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Vozes do Passado

Reencontro entre mãe e filha revela verdades aterradoras com direito a fantasmas do passado e visões sangrentas

Texto por Amanda Janssen

Foto: Synapse Distribution/Divulgação

Recém-disponibilizado nas plataformas de compra e aluguel de filmes no Brasil, Vozes do Passado (Reunion, Nova Zelândia, 2020 – Synapse Distribution) é um thriller com elementos de drama psicológico e algumas figuras constantes no universo do terror sobrenatural.

Nele, Elly (Emma Draper) interpreta uma mulher grávida que retorna à casa onde cresceu e revê a mãe (Julia Ormond), da qual estava afastada já há uns bons anos. A casa está uma bagunça de caixas, pois está para ser vendida. A sensação sufocante, claustrofóbica, realça o desconforto no reencontro das duas. A filha está escrevendo um livro acadêmico sobre as origens da ciência na Idade Média, com ocultismo e alquimia. Aos poucos, verdades aterradoras vêm à tona, com direito a fantasmas do passado e visões sangrentas. 

O resultado é bom, a narrativa realmente segura o espectador, apesar das sensações desagradáveis que a trama pode trazer – como em O Bebê de Rosemary ou alguma obra baseada nos livros de Stephen King. A escolha dos planos em certas cenas aumenta esse incômodo. Traz algo que faz com que a gente em certo momento não consiga distinguir o que é real do devaneio.

Dirigido por Jake Mahaffy e rodado na Nova Zelândia, Vozes do Passado é um bom representante da safra atual de suspenses. Não chega a ser inovador, mas é rico em referências e bem costurado. Aqui vai um ALERTA DE GATILHOS: há relações familiares difíceis e violência. Caso você esteja grávida, é melhor não assistir ao longa.

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Falling – Ainda Há Tempo

Viggo Mortensen estreia na direção com uma tocante história baseada em sua própria experiência com a demência em família

Texto por Abonico Smith

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Ver um filme pode ser uma experiência catártica, sobretudo se a história for um grande drama. Muitas vezes, por se identificar bastante com quem o protagoniza, sua história, seu sofrimento e seus percalços, espectadores descarregam tudo em lágrimas ou gatilhos interiores acessados. Só que fazer um filme também pode significar a mesma coisa. Viggo Mortensen que o diga com seu Falling – Ainda Há Tempo (Falling, Reino Unido/Canadá/Estados Unidos, 2020 – Califórmia Filmes), no qual assina direção, roteiro mais boa parte da trilha sonora, além de interpretar um dos dois protagonistas.

Boa parte da história começou a ser escrita logo após o funeral de sua mãe. Ela, assim como também o pai de Viggo, passou alguns anos sofrendo de demência. Algumas das histórias sobre a doença e o convívio entre a/o paciente e os familiares que a/o cuidam, ouvidas pelo ator naquele momento, não saíram mais de sua cabeça até sua estreia como diretor se concretizar para ser exibida nas grandes telas.

E Viggo consegue transmitir delicadeza mesmo em tempos difíceis entre uma relação mantida às turras entre pai e filho. Na verdade, o pai Willis nunca mudou o jeito bronco de ser. Fazendeiro do norte do estado de Nova York, satisfaz-se em ser desagradável a todos ao redor somente pelo fato de ser desagradável, de contrariar pedidos e expectativas alheias, desde que seus dois filhos (John e Sarah nasceram). Não aceita as transformações sociais trazidas com o tempo, torce o nariz para a homossexualidade do filho (e também para o seu casamento de anos com o pai de sua enteada), tem rejeição pelo fato de Barack Obama ter sido o primeiro presidente preto eleito pelos Estados Unidos para governar a Casa Branca e não pensa duas vezes antes de provocar confusões com verborragias e atitudes. Ao mesmo tempo, Willis não entende que, por causa do avanço da demência, precisa ser (pacientemente) cuidado pelo primogênito John. Não quer mudar-se para a “progressista” Califórnia por ali ser “uma terra de bichas”. Não aceita a morte da dedicada e pacata Gwen (a mãe dos meninos) ao passo que tem alucinações sexuais com a segunda esposa Jill, aparecendo sempre em sua mente como uma voluptuosa ruiva seminua mesmo em meio de uma nevasca ao ar livre. Por tudo isso, o veterano Lance Henriksen (cujo currículo traz filmaços históricos como Um Dia de Cão O Exterminador do Futuro) entrega uma performance intensa e monstruosa como o indomável octogenário.

