Movies, TV

Tarcísio Meira

Oito longas-metragens para relembrar sempre a excelência e a versatilidade das atuações deste que foi o grande galã das telenovelas

Texto por Abonico Smith e Marden Machado (Cinemarden)

Fotos: Divulgação

Na manhã de 12 de agosto de televisão a história da televisão brasileira ficou bem mais triste. O hospital Albert Einstein, em São Paulo, anunciou a morte do ator Tarcisio Meira, aos 85 anos de idade, por problemas de saúde decorrentes da covid-19. Ele estava internado havia alguns dias. A atriz Gloria Menezes, sua esposa de quase seis décadas, também internou-se com covid no mesmo hospital. Mas ela, ao contrário do marido, reagiu bem, não precisou ser deslocada do quarto até a UTI e teve alta hospitalar dias após ser informada do falecimento do marido.

O nome de Tarcísio Meira se confunde com o da história da TV nacional. Ele é um dos maiores símbolos da teledramaturgia, tendo somado durante a trajetória profissional 78 participações em produções seriadas (novelas, séries, minisséries), programas documentais e teleteatro (quando as encenações eram transmitidas ao vivo, o que era comum até o começo da década de 1960).

De formação teatral clássica e biotipo de galã, Tarcisio não precisou de muito para assumir o posto de protagonista de telenovela. Desde a primeira, aliás. E já em 2-5499 Ocupado, feita pela TV Excelsior em 1963 a partir de uma adaptação do texto original argentino, atou ao lado de Gloria, com quem, pelas próximas duas décadas, fez par constante em vários outros títulos. 

Mas foi a partir de 1969 que ele ajudou a construir junto com a Rede Globo uma indiscutível excelência nesse formato de folhetim diário, fazendo da emissora carioca um nome mundial da televisão com sucessivas exportações de produções para exibição em dezenas de outros países. Também ajudou a consolidar a chamada “novela das oito” (que com o passar do tempo foi começando mais tarde e atualmente começa às nove e meia da noite) como elemento principal do horário nobre da Globo, formado ao lado do Jornal Nacional e de um produto da linha de shows e entretenimento. Afinal, Tarcisio protagonizou muitas histórias de sucesso e popularidade, que ficaram na memória do público brasileiro tanto no formato de novela quanto de minisséries. Entre os títulos mais importantes da telinha que contaram com o ator no elenco estão 2-5499 Ocupado (1963), Irmãos Coragem (1970 – foto acima), Cavalo de Aço (1973), Espelho Mágico (1977), Guerra dos Sexos (1983), O Tempo e o Vento (1985), O Rei do Gado (1996) e Saramandaia (2013).

Só que Tarcísio Meira não foi apenas um profissional a serviço das telenovelas. Também encenou 31 peças teatrais e rodou 22 filmes. Em homenagem ao ator, o Mondo Bacana disseca oito presenças fundamentais de Tarcisão (apelido pelo qual era carinhosamente chamado, em contraponto ao filho Tarcísio Filho, o Tarcisinho), na tela grande. E entre eles não está A Idade da Pedra (1981), o confuso último filme dirigido por Glauber Rocha… (AS)

Quelé do Pajeú (1969)

Não seria exagerado dizer que Anselmo Duarte seja o artista brasileiro mais próximo do italiano Vittorio De Sica. Ambos iniciaram carreira no cinema como atores. No caso de Anselmo, na segunda metade dos anos 1940. Pouco depois já começou a escrever roteiros e no final da década seguinte estreava na direção de longas. Sua obra maior, O Pagador de Promessas, feito em 1962, ganhou a Palma de Ouro em Cannes. Quelé do Pajeú, de 1969, foi seu quarto longa e marcou a estreia de Tarcísio Meira como protagonista em um filme. A história, criada por Lima Barreto (do sucesso O Cangaceiro, de 1953), foi roteirizada pelo próprio Anselmo Duarte. Temos aqui o mais próximo em nosso cinema de um faroeste. Tudo começa quando a jovem Marizolina (Elizângela) é violentada. Seu irmão, Quelé, mente e Celidônio (Meira) sai pela região em busca de vingança. A ação se passa nos anos 1930 no interior do nordeste brasileiro. Quelé enfrenta perigos em sua jornada, além de fazer amigos e conquistar o coração da jovem Do Carmo (Rossana Ghessa). Também conhecido como A Fúria do Vingador, temos aqui uma obra faz bom uso dos elementos clássicos de bom bang bang, porém, com um toque bem brasileiro. Além disso, Meira convence plenamente no papel-título e a trama mantém nosso interesse até o final. (MM)

