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Medida Provisória

Lázaro Ramos assina a direção de adaptação contundente de peça teatral que brada contra o racismo estrutural de nosso país 

Texto por Abonico Smith

Foto: ELO Company/Divulgação

Nos últimos anos Hollywood vem emplacando adaptações de peças teatrais que tratam de questões sociais, culturais e histórias cruciais dos afro-americanos. São espetáculos bem-sucedidos (público e crítica) e que, quando ganham as telas e a linguagem cinematográfica, não perdem a sua contundência e ainda abocanham uma ou outra indicação para algumas das principais premiações da temporada. Foi o caso de FencesOne Night In Miami… e Ma Rainey’s Black Bottom (que, no Brasil, ganharam os títulos de Um Limite Entre NósUma Noite em Miami… A Voz Suprema do Blues), por exemplo.

Agora o cinema nacional segue a tendência com Media Provisória (Brasil, 2022 – ELO Company), gravado em 2019 e que chega nesta semana às salas de projeção depois de ter sido exibido em festivais e no Festival do Rio no ano passado. A história é baseada na peça Namíbia, Não!, escrita pelo ator e dramaturgo baiano Aldri Assunção e que estreou nos palcos em 2011 com a direção de Lázaro Ramos. Lázaro, por sinal, assumiu a mesma função no cinema, ainda assinando o roteiro adaptado em parceria com o próprio Aldri mais Elisio Lopes Jr e Lusa Silvestre. A história apresenta um Brasil em um futuro nada muito distante que apresenta uma condição sociopolítica arbitrária implantada por meio da canetada de uma medida provisória implementada pelo governo represente de uma classe dominante branca, babaca e preconceituosa. De uma hora para outra, todos os pretos que estiverem nas ruas ou em qualquer outro local público podem ser capturados imediatamente para que se cumpra a nova lei de deportação pessoal para o continente africano. A tal medida seria um jeito de se fazer a grande reparação social pelo passado escravocrata que durou até quase o encerramento dos tempos do império. Então, nada “melhor” do que mandar todos os descendentes de escravos de volta para a terra de onde vieram seus antepassados.

Em sua estreia na direção de longa-metragem, Lázaro acerta em cheio na questão irônica que permeia toda a trama distópica que junta elementos do drama e da ficção científica. Não só o baiano alcança as entranhas do racismo estrutural que ainda permanece em nosso território como ainda salpica metáforas que podem se estender bem além da questão da negritude. A sombra da política autocrata que se projeta em nossa democracia nos últimos anos também é citada levemente em tiradas bem-humoradas. O confinamento ao qual o trio de protagonistas se rende para evitar a captura nas ruas também vale algumas equivalências com a pandemia.

A trinca do elenco principal está afinada e garante mais um ponto bem positivo ao filme. Alfred Enoch (ator anglo-brasileiro que durante os anos da adolescência interpretou um dos bruxinhos de Hogwarts na série de oito filmes de Harry Potter) é o advogado Antonio, um dos grandes líderes da resistência preta que luta de todas as maneiras contra a atual narrativa imposta pelos opressores brancos. Taís Araújo interpreta a sua cara-metade Capitu, médica resiliente e igualmente insatisfeita, de quem ele acaba se afastado pelas circunstâncias das fugas e lutas contra o ato higienista promovido pelo governo autoritário. Fecha a escalação Seu Jorge, que se equilibra entre as falas bem-humoradas de seu jornalista André e a intensidade emocional de quem também se mostra profundamente revoltado com toda violência e injustiça que passam a ser cometidas contra as pessoas de melanina acentuada (termo cruel e indecentemente eufemista para se referir aos pretos). Entre os coadjuvantes, Adriana Esteves e Renata Sorrah se destacam como as duas antagonistas caucasianas. Já na turma rebelde, o rapper Emicida, em sua estreia como ator de longa-metragem, não faz nada feio em seu pouquíssimo tempo de tela.

