perfeitamente nos dois grupos citados: sente-se um deus e sem compaixão alguma. Tudo, porém, muda em sua vida quando ele descobre-se um paciente também. Este é o mote deste filme dirigido em 1991 por Randa Haines. O roteiro, escrito por Robert Caswell, baseia-se no livro homônimo de Ed Rosenbaum. A diretora conduz sua narrativa “transitando” em uma tênue linha. Daquelas que têm todos os elementos para cair em melodrama carregado de clichês. Haines consegue escapar das armadilhas e tem em seu elenco o suporte necessário para manter a trama nos trilhos. Um Golpe do Destino fala de mudanças e superações. No entanto, o faz de maneira convincente, sem “forçar a barra”.
Cortina de Fumaça (1995)
“Se você não puder dividir seus segredos com seus amigos, então que tipo de amigo é você?”, pergunta Auggie para Paul. Este responde: “exatamente… a vida não valeria a pena”. Cortina de Fumaça tem como cenário principal uma tabacaria. Muitos dos diálogos do filme giram em torno de cigarros e charutos. Mas isso, como o próprio título nacional já anuncia, isso é apenas uma distração. O filme, dirigido por Wayne Wang, um chinês radicado nos Estados Unidos, a partir de um roteiro do escritor nova-iorquino Paul Auster, é uma ode à amizade. Auggie Wren (Harvey Keitel), é gerente de uma tabacaria no Brooklyn, em Nova York. Seu melhor cliente é o escritor Paul Benjamin (William Hurt), alterego de Auster. Ao redor dos dois orbitam diversas outras personagens e histórias. Auggie, todos os dias, no mesmo horário, bate uma foto da esquina de sua loja. Ele faz isso há anos. Paul precisa escrever um conto de Natal para uma revista e pede ao amigo que lhe conte uma história. É difícil descrever um longa como Cortina de Fumaça. As coisas acontecem de maneira sutil e envolvente. Sem pressa, o roteiro de Auster e a direção de Wang nos conduzem pelas vidas dessas pessoas que, de início, não conhecemos. Quando o filme termina, eles se tornaram nossos melhores amigos. Diálogos inspirados e personagens bem construídas são uma combinação infalível. De cara, você já aprende como medir o peso da fumaça. E no final, ao som da bela “Innocent When You Dream”, cantada por Tom Waits, somos brindados com um belo conto de Natal. E olha que ainda toca uma das melhores versões de “Smoke Gets in Your Eyes”, na voz de Jerry Garcia. Vencedor do Urso de Prata do Festival de Berlim de 1995, Cortina de Fumaça é daqueles filmes para se ter em casa e rever e rever e rever, sempre. Em tempo: logo após as filmagens, Paul Auster dirigiu junto com Wayne Wang, a partir de improvisos dos atores e de alguns outros convidados, uma continuação chamada Sem Fôlego (1995), que é legal, mas não tem o mesmo brilho. O DVD lançado no Brasil pela Editora Europa traz os dois filmes.
A Vila (2004)
Nem sempre é bom quando um artista chama muito a atenção em seus primeiros trabalhos. Quando o cineasta americano de origem indiana M. Night Shyamalan realizou O Sexto Sentido (1999), foi apontado como gênio e por conta da grande surpresa daquele filme criou-se uma enorme expectativa em relação aos seus trabalhos seguintes. De certa forma, Shyamalan, que é um diretor de muito talento, ficou estigmatizado. Não foi diferente com A Vila, lançado cinco anos depois. Aqui, acompanhamos o dia a dia de uma pequena e isolada aldeia que vive sob a contínua ameaça de criaturas que habitam seus arredores. Existe uma espécie de pacto entre os aldeões e os seres estranhos que moram na floresta. Um dos jovens moradores da vila, Lucius Hunt (Joaquin Phoenix), decide explorar a região além da floresta e essa ação provoca uma ruptura no tênue acordo existente. Mais uma vez Shyamalan desenvolve sua história como uma parábola e faz desta história um espelho da sociedade americana. Munido de um elenco dos sonhos, o diretor-roteirista-ator (ele faz uma ponta no filme!) discute, metaforicamente, a violência urbana e questões como segurança, relações familiares e choque de gerações. Conduz sua trama com habilidade e sutileza e nos reserva boas “surpresas”, que funcionam muito bem. Principalmente se o espectador não criar expectativas grandes demais e esperar ver um novo O Sexto Sentido.