Independência ou Morte (1972)

Quando das comemorações dos 150 anos da independência do Brasil, em 1972, Oswaldo Massaini e Aníbal Massaini Neto produziram um dos grandes épicos do cinema nacional. Com direção do paulista Carlos Coimbra, que vinha de uma série de filmes populares tendo o cangaço como premissa, a obra teve roteiro escrito pelo próprio Coimbra junto com Anselmo Duarte, Dionísio Azevedo e Lauro César Muniz. Acompanhamos aqui a trajetória de Dom Pedro I (Tarcísio Meira) responsável pelo famoso grito dado às margens do rio Ipiranga, em São Paulo, e que proclamou a independência de nosso país de Portugal. Misturando aventura com política e romance, o filme procura traçar um painel multifacetado do primeiro imperador brasileiro ao abordar sua grande paixão pelo Brasil, sua postura política e seu envolvimento com a Marquesa de Santos (Glória Menezes), sua amante. Meira esbanja carisma no papel principal, a exemplo do que viria a fazer, 13 anos depois, na minissérie O Tempo e o Vento, quando interpretou o capitão Rodrigo Cambará. Sucesso de público quando de seu lançamento, Independência ou Morte continua sendo a melhor cinebiografia do filho mais velho de Dom João VI. (MM)

O Marginal (1974)

O diretor carioca Carlos Manga foi um dos maiores nomes das chanchadas da Atlântida, que reinaram absolutas nas bilheterias nacionais dos anos 1950. Mais conhecido por suas comédias, tanto no cinema como na televisão, Manga dirigiu O Marginal, em 1974, e surpreendeu todo mundo ao abandonar o gênero que o consagrou. Com roteiro do próprio diretor, escrito junto com Lauro César Muniz, a partir de um argumento de Dias Gomes, o filme segue a cartilha dos policiais hollywoodianos. Incluindo alguns flashbacks e razões psicológicas para justificar o comportamento de Osvaldo de Moraes (Tarcísio Meira), na época o grande galã da TV buscando aqui fugir um pouco do estereótipo de bom moço. Ele, quando criança, fugiu de um orfanato, onde sofria maus tratos, e acabou por entrar, já adulto, para o crime. Ambicioso, Valdo termina dando “um passo maior do que a perna” e acaba preso. No melhor estilo femme fatale dos clássicos policiais noir dos anos 1940, a mulher, ou como é o caso em O Marginal, as duas que cruzam o caminho de Valdo, têm papel decisivo em sua vida. Manga imprime ritmo e realiza uma obra que não nega sua inspiração made in Hollywood, mas também não a compromete. E este filme ainda tem trilha sonora composta pela dupla Roberto e Erasmo Carlos. (MM)

República dos Assassinos (1979)

É curioso perceber que Tarcísio Meira procurou no cinema, pelo menos entre meados dos anos 1970 até o final da década seguinte, fugir do estigma de galã que a televisão lhe havia imposto. Essa busca fica mais do que evidente em República dos Assassinos, com direção de Miguel Faria Jr. A história tem por base o romance de mesmo nome escrito por Aguinaldo Faria, que assina o roteiro junto com o próprio diretor. A ação acontece no Rio de Janeiro e gira em torno de um Esquadrão da Morte composto por policiais e liderado por Mateus Romeiro (Meira). Alçado pela mídia ao posto de heróis da sociedade, o grupo é chamado de Homens de Aço. No entanto, o modus operandi é de uma milícia. Macho até a medula, na pior acepção da palavra, Mateus trata as mulheres com quem se relaciona como meros objetos. Apesar da presença forte de Tarcísio Meira à frente do elenco, quem “rouba” o filme é Anselmo Vasconcelos, no papel do travesti Eloína. Mesmo tendo envelhecido mal, República dos Assassinos traz um retrato preciso do Brasil daquela época. Um retrato que, em muitos aspectos, infelizmente, continua o mesmo. (MM)

