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A Filha Perdida

Estreia da atriz Maggie Gyllenhall na direção discute questões sobre a maternidade e o peso que a sociedade coloca nela

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Netflix/Divulgação

A temporada de premiações começou e o hype que se cria ao seu redor culminará no Oscar de 2022. A Filha Perdida (The Lost Daughter, Grécia/Reino Unido/Israel/EUA, 2021 – Netflix), longa de estreia de Maggie Gyllenhaal na cadeira de direção, traz Olivia Colman numa personagem que parece uma das mais fortes competidoras pela estatueta de melhor atriz nos Academy Awards.

Mas o Oscar, com todo seu lobby e até pelo sistema de votação, não vale tanta coisa assim. O que importa, acima de tudo, deve ser um bom filme. Nesse, Colman é Leda, uma professora universitária de férias na Grécia, onde encontra a perigosa família de Nina (Dakota Johnson) e, sobretudo, a filha dela, Elena. Acompanhando a história de mãe e filha, Leda não consegue evitar ter de lidar com complicadas memórias de seu passado com as suas duas filhas, Bianca e Martha.

Desde o início da trama há uma tensão entre a professora e a inconveniente família, até então misteriosa, da qual Nina destoa (ela nutre curiosidade por Leda). Com o breve sumiço de Elena, as duas se aproximam e sua compreensão da situação da outra é silenciosa, mas palpável. Há uma cumplicidade entre as mulheres: uma capaz de identificar traços de seu passado nessa jovem mãe, enquanto a outra consegue enxergar na turista uma espécie de espelho de seu possível futuro. Gylenhaal introduz em sua história, cujo roteiro parte do aclamado livro também chamado A Filha Perdida, de Elena Ferrante, uma estrutura multitemporal, entrecortando as cicatrizes do passado (em que é interpretada por Jessie Buckley) com as tensões do presente de Leda. Não sei se essa característica vem da literatura ou foi adicionada pela diretora, mas fato é que a decisão é fundamental para o impacto no espectador.

Leda é um mosaico muito bem performado entre uma mulher chegando aos cinquenta e já colhendo os frutos de suas más decisões (pois é assim que as sente), e a acadêmica comprimida e esmagada em si mesma por uma rotina atemorizante e prestes a implodir. O presente de uma é a cruel rememoração das falhas que enxerga em si mesma, ou melhor, na outra. Enquanto Buckley é furiosa, com picos e vales muito bem delineados em suas emoções, a interpretação de Colman é a calmaria do mar profundo após sua tempestuosa juventude.

A personagem é falível. Gyllenhaal toma cuidado para tratá-la sem crucificar ou romantizá-la sua história, demonstrando com sobriedade a pressão do mundo ao redor das mães (em especial as semissolteiras, cujo companheiro é ausente na criação dos filhos) e sua aflição. Quando a câmera insiste em retratar Leda em closes que são quase planos detalhe, com pouquíssima profundidade de campo e o balanço da mão que filma muito perceptível, sentimos com efeito a claustrofobia da protagonista, que também ecoa em Nina, bem como a densa atmosfera que as cerceia. Algum espectador pode até ser incapaz de empatizar com suas decisões, afinal a criação parental é um tema cuja moralidade subjetiva é decisiva para a discussão, mas A Filha Perdida é um filme construído de tal modo que é impossível que tais escolhas não sejam, no mínimo, entendidas pelo público.

Isto porque a intenção, no final de contas, não parece ser o julgamento moral (ou absolvição, por assim dizer) dos erros e acertos que tornaram Leda quem é hoje. Pelo contrário, é a constatação de que, de modos distintos, o peso embutido na mãe pela criação dos filhos continua desproporcional e artífice do esgotamento da subjetividade dela mesma. 

Uma mãe que errou, muitas vezes por consequência da própria circunstância agonizante, deixa de ser tratada como o ser humano que é e tem sua personalidade reduzida àquelas três breves palavras. Mãe primeiro, profissional depois. Ou, ainda, mãe primeiro, sujeita de si depois.