Novo filme argentino com Ricardo Darín no elenco retrata os reflexos sofridos do povo quando planos econômicos impactam a nossa vida
Texto por Janaina Monteiro
Foto: Warner/Divulgação
Um plano econômico quando é adotado num país não só confisca o dinheiro da poupança, “come” os zeros e altera o nome da moeda ou limita a quantia que você deve sacar do banco. Termina, sim, por confiscar os dias, devorar a saúde do povo, principalmente a dos idosos, mudar o sentido de justiça e limitar nossas forças diante da vida. Quantos traumas e suicídios a ministra Zélia Cardoso de Melo não endossou ao anunciar, há quase três décadas, o fatídico Plano Collor, do presidente caçador de marajás? Quantos aposentados não infartaram em 2001, quando foi instalado o “corralito”, o confisco dos depósitos bancários, fantasma que ainda persegue o povo argentino?
Pois este é o tema do mais recente filme estrelado pelo ator Ricardo Darín, que pela primeira vez atua ao lado do filho Chino Darín. O roteiro de A Odisseia dos Tontos (La Odisea de los Giles, Argentina/Espanha, 2019 – Warner), que estreou nesta quinta-feira no Brasil, é baseado no romance do escritor Eduardo Sacheri e feito em coautoria com o diretor Sebastián Borensztein, do fantástico Um Conto Chinês. Em vez de abordar o assunto de forma pesada, o tom da narrativa procura atenuar os reflexos sofridos pelo povo portenho com um bom humor inteligente presente em diálogos dinâmicos, repletos de ironia e palavrões colocados na medida.
Trata-se de uma comédia dramática leve, ao estilo sessão da tarde, porém sem deixar as críticas políticas de lado, como muitas citações ao peronismo e o anarquismo do russo Mikhail Bakunin. O filme usa aquela máxima de que o povo é sempre tratado como idiota, enganado pelo sistema. Como o próprio nome diz, a odisseia é a saga de moradores da província de Alsina (os “tontos”) que viram o desejo de montar uma cooperativa ir para os ares depois da crise, assim como a vida de pessoas queridas que também se esvaíram após o golpe. Mas o que desperta a grande revolta por parte dos locais é o fato de terem sido enganados pelo advogado Manzi (Andrés Parra), amigo do gerente do banco, que conseguiu informações privilegiadas e trocou, a tempo, os pesos argentinos por dólares.
Darín interpreta Fermin Perlassi, um ex-jogador de futebol que se transforma em Robin Hood e convoca os amigos fiéis a bolar um plano para recuperar o dinheiro do advogado malandro. Como todo bom argentino, faz da solidariedade o antídoto para combater a injustiça (e não a vingança, como no papel do mesmo Darín em Relatos Selvagens).
O filme traz ainda ótimas atuações de atores veteranos. Luís Brandoni, que faz um anarquista dono de uma oficina mecânica, chega a brilhar mais que próprio protagonista. Além de Rita Cortese, que aparece tímida no papel de uma empresária local.
Vale lembrar que o livro que deu origem a este longa-metragem foi escrito pelo mesmo autor da obra que originou O Segredo de Seus Olhos, que conquistou o Oscar de melhor produção em língua não inglesa em 2010. Depois disso, o trabalho de Darín alcançou outro patamar e ultrapassou as fronteiras do então país comandando por Cristina Kirchner, que volta à cena agora política como vice-presidente. Pois Darín, a prata da casa e sinônimo de cinema argentino, acertou na decisão de não se juntar aos americanos, recusando papeis secundários oferecidos por Hollywood. E, ainda, para alegria de seus fãs, inspirou o filho a trilhar a mesma profissão. Com apenas 30 anos de idade e oito de carreira, Chino já acumula um currículo extenso, tendo estrelado um punhado de excelentes filmes, entre eles As Leis da Termodinâmica (disponível na Netflix).
