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Falling – Ainda Há Tempo

Viggo Mortensen estreia na direção com uma tocante história baseada em sua própria experiência com a demência em família

Texto por Abonico Smith

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Ver um filme pode ser uma experiência catártica, sobretudo se a história for um grande drama. Muitas vezes, por se identificar bastante com quem o protagoniza, sua história, seu sofrimento e seus percalços, espectadores descarregam tudo em lágrimas ou gatilhos interiores acessados. Só que fazer um filme também pode significar a mesma coisa. Viggo Mortensen que o diga com seu Falling – Ainda Há Tempo (Falling, Reino Unido/Canadá/Estados Unidos, 2020 – Califórmia Filmes), no qual assina direção, roteiro mais boa parte da trilha sonora, além de interpretar um dos dois protagonistas.

Boa parte da história começou a ser escrita logo após o funeral de sua mãe. Ela, assim como também o pai de Viggo, passou alguns anos sofrendo de demência. Algumas das histórias sobre a doença e o convívio entre a/o paciente e os familiares que a/o cuidam, ouvidas pelo ator naquele momento, não saíram mais de sua cabeça até sua estreia como diretor se concretizar para ser exibida nas grandes telas.

E Viggo consegue transmitir delicadeza mesmo em tempos difíceis entre uma relação mantida às turras entre pai e filho. Na verdade, o pai Willis nunca mudou o jeito bronco de ser. Fazendeiro do norte do estado de Nova York, satisfaz-se em ser desagradável a todos ao redor somente pelo fato de ser desagradável, de contrariar pedidos e expectativas alheias, desde que seus dois filhos (John e Sarah nasceram). Não aceita as transformações sociais trazidas com o tempo, torce o nariz para a homossexualidade do filho (e também para o seu casamento de anos com o pai de sua enteada), tem rejeição pelo fato de Barack Obama ter sido o primeiro presidente preto eleito pelos Estados Unidos para governar a Casa Branca e não pensa duas vezes antes de provocar confusões com verborragias e atitudes. Ao mesmo tempo, Willis não entende que, por causa do avanço da demência, precisa ser (pacientemente) cuidado pelo primogênito John. Não quer mudar-se para a “progressista” Califórnia por ali ser “uma terra de bichas”. Não aceita a morte da dedicada e pacata Gwen (a mãe dos meninos) ao passo que tem alucinações sexuais com a segunda esposa Jill, aparecendo sempre em sua mente como uma voluptuosa ruiva seminua mesmo em meio de uma nevasca ao ar livre. Por tudo isso, o veterano Lance Henriksen (cujo currículo traz filmaços históricos como Um Dia de Cão O Exterminador do Futuro) entrega uma performance intensa e monstruosa como o indomável octogenário.

O vai e vem do passado, aliás, é um trunfo constante da narrativa e vai ajudando o espectador a montar o quebra-cabeça da conturbada relação entre pai e filho. Desde pequeno, John (Mortensen, que a princípio relutava em atuar em seu próprio filme) é criado por Willis a ser um típico exemplar de macho como ele. O menino – que aparece em distintas fases de sua infância e adolescência – já aprende, bem cedo, que as situações devem ser dribladas com pacifismo, condescendência e, sobretudo, muita, muita paciência. O que poderia se tornar uma armadilha para a trama, porém, revela-se um ganho para Viggo. Não somente esses flashbacks se misturam como lembranças abruptas de uma parte quanto de outra, como também pequenos sinais externos às cenas de ontem e hoje vão sendo delicadamente distribuídos ao espectador para que ele faça a sinapse e descubra de quem é aquele lampejo naquela hora do aqui e agora.

Quando chega ao final, o “novato” diretor também revela outros dois pontos altos de seu filme. Primeiro é a engraçada (se é que durante todo o drama intenso poderia, de fato, haver espaço para algo com um ligeiro toque de humor) participação especial de David Cronenberg. O cultuado cineasta – dono de uma obra marcada pelo horror corporal – aqui é um mero médico que vai realizar o temido (pelo machão Willis, claro) exame de próstata. Por fim, quando começam a subir os créditos, Viggo mostra ao mundo a aposta nas multi-istrumentistas irmãs postiças que formam o Skating Polly, uma fofíssima dupla (trio se contar a participação do irmão de uma delas na bateria e na guitarra) formada por elas em 2009, então aos 9 e 14 anos de idade, e que conta com (já) cinco álbuns de carreira e apadrinhamento de grandes ícones do rock alternativo americano, como Exene Cervenka (vocalista da lendária punk X e primeira esposa de Mortense), Flaming Lips, Babes In Toyland, Band Of Horses, Veruca Salt, Deerhof, Mike Watt e Garbage. A canção “A Little Too Late” não só gruda de imediato na cabeça como é uma incrível força lírica e melódica que anda faltando por aí nas programações das rádios, playlists de internet e escalações de grandes festivais.

Ao realizar todas as etapas de Falling – Ainda Há Tempo, o ator, roteirista, músico e diretor Viggo Mortensen também parece ter exorcizado toda a dor passada durante seus dramas familiares – tanto que dedica o filme a seus dois irmãos mais novos, com quem dividira a turbulência enfrentada duas vezes contra a demência. Por ser um projeto autoral/pessoal em demasia, acaba se tornando uma peça verdadeira de arte e ainda imprime maior veracidade àqueles espectadores que porventura possam vir a se identificar com o sofrimento vivido por John e Sarah desde o nascimento até a meia-idade. Exibido publicamente pela primeira vez no festival de Sundance em 2020, o longa-metragem chega agora aos cinemas brasileiros, com um certo atraso provocado por causa da pandemia da covid-19. Aos mais desavisados, pode até ser algo chocante de se ver e duro de se acompanhar. Entretanto, não deixa de ser uma obra de extrema sensibilidade e que passa bem longe de tender ao tom melodramático.