Music

Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá – ao vivo

Turnê com repertório mais suave baseado em dois discos da Legião Urbana se encaixa bem em um teatro de Curitiba

Texto e foto por Abonico Smith

Primeiro elemento: ar. Confissão, entrega, espelho. Segundo: água. Amor, relacionamento, self. Terceiro: terra. Grandes êxitos. Quarto: fogo. Luta, mudanças, política. Na sequência dos quatro elementos da natureza dispostos em uma linha contínua, o complemento do ser humano. Quinto, então: espírito. Só o amor salva.

Foi seguindo esta continuidade que foi montado o repertório da nova turnê de Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, que desde 2015 percorrem o país todo celebrando as canções (que ajudaram a conceber) da Legião Urbana (banda da qual participaram ativamente e fizeram parte da formação fonográfica clássica). Legalmente não podem utilizar o nome. Mas, afinal, quem que é fã se importa? Por onde passam eles carregam velhos e novos admiradores que estufam o peito, cantam alto e em uníssono tudo de cabo a rabo e celebram hits e lados b do quarteto/trio que saiu de Brasília em meados dos anos 1980 para se tornar uma das marcas mais pungentes do rock brasileiro.

Nos dias 25 e 26 de agosto último de Dado, Bonfá, o vocalista convidado André Frateschi e os outros que compõem o competente trio de apoio dos instrumentistas passaram novamente por Curitiba – justamente a primeira capital, que lá nos idos de 1985, bancou a primeira passagem de avião da Legião para tocar fora do Rio de janeiro, onde o grupo já havia gravado o primeiro álbum e estabelecido moradia. A turnê se chama As V Estações, batismo que condensa os nomes do quarto e do quinto álbum da carreira (respectivamente As Quatro Estações e V, lançados em 1989 e 1991), que fornecem a base para a maior parte do atual set list. Ambos são justamente trabalhos que marcam uma transição profunda na trajetória da banda, então reduzida a trio com a saída do baixista Renato Rocha. A intensidade das letras compostas por Renato Russo para a ser mais reflexiva, quando não bastante melancólica. Foram a passagem para a maturidade sem volta do mundo adulto. Saíam de campo o perfil de rapaz punk pós-adolescente para dar lugar às angústias, responsabilidades, cuidados e outras coisas que vêm junto com os trinta anos. Também foi o período em que o vocalista assumiu publicamente ser gay e descobrir ser HIV positivo. Naquela virada dos anos 1990, sempre é bom lembrar, a sexualidade ainda era um assunto para lá de tabu na mídia e na sociedade brasileira.

O que justifica a costura temática deste repertório de 22 músicas da Legião Urbana. Por isso a apresentação no Teatro Guaíra, um local mais recatado e conservador do que uma casa noturna, caiu bem para esta terceira vinda de Dado e Bonfá como Dado e Bonfá. Quase nenhuma presença do repertório politizado mais explosivo. Clássicos como “Que País é Esse”, “Geração Coca-Cola”, “Perfeição”, “Fábrica” ou  “Baader Meinhof-Blues” foram estrategicamente colocados de lado desta vez. Nada de arriscar acender qualquer pavio de polarização política na plateia – ainda mais em se tratando de uma cidade que claramente (ainda) pende para o lado perdedor da última eleição presidencial. A questão ali, naquelas duas horas de show, era celebrar a comunhão do eu com o ambiente e o mundo ao redor. O espírito com o ar, a água, a terra e o fogo. Não a faísca para que o vermelho pudesse se chocar e gerar grandes atritos com o verde-e-amarelo – embora Frateschi tenha sido bastante aplaudido e incensado ao mudar sorrateiramente dois versos para incluir referencias a questões políticas atuais (“Não boto bomba em Congresso Nacional”, em “Faroeste Caboclo”, e “Somos soldados vendendo joias”,  em “Soldados”).