A Odisseia dos Tontos fica aquém de outras comédias estreladas pelo mais famoso ator do cinema argentino. No entanto, mesmo sendo um filme sem grandes pretensões, vale a pena ver o dono dos olhos azuis e cabeleira cada vez mais grisalha atuando nas telonas. A família Darín é sempre um bom convite para ir ao cinema e rir da tragédia. Pelo menos enquanto o fantasma retratado no filme está adormecido…
Em agosto de 2008, o Mondo Bacana publicava a resenha do show que celebrava os 50 anos do primeiro disco da bossa nova
Texto por Rodrigo Browne
Foto: Divulgação/Beti Niemeyer
João Gilberto morreu há um mês, no último dia 6 de julho. Sua obra, no entanto, é imortal. Na semana do seu falecimento, todos os noticiários esgotaram todos os adjetivos para esse artista que pode ser definido em uma única palavra: genial. Sua importância para música internacional é reconhecida pela crítica especializada em todos os cantos do mundo. Por isso, vamos relembrar a resenha publicada em 2008 pelo Mondo Bacana, sobre o show histórico que João (um banquinho e um violão) fez para celebrar os 50 anos da Bossa Nova em agosto de 2018 no Theatro Municipal do Rio de janeiro. Foi um espetáculo inesquecível.
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Há 50 anos, em agosto de 1958, chegava na Lojas Assunção, em São Paulo, um disco emblemático: o compacto “Chega de Saudade”, de um quase desconhecido baiano chamado João Gilberto. Depois de ouvir a faixa-título de um lado e o baião “Bim-Bom” do outro, o gerente da loja, Álvaro Ramos, não resistiu: quebrou o disco. Indignado com a “porcaria” que os cariocas tinham lhe enviado exclamou: “por que gravam cantores resfriados?”.
Essa história – lembrada pelo escritor Ruy Castro no livro Chega de Saudade – revela uma reação natural a quem estava acostumado com um estilo de cantores brasileiros e que – de repente – fica sem chão quando se depara com algo absolutamente diferente, uma “bossa nova” que estava surgindo para revolucionar a música brasileira e que, posteriormente, viria a influenciar uma enorme geração de músicos do Brasil e do exterior.
O Brasil vivia então um período de crescimento econômico fabuloso com a era JK, a seleção brasileira conquistava na Suécia sua primeira Copa do Mundo de futebol. Com tantas novidades, esse estilo musical tornou mais democrático a possibilidade de novos artistas cantarem sem a necessidade da impostação de voz, tão comum nos grandes nomes da época de ouro do rádio nacional.
O baiano João Gilberto mostrava que era possível fazer boa música cantando baixinho, suave e acompanhado apenas de um banquinho e um violão. Somava-se a esse quadro o início de carreira de grandes nomes da música brasileira como Tom Jobim e do diplomata e poeta Vinicius de Moraes, que serviram como régua e compasso para a novidade musical que – sem eles imaginarem – estava começando a conquistar o mundo.
De lá para cá são seis décadas que consolidaram a moderna batida da MPB. Além dos músicos já citados, no primeiro momento a bossa nova tem nomes fundamentais como Elizeth Cardoso (que também gravou “Chega de Saudade” em 1958, poucos meses antes, mas sem a batida joão-gilbertiana), Carlos Lyra, Marcos Valle, Johnny Alf, João Donato, Nara Leão, Roberto Menescal, Zimbo Trio, Oscar Casto Neves, Baden Powell, Newton Mendonça, Silvia Teles, Os Cariocas e Dick Farney entre outros medalhões do movimento.
