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Drive My Car

Concorrente japonês ao Oscar é um belo convite à contemplação de nós mesmos e a revisão de nossos traumas e experiências negativas

Texto por Tais Zago

Foto: O2 Play/MUBI/Divulgação

Duas horas e cinquenta e nove minutos. Praticamente três horas. Essa é a duração do novo filme do diretor japonês Ryusuke Hamaguchi (que também fez Roda do Destino, lançado no ano passado). Drive My Car (Doraibu Mai Kâ, Japão, 2021 – O2 Play/MUBI/Divulgação) é uma saga histórica, cheia de reviravoltas e personagens espetaculares? Não é. É um romance que se desenvolve ao longo de anos com laços duradouros entre várias famílias? Também não. O roteiro é bem simples e baseado em três contos de Haruki Murakami: um diretor recentemente viúvo é chamado para trabalhar por dois meses em uma produção multicultural da peça Tio Vânia, de Anton Tchecov, na casa do teatro local de Hiroshima. Para ir e voltar de suas acomodações, ele conta com uma motorista. 

Boa parte do filme se passa na sala de ensaios do teatro onde o elenco trabalha junto ao diretor e à produção, nos diálogos famosos do escritor e dramaturgo russo. Outra parte grande são as viagens, com uma hora de duração, que o diretor, Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), faz com sua jovem motorista, Misaki Watari (Tôko Miura), entre o teatro e a casinha idílica onde está hospedado. E em boa parte dessas viagens o pano de fundo são diálogos de Tio Vânia, gravados em uma fita cassete pela finada mulher de Kafuku, Oto (Reika Kirishima).

Com essa descrição crua, provavelmente, 80% da audiência fugiria do filme. Mas não. O público não só não fugiu como ficou sentadinho até o último minuto e a crítica cobriu a obra dos mais belos louros como o prêmio de melhor roteiro em Cannes em 2021. Agora, no Oscar de 2022, Drive My Car concorre em quatro categorias (filme, direção, roteiro adaptado e filme internacional). Eu imagino (até aposto) que vai levar pelo menos uma dessas para casa.

Hamaguchi faz parte daquela restrita lista de cineastas que conseguiram fazer mais de um filme por ano. Uma categoria de peso que inclui Steven Spielberg e Ridley Scott. No Japão, o diretor já possui uma rica carreira e suas produções são bem conhecidas e festejadas. Nessa outra metade do globo ainda estamos conhecendo seus trabalhos. E ele não decepciona. Seus filmes tratam de dores psicológicas, de perdas, de amor, de reencontros consigo mesmo. De luto.

Yusuke e Misaki estão tão distantes um do outro quanto duas pessoas poderiam estar. Ele, um dramaturgo e ator consagrado de 47 anos. Ela, uma menina de origem extremamente humilde, de 23 anos, cuja única habilidade é dirigir. Mesmo assim, o que une esses dois personagens é tão forte, tão visceral, tão comovente que somos embalados e suavemente conduzidos nessa viagem. Sentimos junto com eles os quilômetros rodados num inverno frio e escuro, de montanhas nevadas, de mar revolto. O filtro azul nos carrega do começo ao fim na fotografia que contrasta com a hospitalidade dos funcionários do teatro ou da leveza do elenco. Pessoas felizes, vivendo suas vidas, sem, aparentemente, grandes sofrimentos. Enquanto isso, Watari e Kafuku afogam seus sentimentos, os sufocam, os escondem no porta-malas do pequeno carro SAAB vermelho. A dureza e o silencio é a única coisa que permite que ambos não desmoronem, que não saiam da estrada em alta velocidade rumo ao abismo do desespero.

Em tempos de gratificação rápida e instantânea, às vezes, desaprendemos a importância de degustar os momentos solenes, a contemplação de nós mesmos. Por isso, Drive My Car é, acima de tudo, um convite a saborear a dor e os caminhos que as pessoas escolhem para trabalhar suas experiências negativas e seus traumas. E quem prestar bastante atenção vai ver que não são poucas as desilusões que preenchem esses 179 minutos, algumas refletidas nos textos de Tchecov, outras no compartilhamento de experiências. Como nas confissões que o jovem ator Kôji Takatsuki (Masaki Okada) faz a Kafuku ou a bela/triste história de Lee Yoon-a (Park Yu-Rim), a atriz coreana que interpreta Sonia na peça, usando a linguagem de sinais.

Drive My Car não é um filme leve, mas tem um final feliz. Ou pelo menos ele pode ser interpretado assim, pois deixa um pouco aberto o que ocorreu com seus personagens. E é exatamente isso que faz o destino dessa viagem ser ainda mais interessante.

Movies

Uma Noite em Miami…

Encontro de lendas da cultura afro-americana do auge dos movimentos civis dos EUA supera as limitações de uma adaptação teatral para o cinema

Texto por Andrizy Bento

Foto: Amazon Prime/Divulgação

“This is one strange fucking night!”

Baseado na peça homônima de Kemp Powers, o longa de Regina King é um relato fictício de uma noite transformadora na vida de quatro personalidades lendárias. O que realmente se desenrolou naquele quarto de hotel, em 25 de fevereiro de 1964, apenas os protagonistas desse encontro – Sam Cooke (Leslie Odom Jr), Jim Brown (Aldis Hodge), Malcolm X (Kingsley Ben-Adir) e Cassius Clay (Eli Goree) – saberiam relatar com exatidão, visto que não existem registros se essa reunião realmente ocorreu. Mas partindo do contexto histórico, sócio-político, econômico e cultural da época, bem como das particularidades e características que definem os quatro protagonistas e seus respectivos papéis na sociedade, Uma Noite em Miami… (One Night In Miami…, EUA, 2020 – Amazon Prime) imagina quais foram as pautas discutidas naquela informal conversa entre amigos, sem soar forçado, didático ou superficial. Ainda que os eventos tenham sido ficcionalizados, o modo como a trama é conduzida torna a atmosfera crível e natural, escapando do caráter enfadonho que assombra outros longas adaptados de peças teatrais.