O Beijo no Asfalto (1981)

Nelson Rodrigues, o maior dramaturgo brasileiro, escreveu uma de suas peças mais conhecidas, O Beijo no Asfalto, em 1960. A primeira encenação ocorreu no ano seguinte e três anos depois ganhou sua primeira adaptação para o cinema, chamada simplesmente de O Beijo, dirigida por Flávio Tambellini e com o jovem Reginaldo Faria à frente do elenco. Esta segunda versão, de 1981, com direção de Bruno Barreto, teve o roteiro adaptado por Doc Comparato. No papel de Arandir temos Ney Latorraca, um bancário que ao presenciar o atropelamento de um homem por um ônibus, vai em seu socorro. Um ato de bondade termina por transformar inteiramente a vida de Arandir, tornando-o alvo de preconceito, além de investigado pela polícia. Sem contar o que acontece em sua própria casa na sua relação com a esposa, Selminha (Christiane Torloni), a cunhada Dália (Lídia Brondi) e o sogro Aprígio (Tarcísio Meira). A abordagem de Barreto procura ser fiel ao texto de Rodrigues e consegue seu objetivo. Existe uma terceira versão dessa peça, mais sofisticada em sua abordagem, dirigida em 2018 pelo ator Murilo Benício e com Lázaro Ramos e Débora Falabella nos papéis principais. (MM)

Eu Te Amo (1982)

Quem só conhece Arnaldo Jabor de seus comentários políticos na imprensa não faz ideia de que ele fora um grande cineasta antes. Jabor iniciou sua carreira na segunda metade dos anos 1960, na esteira do Cinema Novo e construiu, ao longo das décadas seguintes, uma sólida filmografia. Eu Te Amo, de 1981, é a parte dois da chamada Trilogia do Apartamento, iniciada em 1978 com Tudo Bem e concluída em 1986 com Eu Sei Que Vou Te Amar. O roteiro, do próprio Jabor, parte de uma história criada por Leopoldo Serran e apresenta o empresário Paulo (Paulo César Pereio). Duplamente falido, nos negócios e na vida pessoal, ele convida Maria (Sônia Braga), que conhecera na noite anterior, para visitá-lo em seu apartamento cheio de aparelhos de televisão. Abandonados, ambos se encontram em suas solidões. Ele, pela lembrança de Bárbara (Vera Fischer). Ela, pela de Ulisses (Tarcísio Meira). Há um misto de dor e desespero na forma como Paulo e Maria se relacionam. E Jabor, ciente do talento de seu elenco e da força ácida dos diálogos que escreveu, tira todo proveito das situações apresentadas. Com produção de Walter Clark, o então todo poderoso da Rede Globo, Eu Te Amo, apesar de marcado pela estética neon do cinema feito na época, conseguiu envelhecer bem e manter-se relevante 40 anos após seu lançamento. (MM)

Eu (1987)

Assim como o autor de novelas Manoel Carlos tem suas Helenas, o cineasta Walter Hugo Khouri tinha seus Marcelos, que apareceram em dez dos 25 longas que ele escreveu e dirigiu. Eu, de 1987, marca a oitava aparição do personagem, vivido aqui pelo ator Tarcísio Meira. Marcelo é um empresário muito rico e possui um desejo incontrolável por belas mulheres, que sempre estão ao seu lado. Apesar disso, nunca fica satisfeito. Na verdade, ele nutre uma paixão secreta e proibida por Berenice (Bia Seidl), sua única filha. A ação se concentra na casa de praia do milionário, no período das festas de fim de ano. É para lá que ele vai acompanhado de Renata (Monique Lafond), Lila (Nicole Puzzi) e Diana (Monique Evans). Para sua surpresa, a filha também aparece levando Beatriz (Christiane Torloni), uma psicóloga amiga sua. Marcelo é um homem, pode-se dizer, que tem tudo e, ao mesmo tempo, nada. Já que, por mais que seus desejos sejam realizados, sempre parece faltar alguma coisa. E Tarcísio Meira transmite esse vazio interior misturado com arrogância de maneira perfeita. (MM)