As Quatro Estações e V  têm uma coisa em comum: são dois trabalhos que solidificaram a formação de trio da Legião e, por terem vindo na sequência de um período de muitas turbulências, serviram para colocar a banda nos trilhos e aquietar um pouco as coisas depois do estouro comercial e de toda a confusão vivida em 1988 no estádio Mané Garrincha, em Brasília, em uma frustrada “volta para casa após o sucesso”. No primeiro, a predominância do amor como a temática principal das canções se junta a citações do livro Tao Te Ching, da Bíblia, da literatura de Luís de Camões e a afirmação de que o caminho é um só. Fala sobre doença, aids, ditadura militar e morte mas procura trazer uma visão positiva no final. Já o posterior teve seu período de concepção abalado pelo confisco do governo Collor mais a descoberta do vírus HIV e um período de rehab de Renato. Isto se refletiu nas canções, mais lentas, sombrias, extensas e com um quê de rock progressivo, inclusive com referências à mitologia, natureza e temas que habitam o universo dos jogos de RPG e filmes/livros de fantasia.

Nove canções de As Quatro Estações, cinco do V. O que significa espaço restrito para o repertório dos outros discos. Muitos “lados B” (vale lembrar que o quinto álbum não teve single trabalhado nas rádios nem videoclipe feito para a MTV) e poucos hits. A sobra ficou para oito clássicos que não podem faltar em um show do grupo: “Faroeste Caboclo”, “Será”, “Tempo Perdido”, “’Índios’”, “Soldados”, “Eu Sei”, “Quase Sem Querer” e “Por Enquanto”. Canções que até hoje vivem sendo executadas em playlists radiofônicos, para o deleite dos mais velhos, e requisitadas nas demandas dos streamings dos mais novos. Esta configuração faz com que a atual turnê seja um pouco diferente das duas anteriores, dedicadas aos álbuns que fizeram a Legião Urbana, entre 1985 e 1988, explodir em onipresença nas rádios nacionais voltadas para o público jovem daquela época, quando o rock reinava soberano no mercado fonográfico nacional e ainda não havia sido solapado pela música sertaneja e pelo pagode.

Por ter um set list mais soft que as turnês anteriores, ter a ambientação em um teatro caiu bem para As V Estações. Poltronas para o público sentar em momentos de menor agito, horário camarada para uma noite de muito frio  em Curitiba (não era nem onze e meia da noite e o concerto já havia acabado). Telão de fundo com vídeos ilustrativos (e/ou abstratos) podendo ser bem visualizado de qualquer lugar. Boca de cena grande o suficiente para garantir boas performances de Frateschi e Dado (que chegam a encenar uma emocionante luta no intenso final de “Soldados”).

“Esta é a primeira vez que a gente levando esse show a um teatro”, comentou Dado em um determinado intervalo entre duas canções. Sinal dos tempos. O rock, gênero musical que nasceu da insatisfação e da vontade de ruptura com o status quo social distanciou-se demais de seu magnetismo perante a juvenília. Para a maior parte da geração de vinte e poucos anos restaram os grandes festivais que misturam musicalmente alhos com bugalhos e se preocupam em ser acima de tudo uma experiência, não uma finalidade musical. Restou a curiosidade de tentar imaginar como o imprevisível Renato Russo se comportaria (e o que falaria ali nos seus famosos discursos afiados ao microfone) se ali estivesse em carne e osso. Ainda mais em se tratando da terra de esmagadora maioria defensora da direita.

Set list: “Há Tempos”, “Meninos e Meninas”, “Sereníssima”, “Eu Sei”, “Quase Sem Querer”, “Eu Era um Lobisomem Juvenil”, “Sete Cidades”, “O Mundo Anda Tão Complicado”, “O Teatro dos Vampiros”, “Vento no Litoral”, “Por Enquanto/Heroes”, “Tempo Perdido”, “’Índios’”, “Será”, “Faroeste Caboclo/I Wanna Be Your Dog”, “1965 (Duas Tribos)”, “Soldados”, “Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar”, “Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto”, “Pais e Filhos” e “Monte Castelo”. Bis: “Metal Contra as Nuvens”. 

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Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá

Oito motivos para não perder a turnê que celebra os emblemáticos álbuns As Quatro Estações e V, da Legião Urbana

Texto por Abonico Smith

Foto: Divulgação

Há oito anos dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá voltaram a se encontrar em um mesmo palco. O motivo era nobre: comemorar os trinta anos de lançamento do primeiro disco, homônimo, da Legião Urbana. Juntaram mais alguns amigos para a banda de apoio e chamaram o ator e cantor André Frateschi para comandar os vocais. Não puderam, por questões judiciais, utilizar o nome da banda. Mas isso não impediu nem o sucesso nem a possibilidade de reconexão com novos e velhos fãs dos tempos de Renato Russo. A ideia inicial era fazer apenas vinte shows pelo país, mas os convites vieram e o total de apresentações teve de aumentar.

