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Flee

Documentário produzido em animação conta a tocante história de medos, fugas e segredos de um refugiado afegão

Texto por Marden Machado (Cinemarden)

Foto: Google Play/Divulgação

A produção do documentário em animação dinamarquês Flee (Flugt, Dinamarca/França/Noruega/Suécia/Holanda/Reino Unido/EUA/Finlândia/Itália/Espanha/Estônia/Eslovênia 2021 – Google Play) com a participação de outros países: Suécia, Noruega, França, Estados Unidos, Espanha, Inglaterra e Itália. Dirigido por Jonas Poher Rasmussen, acompanhamos aqui a história real de Amin Nawabi, que fugiu, ainda criança, do Afeganistão. Agora, na casa dos 30 anos, ele finalmente revela ao diretor do filme sua tocante história carregada de medos, fugas e segredos. Entre eles o de sua orientação sexual. Sua trajetória de vida é das mais sofridas e hoje adulto, vivendo na Dinamarca, ele é respeitado em seu trabalho como acadêmico e planeja construir um lar com seu companheiro. Mas antes terá que acertar as contas com um passado de dolorosas perdas.

Flee (titulo que, em português, pode ser traduzido como Fuga) é uma animação que insere imagens reais em determinados momentos. Mas o impacto de sua história é tão forte, que esquecemos estar diante de uma animação. E não se trata de rotoscopia, como pode parecer. Os desenhos foram feitos a partir das imagens gravadas da entrevista de Rasmussen com Nawabi.

Em tempo: Flee conquistou algo inédito ao ser indicado na disputa do Oscar 2022 nas categorias de melhor filme internacional, documentário de longa-metragem e animação.

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Druk – Mais Uma Rodada

Filme dinamarquês vencedor do Oscar de produção internacional deste ano divide opiniões ao exagerar no tema consumo excessivo de álcool

Texto por Andrizy Bento

Foto: Vitrine Filmes/Synapse/Divulgação

Quem vai fazer como Hemingway e estourar os próprios miolos e quem vai (como Winston Churchil) ganhar uma guerra mundial?

A sede da quarta maior cervejaria do mundo, Carlsberg, fica localizada em Copenhagen, capital dinamarquesa, e é uma das atrações turísticas da região, considerada uma verdadeira instituição do país. A Dinamarca também sedia o evento Mikkeller Beer Celebration Copenhagen (outrora conhecido como Copenhagen Beer Celebration), um dos festivais de cerveja mais cultuados ao redor do globo, organizado pela famosa microcervejaria Mikkeller desde 2012. O país nórdico tem uma história de amor antiga com a cerveja, que data de cinco mil anos, segundo pesquisadores – uma relação duradoura. A Dinamarca ainda integra o círculo dos produtores mundiais de grandes whiskies e abrigava a garrafa de vodka mais cara do mundo, em um bar da capital, avaliada em US$ 1,3 milhão (até ser roubada e encontrada vazia em uma obra pública em 2018). Mas esse é o lado romântico da tradição e cultura etílica do país. 

De acordo com os dados divulgados nos últimos anos pela Organização Mundial da Saúde e estudos recentes realizados por instituições independentes de pesquisas, por mais que o consumo de bebida alcóolica na Europa venha declinando de uns tempos para cá, o velho mundo continua a figurar como a região com o mais elevado consumo per capita mundial de álcool. A porcentagem vem em constante queda desde 2000, mas o índice de consumo ainda é preocupante. No relatório publicado no periódico médico The Lancet, em 2018, a Dinamarca foi apontada como o país com mais pessoas que bebem no mundo (sendo 95,3% das mulheres e 97,1% dos homens), corroborando as informações fornecidas pela OMS naquele mesmo ano. No ranking da independente Global Drug Survey, divulgado em janeiro de 2021, o país escandinavo aparece em uma posição avantajada dentre os maiores consumidores de álcool, ocupando a quarta posição.