Dessa forma, os quatro relatam suas inquietudes, colocam na mesa seus conflitos e procuram conhecer as opiniões uns dos outros acerca dos rumos que pretendem dar às suas vidas. De maneira magistral, é como se o longa simbolizasse a véspera do rito de passagem de cada um dos quatro retratados. Seus caminhos estão prestes a mudar drástica e completamente e é visível como eles anseiam tanto pelo apoio mútuo (por vezes, expressando isso de modo tímido) como por ouvir as críticas que cada um tem a fazer sobre suas escolhas – mesmo que seja apenas para rebatê-las de maneira enérgica. Mas a produção não é só feliz ao abordar esse lado intimista dos retratados; de evocar o clima de bromance entre os quatro homens e desmitificá-los, despindo-os da aura heroica criada em torno de suas figuras. Situado no auge da segregação racial nos Estados Unidos do século 20, no momento em que o movimento pelos direitos civis (que pregava a igualdade para a comunidade afro-americana) tornava-se cada vez mais expressivo, o longa se aprofunda e reflete sobre questões ainda pertinentes à atualidade, tais quais racismo, colorismo e outros ismos, como ativismo e radicalismo.

A ousadia do pugilista Cassius Clay, a oratória do ativista Malcolm X, a energia do músico Sam Cooke e a ponderação do jogador de futebol americano Jim Brown são os traços que mais se destacam em suas personalidades e ressoam nos brilhantes diálogos imaginados por Powers (que também assume a função de roteirista do filme), mas, felizmente, a composição dos protagonistas na tela foge com sabedoria de arquétipos limitados, de retratações bidimensionais e rasteiras. Apesar da segurança com que emitem suas opiniões e de soarem autoconfiantes demais, suas conversas enveredam por caminhos que trazem à tona certa vulnerabilidade, o receio com relação à mudança e algumas mágoas e rancores acentuados. A construção dos personagens, por meio de diálogos reveladores, é notável por humanizar nomes conhecidos como lendas, com legados inquestionáveis em suas respectivas áreas de atuação. Powers e King querem que os vejamos como homens adultos ainda tentando se situar e superar suas próprias fraquezas, falhas, temores e apreensões. Tratam-se de personalidades que colidem e ao mesmo tempo se complementam.

Em um momento-chave do longa, Malcolm critica a postura de Cooke, conhecido como o rei do soul, em agradar plateias brancas com suas músicas que versam sobre o amor, denotando a falta de profundidade e posicionamento do vocalista. Posteriormente, Brown avalia sobre o quanto Sam é o único dos quatro com independência financeira, que não trabalha para brancos e conduz sua carreira do modo que bem entende. Em outra sequência, uma das mais belas do filme, Sam e Malcolm “fazem as pazes” após o ativista relatar que esteve em um dos concertos do músico e, diante de um defeito técnico com o microfone, Cooke foi obrigado a pensar com agilidade para resolver e sair daquela situação constrangedora, resolvendo cantar a capella. Mesmo sem o alcance que o microfone traria à sua voz, o artista magnetizou os presentes, atraiu-os a bater as mãos e os pés enquanto ele entoava seus versos. O ativista conta que o que o admirou (por mais que, à distância em que se encontrava sequer conseguisse ouvir o amigo cantar) foi o senso de comunidade, de esforço coletivo e o carisma e “capacidade de liderança” que fez com que a plateia se unisse a ele um momento após começarem as vaias. Em meio a potes de sorvete e provocações ora sutis ora contundentes, os quatro amigos parecem, enfim, encontrar-se prontos para seguir rumos mais audaciosos com firmeza e segurança, ainda que certos fantasmas insistam em assombrá-los. Então Cassius se converte ao islamismo e adota o nome Muhammad Ali. Jim se aposenta da NFL e se dedica a uma nova carreira, a de astro do cinema. Sam apresenta ao mundo uma canção de protesto, diferente de seu habitual repertório. E Malcolm, infelizmente, teria em breve um trágico fim, sendo assassinado dias após proferir a sentença que encerra o longa.

Diferentemente de A Voz Suprema do Blues (um dos destaques dessa temporada de premiações que também é baseado em uma peça teatral), a transposição dos palcos para as telas de Uma Noite em Miami… é bastante funcional. O texto é bem adaptado e enxuto e os atores não se excedem em nenhum momento, jamais soando acima do tom. Em uma estreia mais do que competente como cineasta, a atriz Regina King demonstra absoluto domínio da mise-en-scène e destreza ao contornar limitações. Mesmo apostando na economia de cenários (basicamente toda a narrativa se desenrola dentro do quarto de hotel de Malcolm X, após uma vitória emblemática de Clay nos ringues, quando o atleta faturou seu primeiro título mundial dos pesos-pesados) e em longos diálogos, a trama segue sem se tornar exaustiva, apostando no carisma, química e interações de quatro excelentes intérpretes.

Infelizmente, o longa não concorrerá às categorias de melhor filme e direção no Academy Awards. Ainda assim, tem três indicações e é o favorito para levar a estatueta de canção original, com a belíssima “Speak Now”, composta pelo mesmo Leslie Odom Jr que interpreta San Cooke.

>> Uma Noite em Miami… concorre no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em três categorias: ator coadjuvante, roteiro adaptado e canção original