E a primeira turnê gerou, anos depois, a segunda, dedicada ao repertório dos dois álbuns seguintes: Dois (1986) e Que País é Este 1978/1987 (1988). Agora, depois da interrupção na área cultural provocada pela pandemia, chega a vez de uma nova empreitada. Neste ano, Dado, Bonfá, Frateschi e os mesmos músicos embarcam no projeto As V Estações, que reúne canções gravadas no quarto e no quinto álbum da discografia do grupo, então devidamente formatado como trio na época. Até omês de dezembro, a agenda de apresentações e viagens está cheia (informações sobre as cidades e dias você encontra clicando aqui). Neste fim de semana, dias 25 e 26 de agosto, a escala é em Curitiba, no Teatro Guaíra (ingressos e horários aqui).

Mondo Bacana dá a você oito motivos para você não perder esta terceira reunião celebratória dos músicos ainda vivos da formação fonográfica da Legião Urbana.

André Frateschi

Detratores podem até reclamar que tocar ao vivo as canções da Legião Urbana sem Renato Russo nunca será a mesma coisa. Bom, a mesma coisa não será mesmo, afinal o vocalista e letrista morreu em 1996. Só que também querer limitar a banda à existência de Renato é um pouco demais. Dado e Bonfá não só participavam também de todo o processo criativo das composições como também têm todo o direito de excursionar tocando o material de uma carreira que também a eles pertence. Então, o eterno fã confesso da Legião André Frateschi caiu como uma luva na posição. Ótimo cantor, ele está lá à frente dos músicos não para imitar Renato, mas para cantar e performar do seu jeito, sem deixar nada a dever tanto nos vocais quanto  nas performances.

As Quatro Estações

O quarto álbum da discografia foi concebido em um momento bastante delicado para a banda. Não bastasse toda a confusão ocorrida durante o show interrompido no Mané Garrincha, em Brasília, ainda havia as dificuldades internas: o rompimento com o baixista Renato Rocha, o bloqueio criativo de Renato Russo e a pressão da gravadora para, enfim, ter um material de composições após o estrelato repentino. Quando saiu, porém, As Quatro Estações foi o disco de libertação da Legião, a tal virada de página definitiva do underground. Emplacou diversos hits nas rádios e consolidou de vez a banda como um trio de sonoridade mais diversificada que a aquela banda lá do início ainda nem tão distante assim.

“Há Tempos”

Faixa inicial de As Quatro Estações e a música que também abre a atual turnê. É um petardo direto e sem refrão, na qual Renato aborda tematicamente o lado escuro da aids, que muito abalou a juventude dos anos 1980 e viria, nos anos seguintes, a debilitar a sua saúde também. Com versos sombrios como “Parece cocaína mas é só tristeza” e “Há tempos são os jovens que adoecem”. Escutá-la, mesmo passados mais de trinta anos, tem o efeito de receber um feroz sopapo na cara em pouco mais de três minutos.

“Meninos e Meninas”

Em um disco com letras repletas de metáforas e códigos, talvez esta seja a canção mais objetiva escrita por Renato sobre a sexualidade. Se em títulos anteriores como “Daniel na Cova dos Leões” e “Soldados” faziam referências veladas sobre o fato de ser gay, aqui ele vai direto ao ponto: “acho que gosto de São Paulo, gosto de São João, gosto de São Francisco e São Sebastião/ E eu gosto de meninos e meninas”. Se hoje a música brasileira celebra a diversidade sexual (inclusive com Jão batizando uma música sua também como “Meninos e Meninas”), muito disso se deve a esta faixa, lançada em um período em que a juventude do país ainda estava bem distante para falar sobre sexo.

“Monte  Castelo”

Liturgia travestida de canção pop, com a Epístola de Paulo aos Coríntios se misturando ao soneto 11 de Luis de Camões e título que homenageia os pracinhas brasileiros que lutaram contra os nazistas na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Com o arranjo levado por pandeiro, violão e teclado, a faixa fica estrategicamente colocada ao final do set list, encerrando o show com leveza sonora e veia literária. Enfim, uma canção sobre o amor em um disco que versa, basicamente, sobre o amor em suas mais diversas formas.