Manifesto de profundas reflexões sociorraciais, Medida Provisória ainda carrega uma maravilhosa trilha sonora de vozes pretas brasileiras (Elza Soares, Baco Exu do Blues, Liniker, Rincon Sapiência, Flora Matos, Tássia Reis, Xênia França, Tuyo e Agnes Nunes em uma tocante releitura de “Preciso Me Encontrar”, clássico de Cartola) e traz em seus créditos a maior lista de “gente de melanina acentuada” já reunida em um filme brasileiro.

Enfim, tudo indica um resultado catártico durante as exibições pelos cinemas de todo o país. Não há como não soltar o grito preso há décadas na garganta de milhões e milhões de brasileiros (sim, porque a miscigenação também é uma das nossas maiores características sociais) quando começam a subir os créditos finais.

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Um Casal Inseparável

Comédia romântica sobre jovem casal da zona sul carioca esbarra em situações inverossímeis e atuações abaixo da média

Texto por Fábio Soares

Foto: H2O Filmes

Produzir entretenimento na pandemia não deve ser nada fácil. Produzir boas histórias, idem. E, em tempos de confinamento, até que não é tão difícil bolar uma boa história. não é mesmo? Pegue um cenário paradisíaco, um jovem casal da zona sul carioca, tempere com situações inusitadas, um final feliz… Assim terás a comedia romântica perfeita, certo?

ERRADO! A proposta de Um Casal Inseparável (Brasil, 2021 – H2O Films), pode até ser boa mas seu desenrolar é permeado por tantas situações inverossímeis que sua defesa torna-se algo impraticável. No papel de Manuela, Nathalia Dill encarna uma temperamental professora de vôlei, que não leva desaforo pra casa e que atropelará o mundo inteiro, se necessário, em prol de seus ideais. Já o comediante Marcos Veras interpreta Léo, um romântico médico pediatra que apaixona-se à primeira vista por Manuela e, a partir daí, iniciará uma quase impossível missão em conquistá-la. O “fator comédia” está presente em muitos momentos, fato, mas a inverossimilhança (olha ela aí de novo!) é tão imediata quanto surreal. No papel de Esther, mãe de Manuela, Totia Meireles assume o papel de sogra e fiel escudeira de Léo na tentativa de reunir o casal após suposta traição do pediatra. Inicia-se, então, uma sucessão de acontecimentos ininteligíveis e difíceis de engolir, passando pela compra de um apartamento por Léo, uma unidade imediatamente germinada ao de Manuela sem que ambos saibam.

O roteiro de George Moura e do diretor Sergio Goldemberg pinta um Rio de Janeiro quase sem problemas em pleno 2021, mesmo sabendo-se que a aura de “Cidade Maravilhosa” é quase impossível nos dias atuais. Mas não é só o roteiro que é fraco, com situações inverossímeis. As atuações do elenco estão abaixo da média e o final é para lá de previsível. Após noventa minutos, a sensação que fica é que este tal “casal Inseparável” é como qualquer um outro. E quer saber? Nem é tão inseparável assim…

Por isso esta longa não passa de uma nota 8… numa escala de 0 a 100.

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The Boys In The Band

Reunião de amigos gays expõe de forma intensa e dramática barreiras de meio século atrás que ainda permanecem difíceis de serem quebradas

Texto por Maria Cecilia Zarpelon

Foto: Netflix/Divulgação

Desde a rebelião de Stonewall que o movimento LGBTQIA+ vem ganhando cada vez mais visibilidade nos espaços de discussão. Mas, apesar das várias conquistas que o grupo teve ao longo de todos esses anos, será que as coisas realmente mudaram? A segunda adaptação cinematográfica homônima da peça teatral escrita por Mart Crowley em 1968, ainda tem muito a dizer sobre as vicissitudes dessa comunidade nos dias atuais. Produzida por Ryan Murphy (das séries Hollywood e Ratched), a nova versão de The Boys In The Band (EUA, 2020 – Netflix) é uma obra relevante e provocativamente anacrônica. Pouco mais de meio século depois de ter sido criada, a trama segue ousada por trazer de forma tão crua as particularidades de uma comunidade que teve – e ainda tem – sua voz silenciada. 