O vai e vem do passado, aliás, é um trunfo constante da narrativa e vai ajudando o espectador a montar o quebra-cabeça da conturbada relação entre pai e filho. Desde pequeno, John (Mortensen, que a princípio relutava em atuar em seu próprio filme) é criado por Willis a ser um típico exemplar de macho como ele. O menino – que aparece em distintas fases de sua infância e adolescência – já aprende, bem cedo, que as situações devem ser dribladas com pacifismo, condescendência e, sobretudo, muita, muita paciência. O que poderia se tornar uma armadilha para a trama, porém, revela-se um ganho para Viggo. Não somente esses flashbacks se misturam como lembranças abruptas de uma parte quanto de outra, como também pequenos sinais externos às cenas de ontem e hoje vão sendo delicadamente distribuídos ao espectador para que ele faça a sinapse e descubra de quem é aquele lampejo naquela hora do aqui e agora.

Quando chega ao final, o “novato” diretor também revela outros dois pontos altos de seu filme. Primeiro é a engraçada (se é que durante todo o drama intenso poderia, de fato, haver espaço para algo com um ligeiro toque de humor) participação especial de David Cronenberg. O cultuado cineasta – dono de uma obra marcada pelo horror corporal – aqui é um mero médico que vai realizar o temido (pelo machão Willis, claro) exame de próstata. Por fim, quando começam a subir os créditos, Viggo mostra ao mundo a aposta nas multi-istrumentistas irmãs postiças que formam o Skating Polly, uma fofíssima dupla (trio se contar a participação do irmão de uma delas na bateria e na guitarra) formada por elas em 2009, então aos 9 e 14 anos de idade, e que conta com (já) cinco álbuns de carreira e apadrinhamento de grandes ícones do rock alternativo americano, como Exene Cervenka (vocalista da lendária punk X e primeira esposa de Mortense), Flaming Lips, Babes In Toyland, Band Of Horses, Veruca Salt, Deerhof, Mike Watt e Garbage. A canção “A Little Too Late” não só gruda de imediato na cabeça como é uma incrível força lírica e melódica que anda faltando por aí nas programações das rádios, playlists de internet e escalações de grandes festivais.

Ao realizar todas as etapas de Falling – Ainda Há Tempo, o ator, roteirista, músico e diretor Viggo Mortensen também parece ter exorcizado toda a dor passada durante seus dramas familiares – tanto que dedica o filme a seus dois irmãos mais novos, com quem dividira a turbulência enfrentada duas vezes contra a demência. Por ser um projeto autoral/pessoal em demasia, acaba se tornando uma peça verdadeira de arte e ainda imprime maior veracidade àqueles espectadores que porventura possam vir a se identificar com o sofrimento vivido por John e Sarah desde o nascimento até a meia-idade. Exibido publicamente pela primeira vez no festival de Sundance em 2020, o longa-metragem chega agora aos cinemas brasileiros, com um certo atraso provocado por causa da pandemia da covid-19. Aos mais desavisados, pode até ser algo chocante de se ver e duro de se acompanhar. Entretanto, não deixa de ser uma obra de extrema sensibilidade e que passa bem longe de tender ao tom melodramático.

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Estados Unidos vs Billie Holiday

Perseguição à musa do jazz por causa de hino de protesto ao racismo traz grande atuação de Andra Day mas se perde na edição e no roteiro

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Hulu/Amazon Prime/Divulgação

Billie Holiday é uma das vozes mais marcantes da música mundial. Suas interpretações cheias de emoções são lembradas até hoje por diversas gerações. Especialmente “Strange Fruit” que  virou um hino de resistência, apesar da repressão sofrida inicialmente. Este é o cenário de Estados Unidos vs Billie Holiday (The United States vs. Billie Holiday, EUA, 2020 – Hulu/Amazon Prime), a cinebiografia da musa do jazz

Dirigido por Lee Daniels, o filme recapitula a longa perseguição do governo americano à cantora. Lady Day (apelido que ganhou de seu amigo e saxofonista) tinha problemas com drogas, o que aumentou a tensão com as autoridades. A canção “Strange Fruit” tornou-se a gota d’água. Narrando o linchamento de negros, a música-protesto foi abraçada pelo comunidade afro-americana e rejeitada pela polícia e pelo FBI.

Cinebiografias são difíceis de construir. The United States vs. Billie Holiday escolhe focar em um período da vida de cantora, mesmo que no final resolva se alongar. No filme, Billie (Andra Day) já é uma estrela que enfrenta problemas com a fama, amores e drogas. Os narcóticos, inclusive, são sua porta de entrada para o tribunal mais de uma vez. 