Contudo, por vezes o ritmo parece prejudicar a obra, e algumas decisões de roteiro põe em xeque a verossimilhança e, por consequência, a imersão à história de Leda. Quando um personagem de uma cena só provoca a protagonista no cinema e ela ameaça chamar a polícia, o inconveniente rapaz canta “blue lives matter” (“vidas azuis importam”, uma resposta supremacista ao movimento Black Lives Matter, em português Vidas Negras Importam; as vidas “azuis” são as de policiais, relativizando o discurso antirracista). Essa adição, bem como outras pontuais interações com aqueles que vivem na ilha, foge do norte temático da obra sem conferir a ela quaisquer discursos bem amarrados além de uma piscadela de “perceba como sou antifascista” da diretora.

Assim, A Filha Perdida é um belo e cru retrato dos efeitos da pressão da sociedade sobre as mães e as consequências disso em suas carreiras, vidas afetivas e, claro, relações com filhas e filhos. Com ternura e paciência, Gyllenhaal é impassível em escancarar a hipocrisia no julgamento moral do mesmo comportamento para as mulheres e homens. O mesmo que Leda sofreu Nina parece sofrer também. Mas a sororidade chega a um teto e, dali para frente, o conflito se coloca novamente: a culpa da mãe que errou é usada contra ela como arma. Uma “mãe desnaturada” por ser colocada em uma situação tal que podemos entender perfeitamente sua motivação, mas que seu entorno jamais perdoará.

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Meu Anjo

A resiliência emocional de uma garota de onze anos de idade frente ao abandono provocado pelo hedonismo excessivo de sua mãe

gueuledange2018

Texto por Abonico R. Smith

Foto: Imovision/Divulgação

Muita gente pode se pegar, saindo das salas de cinema, após assistir a Meu Anjo (Gueule D’Ange, França, 2018 – Imovision) e se angustiar ao ver como Marlene trata a sua filha de onze anos, perguntando-se como uma mãe pode ser tão displicente, relapsa e egoísta assim. Contudo, o filme assinado pela diretora e roteirista Vanessa Filho toca em algo bem mais profundo e inquietante do que isso.

Meu Anjo trata, com lentes ampliadas em demasia, a dura falta de alternativas de uma menina que, no período final da infância, precisa lidar com os excessos e irresponsabilidades da mãe para lutar pela sobrevivência e achar um lugar emocionalmente seguro no mundo. A pequena Elli (Ayline Aksoy-Etaix, em interpretação brilhante, sobretudo nos olhares de tédio, cinismo e desaprovação em relação às atitudes de Marlene) não pode contar com ninguém. Sua mãe não está nem aí com ela. Interessada mais em seu hedonismo regado a sexo e bebidas, abandona-a por muitas horas e até dias. Nas ruas e no pátio do colégio a menina sofre, sem parar, com o bullying de colegas e vizinhos. Precisa se virar sozinha para fazer sua comida, comprar o que precisa na rua e tentar se amparar em uma racionalidade que possa sustentá-la e evitar que ela entre em parafuso por causa de sua dor, desespero e, sobretudo, pouca experiência de vida.

Com sua câmera inquietada e movimentada, que convida o espectador a se sentir in locoe por isso mesmo acaba acentuando ainda mais a perturbação provocada pela amoralidade de Marlene (Marion Cotillard, em atuação propositalmente discreta), Vanessa Filho retrata a crueldade de uma pré-adolescente desprotegida exposta a um mundo sem filtros, capaz de se identificar rapidamente com o filho do vizinho, um rapaz tão ignorado pelo pai quanto ela pela mãe, ou mesmo tratar a dependência etílica como algo tão natural a ponto de seus bichos de pelúcia também sofrerem com ela. Ok que o roteiro tenha certas inverossimilhanças acentuadas, como o fato da ausência completa de adultos ao redor (nem mesmo a direção da escola) incomodados pelo abandono parental de Elli ou ainda certas atitudes tomadas pela garota a partir da metade final da história.

Mais do que sentir desgosto ou repudiar as atitudes completamente inconsequentes da mãe, o espectador acaba é se identificando com o sentimento de “o que é que eu estou fazendo aqui?” deixado explícito o tempo inteiro pelos olhares da filha. No fundo, ela é mais adulta que sua progenitora ao se deparar com a necessidade de tomar conta dela mesma em um mundo escancaradamente selvagem. O que salva o filme de cair na vala do melodrama é a sua noção de realidade tão precocemente distorcida, deturpada e modificada. E faz você ficar pensando depois não em como podem existir pessoas por aí que agem de maneira tão destrutiva como Marlene, mas sim em almas tão fortes e resilientes como Elli.