A paixão por bebidas fermentadas e destiladas, bem como as consequências do seu excesso, é o mote de Druk – Mais Uma Rodada (Druk, Dinamarca/Suécia/Holanda, 2021 – Vitrine Filmes/Synapse), longa assinado pelo cineasta dinamarquês Thomas Vinterberg e vencedor do Oscar deste ano de Melhor Filme Internacional. A trama, um híbrido de drama e comédia, aborda os benefícios e malefícios do consumo de bebida alcóolica em um conto de cunho intimista, mas que aspira a transmissão de uma mensagem universal; sem assumir o tom de apologia, mas passando distante do caráter denunciativo; combinando, em uma mesma esfera, personagens que atravessam a famigerada crise da meia-idade com adolescentes sofrendo as típicas inquietações da juventude. É apoiando-se em uma estrutura de visíveis contrastes que Druk, curiosa e coincidentemente, alcança a proeza de ser um oito ou oitenta, repleto de méritos estéticos e narrativos, mas munido de decisões questionáveis e problemáticas.

Partindo da suposta teoria de que o homem nasce com um déficit de 0,5% de álcool no sangue (atribuída ao filósofo e psiquiatra norueguês Finn Skårderud, embora rechaçada pelo próprio na vida real), Vinterberg fundamenta sua narrativa. Um grupo de quatro amigos – Martin (Mads Mikkelsen), Tommy (Thomas Bo Larsen), Nikolaj (Magnus Millang) e Peter (Lars Ranthe) – professores do ensino médio, comentam essa teoria durante um jantar e resolvem testá-la após Martin desabafar sobre seus fracassos na vida pessoal e profissional. O protagonista enfrenta problemas no casamento, diante da indiferença e silêncio da esposa, Anika (Maria Bonnevie), e vem sendo alvo do constante criticismo de seus alunos e dos pais dos estudantes, que questionam sua competência como docente e alegam que a qualidade das aulas está bem abaixo da média, podendo comprometer o ingresso de seus filhos em exigentes e renomadas universidades e, por conseguinte, prejudicar todo o futuro dos jovens. 

Sob o pretexto de repor e equilibrar o nível de álcool faltante no organismo e de quebra retomar a autoconfiança perdida, se sentirem mais relaxados, felizes e até mesmo melhorar a interação com os alunos (que, inclusive, já consomem grandes quantidades de bebidas alcóolicas), os quatro optam por beber todos os dias antes de ministrarem suas aulas. Em um primeiro momento, a ingestão do álcool como experimento traz melhorias para a produtividade de todos eles. Logo, no entanto, é visível como o respaldo acadêmico acaba deixado de lado e a suposta tese de Skårderud vira uma desculpa perfeita para os quatro amigos se embebedarem em horário comercial; algo que escapa ao controle de todos eles que se excedem no consumo, trazendo impacto negativo e efeitos nocivos para seus empregos e relações pessoais.  Apesar de uma premissa questionável, o roteiro é bem eficiente e torna o absurdo plausível, devido ao pleno domínio que Vinterberg tem de sua narrativa, sabendo conduzi-la com bastante destreza. Todavia, é necessário comprar a ideia para poder curtir o filme.

O longa é bastante sutil ao abordar e exemplificar os efeitos positivos e negativos do consumo de bebida alcóolica, sem apelar para o moralismo. Quando há equilíbrio e consciência, o álcool pode ajudar a trazer mais confiança, desinibição e ousadia. O abuso, entretanto, pode acarretar na destruição do lar, casamento, carreira e culminar em tragédia. O mais importante, como já pontuado, é que Druk passa longe de discursos de defesa ou demonização. Ao mesmo tempo em que tem essa sutileza desprovida de julgamentos, trata-se de um filme bombástico.

O diretor de fotografia, Sturla Brandth Grøvlen, faz um trabalho notável. A câmera trepidante é um acerto, acompanhando os passos trôpegos e vacilantes dos ébrios amigos pelas ruas, transmitindo com precisão suas dificuldades em subir escadas e encontrar o caminho de casa, o que rende takes inspirados, vertiginosos e belíssimos.