Não Se Preocupe, Nada Vai Certo (2011)

Em quase 60 anos de carreira, Hugo Carvana atuou em muitas frentes na TV e no cinema, seja como ator, roteirista, produtor e diretor. Foram mais 100 obras e dentre elas, nove longas dirigidos por ele. O penúltimo foi Não Se Preocupe, Nada Vai Dar Certo, de 2011, derradeiro trabalho de Tarcísio Meira na telona. O roteiro de Paulo Halm apresenta Lalau Velasco (Gregório Duvivier). Ele viaja pelo interior do nordeste brasileiro com seu stand up onde conta histórias hilárias das trapalhadas de seu pai, Ramon Velasco (Meira). Certo dia, no Ceará, ele recebe uma proposta irrecusável de Flora (Flávia Alessandra) para se passar por um guru indiano contratado para uma palestra motivacional. Sem que seu pai saiba, Lalau vai para o Rio de Janeiro, onde, mais tarde, é encontrado por Ramon. Esta é uma comédia que se sustenta em situações de pura farsa que, em certa altura, assumem uma aura de mistério policial. Meira e Duvivier acertam na química, que fica melhor ainda quando entra em cena um velho amigo de ambos, Zimba, vivido pelo próprio Carvana. (MM)

Movies

Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou

Documentário sobre a obra e os últimos meses de vida de um dos maiores cineastas brasileiros leva o espectador à catatonia

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Imovision/Divulgação

Como realizar um documentário sobre a vida e obra de um dos maiores cineastas brasileiros? Em Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou (Brasil, 2020 – Imovision), documentário dirigido pela esposa do diretor, Bárbara Paz, a linha que divide a filmografia de Hector de suas experiências de vida praticamente não existe. Como um retrato dos últimos meses de vida do cineasta Hector Babenco e sua discussão consigo mesmo sobre a morte, o roteiro, arquitetado por Paz e Maria Camargo, mescla a obra de seu protagonista com seus retratos e relatos, por vezes de maneira simbólica, por outras mais ilustrativa. 

A estrutura quase experimental do filme ressalta a autoria da diretora, com lindas sequências que ilustram o estado de espírito de seu companheiro, evidenciando que sua preocupação não é material. Isto porque não nos são tão importantes fatores como o diagnóstico, as ostensivas visitas a médicos e até depoimentos destes profissionais; mas sim os sonhos de Babenco, seus devaneios e, claro, uma recolocação de sua carreira no cinema – de seu amor pela sétima arte. 

Portanto, o documentário se desenvolve num reflexo do carinho do casal, tanto no olhar de Paz sobre a carreira de seu amado quanto nos momentos de interação entre os dois que figuram o filme. Seja num leito de hospital ou na sala de casa, a sinergia dos dois é tocante – e proporciona alguns dos mais emocionantes momentos do filme. Sendo assim, essa é a cola de uma narrativa solta, que divaga por seus temas, como a morte, o próprio fazer cinema, a trajetória de Babenco – que já foi preso e saiu do set para realizar uma cirurgia e, dois dias depois, voltou como se nada tivesse acontecido – e a própria autoria fílmica.

Isto torna interessante, portanto, a presença da veia fílmica do próprio Babenco nesse longa, que é aparente nas decisões de linguagem – ele comenta, estimula e intenciona as sequências, como um autor de seu próprio filme, ainda que com respeito à direção de sua esposa. Essa autoria também é discutida aqui, de certa forma, principalmente por meio do próprio discurso (falado) do cineasta. Tal é a articulação desse documentário: por vezes, o próprio Babenco é quem fala de suas memórias ou impressões; enquanto, às vezes, esse é o papel de sua filmografia, que fala por si só, e de Bárbara Paz.

Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou é um filme profundo, que imerge o espectador numa catatonia imediata e se prende em sua cabeça pelos próximos dias e semanas. Hector Babenco pode ter escolhido filmar essa história para esquecer-se dela, mas tanto sua biografia quanto esse presente fílmico ficarão gravadas na memória coletiva do cinema brasileiro.

>> Este filme foi selecionado pelo Brasil para concorrer à disputa para os cinco indicados para o Oscar de melhor obra em língua não inglesa (categoria popularmente conhecida com Filme Estrangeiro) de 2021.

Music

Cocteau Twins

Trinta anos de Heaven Or Las Vegas, o sexto álbum da carreira do trio escocês que traduziu com perfeição a representação musical dos sonhos

Texto por Fábio Soares

Foto: 4AD/Divulgação

No ano de 2017, em programa apresentado na rádio inglesa BBC 4, os cientistas Adam Weir Rufherford e Hannah Fry receberam uma pergunta curta e grossa de uma ouvinte de apenas nove anos de idade: “Por que sonhamos?”, indagava Mila O’Dea, panamenha da cidade de Gamboa.

O secular questionamento vindo da jovem caribenha fazia todo o sentido, tendo em vista que milhares de estudos sobre o fenômeno transpassam décadas sem receber um definitivo “martelo”. A mais famosa delas foi desenvolvida pelo fisiologista Eugene Aserisnky, da Universidade de Chicago, em dezembro de 1951. Ele conectou seu filho de apenas oito anos a um aparelho de eletroencefalograma. A partir do disparo frenético da agulha do maquinário, Aserisnky percebeu que os olhos do garoto também eram estimulados por uma espécie de frenesi interno. Este fenômeno foi batizado por Eugene com uma sigla: R.E.M. (Movimento Rápido dos Olhos, em português). O resto é história.

Mas teria o sonho uma trilha sonora que o traduzisse à sua quase totalidade? Sim! Em setembro de 1982, um trio escocês daria ao mundo Garlands, uma bolacha que vinha mais para confundir do que explicar. Com atmosfera assustadora e afinações de baixo longe do convencional, os Cocteau Twins traziam um quesito a mais: a linha vocal de Elisabeth Fraser, que fugia (e muito) do lugar-comum. Fraser não cantava, mas, sim, conduzia um bólido sonoro por caminhos tortuosos. Tamanha indentidade chamou a atenção do lendário radialista britânico John Peel. Dois anos depois, no antológico disco Treasure, a voz de Liz atingia o patamar de inimaginável. Suas nuances e curvaturas vocais lhe renderam a alcunha de “Voz de Deus” por parte da crítica especializada inglesa. Estava solidificado, portanto, o termo dream pop. Gênero específico, inacessível porém, sublime. Mas ainda faltava algo. Um álbum para as massas. E coube ao ano de 1990 o papel de recorte temporário a um inevitável ápice.

Reza a lenda que o clima do trio durante as gravações de Heaven Or Las Vegas não era dos melhores. O casamento de Fraser com o guitarrista Robin Guthrie, não estaria bem, mesmo após o nascimento da única filha do casal, Lucy Belle, em 1989. Somado a isso, o vício de Guthrie em álcool e drogas levou a união de ambos à beira de um colapso. Alheio a este turbilhão, o baixista Simon Raymonde era o fiel da balança para fazer a coisa andar. E ela andaria nem que fosse na marra.

Heaven Or Las Vegas, já o sexto álbum da carreira, lançado em 17 de setembro de 1990, nasceu GIGANTESCO – a caixa alta ao defini-lo é plenamente justificável a partir de sua faixa de abertura. O vocal de Fraser, mais seguro como nunca, jamais soou tão avassalador. Aos 27 anos de idade, a soprano parecia atingir seu ápice técnico. A linha de baixo de Raymonde nunca soou tão segura como base para a genialidade de Guthrie. Arranjos estrelados mantém o nível em altíssimo patamar. Tente ficar indiferente à marcial batida de “Cherry-Coloured Funk” e falhe miseravelmente. O leque harmônico da banda parecia ser infinito. Como um sonho, claro. Propositalmente? Difícil saber. Prefiro acreditar que um liquidificador emocional foi ligado no estúdio e as sobreposições de camadas vocais, instrumentais e o raio que o parta veio para disparar nosso rápido movimento dos olhos acentuado na dobra de “Pitch The Baby” e “Iceblink Luck”.