Posteriormente, na década de 1960, uma outra legião de grandes músicos foi influenciada por eles, com destaque para Chico Buarque, Joyce, Caetano Veloso, Miúcha, Toquinho, Leny Andrade, Gilberto Gil e Elis Regina. Estes são alguns dos muitos artistas que começaram sua carreira musical com os acordes da bossa nova.
Para comemorar os 50 anos de Bossa nova, em 2008, foram agendados dois concertos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro: o primeiro, um encontro de Caetano Veloso e Roberto Carlos; no dia seguinte, uma apresentação com João Gilberto sozinho no palco. Se a apresentação de Caetano e Roberto foi excelente, a noite de João Gilberto foi histórica. Irrepreensível do início ao fim, o “papa” da bossa nova abençoou o público presente no domingo, dia 24 de agosto, com um show perfeito e emocionante que certamente será lembrado para sempre na história da música brasileira.
Logo no início – com seu protocolar atraso (55 minutos!) para o qual ninguém deu bola – João Gilberto começou com uma homenagem ao conterrâneo Dorival Caymmi, recém-falecido, emplacando os sambas “Você já foi à Bahia?”, “Doralice” e “Rosa Morena”. Seu jeito macio de cantar baixinho aos poucos foi invadindo cada canto do teatro silencioso. O respeito obsequioso da plateia agradou o músico que – para surpresa de muitos – estava num daqueles dias inspirado e, melhor ainda, muito bem humorado.
E o show foi acontecendo. Generoso, ele interpretou no melhor estilo voz & violão (que no caso de João fundem-se harmoniosamente de forma indissociável, como se fosse um único instrumento) um vasto repertório (veja o set list logo mais abaixo) que incluía clássicos da bossa ao lado de sambas não tão conhecidos, como o ótimo “13 de ouro” (de Marino Pinto e Herivelto Martins) ou as canções da Sinfonia do Rio de Janeiro “Hino ao Sol”/“O Mar” (compostas por Tom Jobim e Billy Blanco). A cada canção um arranjo surpreendente, uma reinvenção de acordes – como em “Lígia”, “Samba do Avião” ou na belíssima “Retrato em Branco e Preto”.
Depois de vinte músicas, João saiu de cena. Atendendo aos pedidos de bis, ele voltou. E, para surpresa geral, estendeu sua apresentação por mais meia hora. Foi nessa parte que se deu um fato fabuloso. João iniciou o clássico “Chega de Saudade”. O público começou a acompanhar baixinho a canção, no mesmo tom do cantor, que normalmente é arisco a essas “intromissões”. Mas (surpresa!), ele a-do-rou e, após mais duas músicas, virou-se para a plateia e a convidou a cantar “Chega de Saudade” novamente, com ele tocando e fazendo o contracanto. A sensação foi de um transe coletivo, como num mantra, que transformou o Theatro Municipal numa espécie de templo da música brasileira.
Sorridente e feliz da vida, ele disparou: “O problema é que agora eu não quero ir embora”. Mas foi. Retirou-se. O público aplaudiu de pé durante cinco minutos. Na volta, a caminho de Ipanema, da janela do táxi, eu vi o Redentor. Que lindo!
Set List: “Você já foi à Bahia?”, “Doralice”, “Rosa Morena”, “13 de Ouro”, “Meditação”, “Preconceito”, “Samba do Avião”, “Hino ao Sol”, “O Mar”, “Ligia”, “Caminhos Cruzados”, “Não Vou pra Casa”, “Disse Alguém”, “Corcovado”, “Chove lá Fora”, “Nosso Olhar”, “Wave”, “De Conversa em Conversa”, “Desafinado”, “Estate” e “Isto Aqui o que é?”. Bis: “Aos Pés da Cruz”, “Da Cor do Pecado”, “Retrato em Branco e Preto”, “Você Não Sabe Amar”, “Tim Tim por Tim Tim”, “Chega de Saudade”, “Garota de Ipanema” e “O Pato”.