Daniels constrói seu filme ao redor de um romance especulado, mas jamais confirmado, entre Lady Day e o agente Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes), da divisão de narcóticos. Mesmo após as intenções do policial serem reveladas, ele continua andando e viajando com Billie e seus músicos pelos EUA. O jogo de amor e poder cansa e tira o foco do maior vilão do filme: o racismo. 

As dúvidas e as inseguranças do personagem de Fletcher são interessantes. O momento em que ele se toca que está sendo instrumento do sistema que aprisiona negros injustamente é forte. Porém, é rápido demais. Quem pensa em ver o filme esperando algo mais voltado aos tribunais está enganado. Apesar do título, Estados Unidos vs. Billie Holiday são vários retalhos de Lady Day, que envolvem algumas idas ao tribunal. 

Billie teve uma vida difícil, precisou prostituir-se na infância, foi vítima do vício em drogas e de homens abusivos. Andra Day soube retratar essa personagem tão complexa de forma magistral. Sua atuação é de longe o ponto alto do filme. Apesar da grande entrega, o roteiro e a edição prejudicam a artista em seu primeiro papel no cinema. São cansativas as constantes adesões e sumiços de personagens e as súbitas mudanças de temporalidade cortam o clima.

A história é pesada, triste, ao final o alívio é iminente. Billie sofreu, amou, cantou e encantou. Uma figura tão icônica merecia uma cinebiografia à sua altura. Esta aqui é mediana, por vezes tediosa. A grande estrela do jazz ficou miúda na tela, engolida por um roteiro que não soube captar seu magnetismo frenético. 

>> Estados Unidos vs Billie Holiday concorre no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em uma categoria: atriz

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The Boys In The Band

Reunião de amigos gays expõe de forma intensa e dramática barreiras de meio século atrás que ainda permanecem difíceis de serem quebradas

Texto por Maria Cecilia Zarpelon

Foto: Netflix/Divulgação

Desde a rebelião de Stonewall que o movimento LGBTQIA+ vem ganhando cada vez mais visibilidade nos espaços de discussão. Mas, apesar das várias conquistas que o grupo teve ao longo de todos esses anos, será que as coisas realmente mudaram? A segunda adaptação cinematográfica homônima da peça teatral escrita por Mart Crowley em 1968, ainda tem muito a dizer sobre as vicissitudes dessa comunidade nos dias atuais. Produzida por Ryan Murphy (das séries Hollywood e Ratched), a nova versão de The Boys In The Band (EUA, 2020 – Netflix) é uma obra relevante e provocativamente anacrônica. Pouco mais de meio século depois de ter sido criada, a trama segue ousada por trazer de forma tão crua as particularidades de uma comunidade que teve – e ainda tem – sua voz silenciada. 

O enredo do filme dirigido por Joe Mantello é simples: em uma noite de 1968, um grupo de amigos gays se reúne para comemorar o aniversário de um deles. O que era para ser apenas mais uma festa comum acaba, na verdade, aflorando mágoas e ressentimentos escondidos sob uma fina camada de falsa felicidade. Essa reunião aparentemente despretensiosa expõe temas delicados como amizade, homofobia e preconceito de forma fluida e áspera ao mesmo tempo.

O longa se passa em um local apenas, o apartamento novaiorquino de Michael (Jim Parsons, o Sheldon da série The Big Bang Theory). Ao contrário do que muitos podem pensar, em momento algum a história se torna monótona ou cansativa. Isso se dá graças às rápidas respostas e diálogos afiados preservados do roteiro de Crowley. Os longos papos sobre autoaceitação e discriminação que permeiam o apartamento são inesperadamente potentes. 

Enquanto os homens vão esmiuçando os problemas latentes que eles negam existir entre si, a tensão que se arquiteta no ambiente chega a ser sufocante. À medida que os espectadores – assim como os personagens – sentem que não existe para onde ir, a inquietação se intensifica. Um ótimo recurso para criar esse clima claustrofóbico –  que passa quase despercebido – é o confinamento do grupo dentro da pequena sala do apartamento, uma vez que começa a chover na cidade. 

Aos poucos, o público descobre que Michael é um homem inquieto, que carrega um desejo quase extremo de agradar as pessoas e nunca saiu do armário completamente. Ele, com a ajuda do ex-namorado Donald (Matt Bomer), organiza uma festa para o sarcástico aniversariante Harold (Zachary Quinto, o Spock atual da franquia cinematográfica Star Trek), com quem mantém uma relação complicada. Entre os convidados estão Larry (Andrew Rannells), que mesmo não acreditando no conceito de monogamia, mora junto com Hank (Tuc Watkins), que acabou de deixar a família para ficar com o amado. Além deles, estão presentes o performático e animado Emory (Robin de Jésus), e Bernard (Michael Benjamin Washington), o mais tímido do grupo.