A atmosfera de sonho atinge o nível máximo do sublime na faixa-título. O vocal de Liz conduz o ouvinte a um sobrevôo sobre a paisagem que melhor lhe convier. O céu de brigadeiro está ali e cabe a você, reles mortal, gratuitamente aproveitá-lo. O slide guitar de Guthrie é o trem de pouso. Você demorou demais para aproveitar. Portanto, volte a faixa para o início e decole novamente.

O voo termina com “Frou-Frou Foxes In Midsummer Fries” com a voz de Liz nos lembrando de que já é hora de acordar. Nos lembrando também de que Heaven Or Las Vegas, trinta anos após seu lançamento, permanece inabalável. Uma catedral sonora tão generosa que fica ali, de portas abertas para quem quiser adentrá-la. Afinal, Deus estava certo ao enxergar em Liz Fraser sua perfeita mensageira.

Entendemos a mensagem, Senhor. Mas, por favor, nos deixe sonhar mais um pouco. E que assim seja, por mais múltiplos de trinta…

Movies

O Preço da Verdade

História de advogado ambientalista que luta pela regulação de produtos químicos ganha adaptação com o também ativista Mark Ruffalo

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Texto por Ana Clara Braga

Foto: Paris Filmes/Divulgação

Robert Bilott é um advogado ambientalista norte-americano que luta pela regulação de produtos químicos. O Preço da Verdade (Dark Waters, EUA, 2020 – Paris Filmes), acompanha o início a trajetória do ativista neste ramo. O suspense legalista mescla momentos de tensão e enrolação em uma história bem sucedida.

Aqui tudo começa em 1998, quando Billot (Mark Ruffalo) recebe a visita do fazendeiro Wilbur Tennant (Bill Camp) na firma em que trabalha. Desesperado, o homem pede a ajuda do advogado para descobrir de onde vêm os químicos que estão matando suas vacas. No começo hesitante, Robert acaba embarcando na guerra contra uma gigante do ramo químico.

O roteiro é baseado em um artigo do jornal New York Times chamado The Lawyer Who Became DuPont’s Worst Nightmare e percorre um recorte temporal de quase vinte anos. Centralizada na figura de Bilott, a sinopse promete as consequências do processo na vida pessoal do advogado, mas a abordagem é muito rasa. Anne Hathaway, escalada como a esposa de Robert, é tristemente pouco utilizada. Uma atriz já premiada com um Oscar fazer um papel tão pequeno e sem evolução soa esquisito. Em algumas cenas parece que finalmente ela terá seu grande momento, só que tudo acaba rápido, tal como começou.

Mark Ruffalo foi uma boa escolha para viver o ativista, já que fora das telas o ator também abraça a causa do meio ambiente. Sua performance, sólida, convence. Suas interações com Bill Camp rendem alguns dos melhores momentos do filme, ricos em humanidade. Robert Bilott, natural da cidade onde os químicos estão sendo despejados, precisa se reconectar com suas origens para entender a importância do caso e o fazendeiro Tennant é peça-chave nesse processo.

 O Preço da Verdade impressiona ao mostrar as consequências que a indústria química pode causar na sociedade, sem explorar dores ou tragédias. A linha temporal por vezes fica um pouco cansativa, são gastos muitos minutos em fatos repetidos enquanto descobertas novas passam na tela em segundos. Em determinado momento, cria-se a sensação de que o advogado corre risco de vida mas isso deixa de ser explorado – e a cena, então, vira algo solto no meio do filme.

A nova obra dirigida por Todd Haynes deixa qualquer um com um gosto amargo na boca ao final do créditos com a iminência de que grandes indústrias não se importam com regulações na hora de fazerem o que querem. A torcida é para que existam mais Robert Bilotts no mundo.