“1965 (Duas Tribos)”

‘É o bem contra o mal/ E você de que lado está?”. De uma certa forma estes versos previram o us and them que dominou o território nacional durante o último desgoverno desses últimos anos. Só que esta canção chamava o Brasil, ironicamente, de “o país do futuro”, remetendo ao slogan da ditadura miltar e remoendo toda a herança de violência e podridão social que os militares queriam varrer para debaixo do tapete para enganar a população com falsos ordem e progresso. Não chegou a tocar na rádio após o lançamento do disco, mas tornou-se uma pérola escondida e uma das poucas faixas que vão bem além da temática do amor.

V

Quinto álbum da carreira, lançado em 1991, reflete o período mais barra-pesada vivido nos bastidores da banda. No final do ano anterior, a internação do vocalista e a descoberta de ser HIV positivo. O desgosto sociopolítico da Era Collor também respingava um gosto amargo no canto da boca. Por isso este não foi um álbum fácil. De compor, de gravar e depois de ser escutado. Faixas de longa duração, andamento lento, melancolia explícita. “O Teatro dos Vampiros”, “Vento no Litoral”, “Sereníssima” e “Metal Contra as Nuvens” são os destaques do repertório e estão no set list desta turnê.

Pentagrama

Este foi o símbolo escolhido para nortear a criação desse novo projeto. Frateschi explica: “os quatro elementos coordenados pelo espírito, uma linha contínua com cinco vetores, contam essa história: I AR (confissão, entrega, espelho), II ÁGUA  (amor, relacionamento, self), III TERRA  (superhits), IV  FOGO  (política, Brasil, luta, mudanças) e V ESPÍRITO  (Só o amor salva). Vivemos um momento de construção de novos caminhos, o amor como conselheiro, a integração do meio com o ambiente, o empenho em adiar o fim do mundo. Uma utópica quinta estação que trará novos e melhores dias”.

TV

A Lei da Selva

Documentário em quatro capítulos conta a história do jogo do bicho e como isso deu origem às milícias do Rio de Janeiro

Texto por Fabio Soares

Foto: Canal Brasil/Divulgação

Quando em 1892, João Batista Vianna Drummond (ou simplesmente Barão de Drummond, alcunha pela qual era conhecido) criou um divertimento alusivo aos animais de seu jardim zoológico (o primeiro do Rio de Janeiro, aliás) com o único intuito de salvá-lo da falência, mal poderia imaginar que tal ação transformaria-se no elemento embrionário de um conglomerado histórico que fincaria raízes no imaginário, vida e, principalmente, história da então capital federal da época. Pois A Lei da Selva (Brasil, 2022), documentário produzido pelo Canal Brasil e disponível no Globoplay, disseca a história do jogo do bicho e ajuda a entender como os desdobramentos da disputa pelo poder em território na capital fluminense e seus arredores deu origem às milícias.

Dividido em quatro episódios narrados pelo indefectível sotaque carioca do humorista e ator Marcelo Adnet, a gênese do jogo do bicho é esmiuçada por bambas da historiografia, como o professor Luís Antônio Simas. “O jogo do bicho nada mais era que uma loteria de pobre e naquele tempo, pobre se divertindo era algo inconcebível”, conclui ele, citando a famigerada Lei da Vadiagem – que, a partir de 1942, enviava aos distritos policiais todo e qualquer cidadão que transitava nos logradouros cariocas sem estar com a carteira profissional devidamente registrada.

Com a desenfreada popularização da prática da contravenção, sobretudo a partir da segunda metade dos anos 1960, era quase natural que alguns elementos tentassem monopolizar lucros, dividendos e poder. Os chamados Barões do Bicho surgiram como moscas numa geração espontânea numa heterogênea casta de personalidades e modus operandi distintos. A turma era barra-pesada demais: Capitão Guimarães, Turcão, Miro, Luizinho Drummond, Ivo Noal, Carlinhos Maracanã e o lendário Castor de Andrade passaram a perder soldados na disputa de pontos de jogo do bicho. Péssima para os negócios, a matança deliberada entre facções apavorava a principal clientela do jogo (isto é, o povão), além de chamar a atenção da imprensa. Algo deveria ser feito. E foi feito. Numa reunião extraordinária dos capos no início dos anos 1970, acordou-se que o Rio seria “fatiado” entre as principais cabeças do jogo. Com territórios definidos, não haveria mais motivos para bicheiro X querer tomar o ponto do bicheiro Y. 