Tudo fica ainda mais angustiante quando a chegada de Alan (Brian Hutchison), um velho amigo da faculdade de Michael, revela que a cumplicidade entre os amigos é mais frágil do que parece. Resultado das personalidades dissonantes, os embates, por vezes engraçados, chegam ao ápice quando Michael é confrontado com a homofobia (não tão) velada de Alan, fazendo com que sua raiva há muito reprimida emerja. Nos absurdos, na petulância e na dor que preenchem a performance de Parsons é que reside o momento mais dramático do filme.

As inconstâncias, desejos, medos e alegrias dos personagens permeiam as duas horas do longa sem que pareça um “espetáculo exótico” para ser admirado. Pelo contrário. Sob esse novo The Boys In The Band paira um olhar atento e próximo que denuncia que as barreiras que deveriam ter sido quebradas há muito tempo seguem firmemente de pé.

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My Name Is Now, Elza Soares

Documentário desconcerta o espectador pela opção de desnudar a alma da cantora por caminhos não convencionais

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Texto por Abonico R. Smith

Foto: It Filmes/Divulgação

Meu nome é agora, diz a cantora durante a série de depoimentos dados para o filme. Ela agradece a Deus por tudo o que viveu e aconteceu na sua vida, inclusive os momentos mais difíceis e as tragédias constantes que teve em família. Tudo isso, segundo ela, foi responsável por transformá-la no que ela é.

Em My Name Is Now, Elza Soares (It Filmes, 2018), a diretora Elizabete Martins Campos opta por um caminho nada convencional em se tratando de documentário. Ela dispensa uma narrativa histórica linear da vida e da carreira biografada. Tampouco quer contar a sua trajetória de fato. Sua opção é por uma estética sensorial. Imagens e sons vão se misturando e complementando. Por vezes Elza canta acompanhada de uma banda nunca vista pela câmera. Por vezes ela fala sobre seus sentimentos e um pouco do que já viveu em quase noventa anos de idade. Nascida no Rio de Janeiro no dia 23 de julho de 1930 (segundo ela mesma conta no início do filme), Elza Soares é uma mulher múltipla e vulcânica. Uma força da natureza capaz de assombrar sempre que abre a boca. Pela voz, pelo timbre, pela lucidez, pela sagacidade, pela resiliência, pela emoção. E a diretora, ciente demais de tudo isso, ainda brinca com o espectador fundindo áudio e vídeo de maneira difusa, brincando com efeitos (ecos, filtros, closes, sobreposições de música e fala).

Claro que as mais importantes informações sobre a vida de Elza estão lá. O enfrentamento da fome, a gravidez muito precoce, a perda dos maridos, o romance com Mané Garrincha (que acabou por se eternizar no inconsciente coletivo da população brasileira), seu ressurgimento para o primeiríssimo escalão da MPB nas últimas décadas. Mas nada aparece de forma tão mastigada assim. Por vezes é Elza quem relembra misturando emoções (raiva, alegria, saudade, indignação), por vezes a música que rola naquele instante (ora com letras cantadas, ora com a melodia tracejadas pelos scats inacreditáveis que ela arranca do gogó), por vezes são as imagens de arquivo (vídeos antigos, fotografias, recortes de jornais e revistas) ou uma câmera subjetiva que se apresenta como os olhos da biografada.

Ao espectador resta a condição de se conformar como um voyeur. Não se sabe onde se vai chegar, não há muitas explicações que não sejam a da memória e a do afeto. Por isso mesmo é inevitável se sentir desconcertado por este filme. E não só pela boca, mas também pelo olhar de Elza Soares. E, claro, por sua alma desnudada de maneira tão incisiva e corajosa.

Obs: My Name Is Now, Elza Soares entrou em cartaz no circuito nacional neste primeiro dia de novembro, através do projeto Circulabit (Circuito Laboratorial de Produção e Difusão do Audiovisual em multiplataformas, com os eixos LabiT – Incubadora de Criações, Prêmio Circulabit, Circuito Salas de Cinema, Laboratório de acessibilidade, Exibição ao Ar Livre e Cirucito Brasil – Exibições Gratuitas. Este projeto teve início no último mês de outubro e se estenderá até abril de 2019, com programação no Brasil e em Portugal, em diferentes formatos, plataformas e parcerias.