Movies

O Grito

Novo remake americano de conhecida franquia nipônica de horror fica na superficialidade e nada traz de inovador ou assustador

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Texto por Maria Cecilia Zarpelon

Foto: Sony Pictures/Divulgação

O mais novo remake da franquia nipônica Ju-On (2002), O Grito (The Grudge, EUA/Canadá, 2020 – Sony Pictures), não só falha na tentativa de inovar a velha história da casa mal-assombrada e do fantasma vingativo, como apenas evidencia que a ultrapassada maldição do grito está fadada ao fracasso. O enredo da nova produção, dirigida por Nicolas Pesce, já é a segunda versão americana da obra original de Takashi Shimizu. Como os iniciados na franquia bem sabem, o grito é uma maldição que surge quando alguém é assassinado em um momento de ódio extremo. A entidade passa a atormentar a vida de qualquer um que colocar os pés no local do crime. Ao que tudo indica, isso nunca tem fim, assim como os filmes que habita. Baseado no script de Shimizu, o roteiro do novo longa ainda é sobre uma casa japonesa amaldiçoada – o que muda são as vítimas e o lugar. Desta vez, a trama é levada para uma pequena cidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos.

Este filme acompanha a vida da policial Muldoon (Andrea Riseborough), viúva e mãe solteira, que está determinada a solucionar o caso de um cadáver encontrado na floresta. A investigação é a linha norteadora da película. Assim como o remake de 2004, o novo filme dispõe de histórias cruzadas por meio de múltiplas linhas de tempo para apresentar os destinos de vários personagens, entre eles, um casal de corretores de imóveis (John Cho e Betty Gilpin) que enfrentam uma difícil escolha na gravidez, um casal de idosos (Lin Shaye e Frankie Faison) que procuram a ajuda de uma assistente de suicídio assistido (Jacki Weaver), o detetive Goodman (Demian Bichir) e seu antigo parceiro Wilson (William Sadler).

Apostando nos clichês de todo filme de terror, Pesce parece não conseguir fazer o longa se destacar em quase nenhum quesito. Além dos excessivos e costumeiros jumpscares, que acabam sendo fracos e previsíveis, a película se baseia no pretexto mais básico e óbvio de qualquer franquia de horror (como os famosos “você nunca irá escapar” e “a maldição nunca te deixará em paz”). É decepcionante o fato não ser construída uma atmosfera de tensão, ficando tudo preso na segurança de entidades que aparecem desfocadas atrás das pessoas e que desaparecem e reaparecem à medida que um personagem apaga e acende as luzes. Estes clichês se tornaram clichês por um simples motivo: eles funcionam. Entretanto, no caso da franquia de O Grito, eles já foram exaustivamente usados. Talvez fosse a hora de tentar algo novo.

Mesmo que por vezes se apoie no óbvio, este novo longa tem suas passagens favoráveis. Para aqueles que são familiarizados com a franquia de remakes do J-Horror, nesta nova versão ainda existem os famigerados sustos no chuveiro, na pia e na banheira, trazendo um sentimento de nostalgia ao espectador, ao recordar cenas do auge do filme original. As histórias são todas permeadas pela dor e pela perda, numa válida tentativa do diretor de fazer com que a audiência se sinta próxima e acredite em uma realidade muito plausível, mostrando como as pessoas são frágeis e vulneráveis, e que a maldição não perdoa ninguém. Mesmo que o desenvolvimento dos personagens deixe a desejar e acabe sendo um tanto superficial, Pesce investe no sofrimento de cada um. Não apenas o causado pela maldição, mas também aquele que qualquer pessoa poderia ter – o que muitas vezes não é abordado em outras produções do gênero.

Para além da falta de criatividade e originalidade de sustos, o filme não se diferencia daqueles que vieram antes, muito menos justifica sua própria criação. Para os amantes do terror, infelizmente essa é só mais uma maçante e saturada história sobre a já esgotada casa mal-assombrada e que desperdiça um elenco talentoso e não traz nada de novo ou assustador para a realidade atual. O Grito, mesmo que tenha seus momentos arrepiantes, prova ser apenas mais um remake de uma história batida, que continua amaldiçoado por um conceito fatalmente clichê.