Mads Mikkelsen, além de carismático, é um excelente intérprete, capaz de demonstrar suas emoções apenas por meio de olhares expressivos. O ator captura e transmite bem o sentimento de solidão inerente ao seu personagem e compõe um perfeito retrato de um homem comum em crise, lidando com o abandono, a rejeição, a insatisfação e a perda do estímulo em viver diante de uma rotina imutável que não lhe proporciona novos desafios. E é amparado por coadjuvantes de peso. Todo o elenco é afinado e convincente, especialmente os quatro amigos que constroem e vivem uma relação de companheirismo e intimidade bastante crível na tela. A química entre Mikkelsen, Larsen, Ranthe e Millang é admirável.

O filme se prolonga um pouco além do que deveria e é mal resolvido em diversos pontos, especialmente no uso das constantes cartelas pretas como recurso narrativo – para inserir breves informações na tela a fim de situar o espectador e até mesmo simular uma troca de mensagens via celular entre os personagens, o que soa não apenas simplista como até mesmo precário. Os argumentos utilizados para embasar a trama são um tanto quanto superficiais. O próprio Skårderud, autor da tal teoria que fundamenta a obra, já se posicionou dizendo que fora mal interpretado e que houve uma leitura seletiva e equivocada do prefácio que ele escreveu para a tradução norueguesa do livro Os Efeitos Psicológicos do Vinho, do autor italiano Edmondo de Amicis. Para completar, o desfecho da história parece esvaziar quase que totalmente a importância do assunto. A já emblemática sequência de dança executada por Mikkelsen no final do filme é o que melhor define a sensação de ame-se ou odeie-se que acompanha a obra.

A crítica internacional adorou Druk. O longa ganhou o Oscar, como já mencionado, e diversos outros prêmios como o BAFTA e o César. Mas há especialistas que afirmaram que o filme é um embuste. Parte da crítica nacional não se impressionou quando da sua exibição na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado. O sentimento é comum aos filmes de Vinterberg – egresso do movimento Dogma 95, onde se destacou com Festa de Família de 1998, e diretor do aclamado, porém, ambíguo e controverso A Caça, de 2012 (também indicado a importantes premiações). O cineasta segue despertando ódios e paixões, assim como seu contemporâneo Lars Von Trier (mas longe de ser tão apelativo como ele, convém dizer). Amor ou ódio, não importa: é impossível ficar indiferente diante de um filme tão incômodo e inquietante como Druk. Enquanto alguns consideram a obra inebriante, outros apontam que ela embriaga pela alienação. Ao contrário do que sugere o sutítulo em português, Mais Uma Rodada, desaconselho levá-lo ao pé da letra e embarcar em uma revisão, pois é quando os problemas do filme ficam ainda mais visíveis. Se apreciado com moderação, o longa dinamarquês pode ser uma boa pedida. No entanto, exagerar na dose não é recomendável.

Music

Scott Walker (1943 – 2019)

Quem foi o cara que misturou tristeza e posicionamento político em suas canções e foi influência suprema de David Bowie e o britpop

scottwalker

Texto por Carlos Eduardo Lima (Célula Pop)

Foto: Reprodução

Certas notícias a gente torce para nunca escrever. A morte de Scott Walker, ocorrida no último dia 25 de março, por exemplo, é uma delas. Certamente quase um desconhecido por aqui, Scott era um desses artistas que expandiu as fronteiras da música popular no século 20. Em alguns momentos, sua carreira esteve em pé de igualdade com Beatles e Rolling Stones em termos de influência e até mesmo popularidade. Sua obra foi responsável por influenciar centenas de outras bandas e cantores e seu estilo de cantar e compor transformou para sempre o rock. Entre seus herdeiros musicais estão David Bowie, Jarvis Cocker, Marc Almond, Richard Hawley, Suede, Radiohead, Blur, Last Shadow Puppets e todo vocalista ou banda pop que resolveu subir num palco cantando as agruras da vida.