Findada a matança entre os grupos interessados, surgiu o desafio de “lavar” a dinheirama contraída pela contravenção. A partir daí, o telespectador é guiado ao passo a passo da adoção de escolas de samba por seus “padrinhos”. O surgimento da Liga Independente das Escolas (Liesa) também é dissecado, sendo também mostrado que Castor de Andrade estendeu seus tentáculos inclusive ao futebol. Doutor Castor foi o patrono do Bangu Atlético Clube, proporcionando àquela suburbana agremiação quatro anos de sonho inimagináveis turbinados pelo dinheiro do jogo.

A Lei da Selva não é uma minissérie qualquer. A produção dirigida por Pedro Asberg é um documento audiovisual e necessário para entendermos como a segurança pública da capital fluminense corrompeu-se ao longo de décadas . E mais: como, permeada por corrupção, permitiu surgir debaixo de seu nariz, facções criminosas que, guardadas as devidas proporções, não deixavam e não ainda não deixam a dever em nada com a máfia ítalo-americana. E como essas milícias tomaram conta do Rio de Janeiro e ampliaram seus braços à política nacional.

Portanto, largue tudo o que estiver fazendo e assista sem pestanejar. É obrigatório!

Movies

Operação Overlord

Longa produzido por JJ Abrams une terror e Segunda Guerra Mundial e leva o gore com estilo e CGI em grande escala aos cinemas

overlord2018

Texto por Andrizy Bento

Foto: Paramount/Divulgação

O cinema de horror é um gênero que se reinventa constantemente, para a felicidade dos amantes do gênero. Tem sua origem vinculada ao visionário George Méliès – um dos pioneiros do cinema e considerado o inventor dos efeitos especiais – com O Castelo do Demônio (1896). Chegou às décadas de 1930 e 1940 relegado à categoria de filme B. Durante a crise econômica provocada pela queda da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, os cinemas, que vinham perdendo público, arranjaram um novo meio de faturar, exibindo dois filmes pelo preço de um. Desse modo, os grandes estúdios ofereciam um filme classe A – produções de elevado destaque, com elencos estrelares – e um filme B – uma fita estrelada por nomes pouco conhecidos e com um orçamento mais modesto. Muitos destes se tornaram verdadeiras obras cult. Da safra merecem menção os Monstros da Universal, como o Drácula estrelado por Bela Lugosi e Frankenstein com Boris Karloff, ambos de 1931.

Nos anos 1970, ainda remanescentes dos filmes B, surgiram os slasher movies, popularizando produções como O Massacre da Serra Elétrica (1974) e Halloween (1978). O gênero alcançou o statusde cinema de arte com os clássicos O Exorcista (1973) e O Iluminado (1980). Atravessou a década de 1990 com uma onda adolescente apelidada de teen slasher, cujos exemplares mais famosos são os pastiches Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado e a série Pânico. Enfim, chegou à atualidade com propostas mais ousadas e cerebrais, como é o caso de Corra!, uma afiada crítica sobre o racismo mascarada de horror moviee indicada ao Oscar de melhor filme; e Um Lugar Silencioso, experiência extremamente sensorial que abusa da tensão psicológica. No entanto, faltava um exemplar mais tradicional do gênero, que evocasse aquela deliciosa atmosfera de filmes B e o gore com estilo. E é exatamente isso que Operação Overlord (Overlord, EUA, 2018 – Paramount) representa.

O petardo do diretor Julius Avery, produzido pelo hiperativo JJ Abrams, se aproxima dos bons e velhos splatter – sanguinolento e repleto de representações gráficas de violência. Contudo, é mais sofisticado em sua forma e até no conteúdo. A trama, bem sacada, tem início em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, com a Operação Overlord do título, cujo objetivo era a invasão da Europa Ocidental, então ocupada pela Alemanha nazista. Sendo assim, é na Normandia, pouco antes do Dia D, que a ação se desenrola.