Sim, porque Scott se tornou notório a partir de uma combinação improvável de vocais operísticos/barítonos com capacidade de evocar referências literárias/artísticas que lhe permitiam cantar sobre a questão política da Primavera de Praga em pleno 1968, fazer referências a filmes cult como O Sétimo Selo, do diretor sueco Ingmar Bergman – muito antes desta ideia atual de cultsequer existir – e, ao mesmo tempo, forjar um padrão de pop orquestral e belo, versando sobre amor não correspondido, arrependimento, tristeza, solidão. Além disso, suas canções abriam espaço para suicidas, ressentidos, drogados, vagabundos noturnos. Scott Walker tinha a capacidade de colocar pra baixo o mais esfuziante ser e escrevo isso sem tom pejorativo.

Scott era americano, nascido Noel Scott Engel em 9 de janeiro de 1943. Saiu da improvável cidadezinha de Hamilton, Ohio, para fazer fama na Inglaterra, em meados dos anos 1960. Formou com John Maus e Gary Leeds o Walker Brothers. Claro, não eram irmãos, muito menos se chamavam Walker. Fizeram sucesso arrebatador na Inglaterra, especialmente com versões de clássicos como “Make It Easy On Yourself” e “The Sun Ain’t Gonna Shine Anymore”, canções belíssimas e tristíssimas. Seu registro vocal característico misturava influências operísticas e mesmo do teatro japonês – algo impensável para a época. Tal fato virou a cabeça de um iniciante David Jones, que se chamaria David Bowie em seguida, que deve sua marca vocal registra a Scott.

Com o fim dos Walker Brothers em 1968, Scott impôs-se como artista solo. Ele já vinha lançando sua série de álbuns homônimos/numerados, que culminou com Scott 4, em 1969. Deste período vêm pérolas próprias e de outros compositores, como “Montague Terrace (In Blue)”, “Jackie”, “The Girls From The Streets”, “Windows Of The World”, “It’s Raining Today”, “Copenhagen”, “The Seventh Seal” e até a inacreditável “Old Man’s Back Again (Dedicated To The Neo Stalinist Regime)”, que, como o título diz, fala sobre a política da URSS em relação ao mundo em 1969. A preferida pessoal deste que vos escreve, no entanto, é a lindíssima e cortante: “The Lights Of Cincinatti”, com os versos:

“And I can see them shining
Through the willows and the pines,
The lights of Cincinatti
Oh, so many miles behind,
I could build myself a new life
And make it on my own,
But the lights of Cincinnati
Will keep calling me back home.”

Escrever e gravar sobre estes temas, buscando expandir fronteiras musicais não são traços de um popstar, certo? Scott tornou-se um artista recluso, quase uma lenda. Seus álbuns posteriores à quadrilogia Scott são menos inspirados, ainda que tragam momentos impressionantes. Os anos 1970, no entanto, foi mais das crias estéticas de Scott do que dele mesmo. O grande acontecimento para ele foi o retorno dos Walker Brothers originais em 1978, a bordo do disco Nite Flights, que apenas marcou a reunião do trio inicial, enquanto o mundo estava ouvindo disco music e punk rock.

Scott ressurgiria por algumas vezes lançando discos. Em 1984, com Climate Of Hunter e, onze anos depois, com Tilt, trabalhos que já podem ser entendidos sob o ponto de vista “alternativo”, algo que Walker fez na maioria das vezes que lançou álbuns. Mais recentemente, viriam The Drift, em 2006; Bish Bosch, em 2012; e Soused, colaboração com o grupo americano Sunn O))), lançado em 2014. Walker permanecia oculto, nas sombras, local onde sempre pareceu sentir-se mais adequado e confortável. Seu último trabalho foi a trilha sonora do filme Vox Lux, estrelado por Natalie Portman, em cartaz no Brasil.

Não há mais espaço na música pop para gente como Scott Walker. Se um equivalente seu surgisse hoje, seria desencorajado a seguir carreira na música. Referências literárias? Desejos instrumentais e operísticos? Canções fora dos padrões? Poucas visitas em perfis de redes sociais? Scott é reflexo de um tempo em que havia possibilidade da arte menos popular impregnar outros campos – populares – gerando cultura e novas abordagens. Sem ele, a música pop seria incrivelmente mais pobre e mais óbvia. Que seu talento seja reconhecido por mais e mais pessoas.