A cena de abertura apresenta um grupo de jovens e, em sua maioria, inexperientes soldados americanos, recém-saídos dos campos de treinamento, a bordo de um avião militar. Sua missão é aterrissar na França e destruir uma torre de comunicação instalada pelos nazistas em um afastado vilarejo. Assustados devido ao bombardeio das tropas inimigas, os soldados são obrigados a saltarem do aeroplano em meio ao ataque. Toda a sequência é extremamente bem executada e de um requinte visual impressionante. Ela conduz os espectadores a uma experiência imersiva, abusando de closes e de uma sensação ora claustrofóbica – no intervalo que se passa dentro do avião – ora vertiginosa – durante o salto de paraquedas – além de apresentar um emprego notável dos efeitos sonoros. Acertadamente, aposta na supressão do som em dois momentos bem pontuados, conferindo um estado de aflição absoluta.

Ao penetrarem em território hostil, tomam conhecimento de experimentos realizados na citada torre de comunicação, que vão muito além de simples estratégias de guerra coordenadas pelos nazistas. Lá são conduzidos testes bárbaros em humanos – uma espécie de soro é injetada neles, com o objetivo de se produzir supersoldados (Capitão América manda lembranças!). Contudo, os efeitos são devastadores, transformando as cobaias em verdadeiros monstros e instaurando o terror pelo local. A essência é de filme trash, porém, esteticamente, a produção é moderna e estilosa ao combinar o gore mais clássico com o uso do CGI em grande escala. A abordagem visual é um dos maiores atrativos do filme, mas não é o único.

O elenco afinado é composto de rostos pouco conhecidos, mas que imprimem carisma suficiente aos seus personagens, a ponto de os espectadores se importarem com eles, temerem pelas suas vidas e lamentarem a má sorte de alguns. Talvez, o castmais sagaz tenha sido de Wyatt Russell. Além de ator competente, na pele de Ford, ele traz aquela sensação de familiaridade, especialmente pelo fato de ser filho de Kurt Russell, rosto emblemático de filmes que marcaram a geração oitentista como Fuga de Nova York, O Enigma do Outro Mundo e Os Aventureiros do Bairro Proibido. A sua figura de anti-herói, do homem prático que está ali para realizar um serviço e não se deixa desviar por distrações ou se guiar pelas emoções, oferece um ótimo contraponto ao protagonista Boyce (Jovan Adepo), que compõe um herói mais tradicional, humano e compassivo, apresentando uma gradativa evolução ao longo da trama ao se ver confrontado por questões de sobrevivência mas sem nunca abandonar seus princípios e essência.

Completam o elenco, John Magaro como o malandro boa praça Tibbet, que alcança um meio-termo entre os outros dois citados; o ótimo Iain De Caestecker (o Fitz da série de TVAgentes da SHIELD), interpretando o fotógrafo Chase, que surge como alívio cômico, um soldado constantemente assustado e que acaba por protagonizar uma das cenas mais surpreendentes do longa – o legítimo ponto de virada no filme; o ator-mirim Gianny Taufer, convincente na pele de Paul e que sabe gritar como ninguém; Pilou Asbæk como o oficial do exército nazista que é o grande antagonista da história e cuja representação se aproxima muito de um vilão de quadrinhos, megalomaníaco e sociopata; e Mathilde Ollivier, a francesa blasé, Chloe, que remete imediatamente à Shosanna Dreyfus de Bastardos Inglórios, cheia de fúria e iniciativa, mas mantendo o semblante impassível. Há um maniqueísmo evidente na apresentação dos personagens. Naturalmente, os nazistas são os vilões mais óbvios. Mas nem esse clichê – justificado, convém dizer – nem a profundidade quase nula dos heróis, todos compostos de poucas nuanças, são capazes de comprometer a narrativa ou tirar o brilho do longa. Operação Overlord funciona muito bem como entretenimento.

A última coisa que se pode esperar da produção é um drama de guerra e um compromisso solene com a história. Avery e Abrams estavam pouco preocupados com fidelidade aos fatos, inserindo um sem-número de licenças poéticas que podem vir a ser questionadas pelo espectador mais cínico e cético, com dificuldades em suspender a crença e curtir um conto de zumbis que tem o Nazismo como plano de fundo. Para quem não tem problemas com isso, basta se deixar entreter por uma mescla bem-sucedida e insana de guerra com terror (palavras que se aproximam, mas gêneros cinematográficos que se distanciam). No mais, ele é bem ágil, gore e divertido, com uma das melhores fotografias do ano. E ainda se permite experimentações inusitadas ao combinar diferentes estilos, gêneros e referências visuais e narrativas.