O enredo do filme dirigido por Joe Mantello é simples: em uma noite de 1968, um grupo de amigos gays se reúne para comemorar o aniversário de um deles. O que era para ser apenas mais uma festa comum acaba, na verdade, aflorando mágoas e ressentimentos escondidos sob uma fina camada de falsa felicidade. Essa reunião aparentemente despretensiosa expõe temas delicados como amizade, homofobia e preconceito de forma fluida e áspera ao mesmo tempo.

O longa se passa em um local apenas, o apartamento novaiorquino de Michael (Jim Parsons, o Sheldon da série The Big Bang Theory). Ao contrário do que muitos podem pensar, em momento algum a história se torna monótona ou cansativa. Isso se dá graças às rápidas respostas e diálogos afiados preservados do roteiro de Crowley. Os longos papos sobre autoaceitação e discriminação que permeiam o apartamento são inesperadamente potentes. 

Enquanto os homens vão esmiuçando os problemas latentes que eles negam existir entre si, a tensão que se arquiteta no ambiente chega a ser sufocante. À medida que os espectadores – assim como os personagens – sentem que não existe para onde ir, a inquietação se intensifica. Um ótimo recurso para criar esse clima claustrofóbico –  que passa quase despercebido – é o confinamento do grupo dentro da pequena sala do apartamento, uma vez que começa a chover na cidade. 

Aos poucos, o público descobre que Michael é um homem inquieto, que carrega um desejo quase extremo de agradar as pessoas e nunca saiu do armário completamente. Ele, com a ajuda do ex-namorado Donald (Matt Bomer), organiza uma festa para o sarcástico aniversariante Harold (Zachary Quinto, o Spock atual da franquia cinematográfica Star Trek), com quem mantém uma relação complicada. Entre os convidados estão Larry (Andrew Rannells), que mesmo não acreditando no conceito de monogamia, mora junto com Hank (Tuc Watkins), que acabou de deixar a família para ficar com o amado. Além deles, estão presentes o performático e animado Emory (Robin de Jésus), e Bernard (Michael Benjamin Washington), o mais tímido do grupo.

Tudo fica ainda mais angustiante quando a chegada de Alan (Brian Hutchison), um velho amigo da faculdade de Michael, revela que a cumplicidade entre os amigos é mais frágil do que parece. Resultado das personalidades dissonantes, os embates, por vezes engraçados, chegam ao ápice quando Michael é confrontado com a homofobia (não tão) velada de Alan, fazendo com que sua raiva há muito reprimida emerja. Nos absurdos, na petulância e na dor que preenchem a performance de Parsons é que reside o momento mais dramático do filme.

As inconstâncias, desejos, medos e alegrias dos personagens permeiam as duas horas do longa sem que pareça um “espetáculo exótico” para ser admirado. Pelo contrário. Sob esse novo The Boys In The Band paira um olhar atento e próximo que denuncia que as barreiras que deveriam ter sido quebradas há muito tempo seguem firmemente de pé.

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Mentes Sombrias

Adolescente com poderes paranormais se une a outros iguais para descobrir que o inimigo do inimigo nem sempre pode ser amigo

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Texto por Abonico R. Smith

Foto: Fox/Divulgação

Uma das temáticas recorrentes em seriados nos últimos anos é a de crianças ou adolescentes com poderes paranormais que são retiradas dos pais para ficar sob a guarda de projetos governamentais (ou pelo menos com a chancela oficial) para serem estudadas ou até mesmo exterminadas. É assim em Believe. É assim em Stranger Things. É assim em The OA. Então, nada mais natural que o cinema também viesse a se apropriar disso, ainda mais depois do sucesso de uma enxurrada de produções com temática distópica juvenil.

Eis que Mentes Sombrias (The Darkest Minds, EUA, 2018 – Fox) ganha as telas tratando justamente disso. A história é uma adaptação do romance da jovem escritora norte-americana Alexandra Bracken. Publicado em 2012, o livro é, na verdade, o primeiro de uma série que já rendeu cinco títulos até agora, seguindo o mesmo esquema do boom de fantasia literária que vem sobrecarregando as prateleiras das megastorese fazendo um constante diálogo com o cinema por toda esta década.

A premissa é interessante. A protagonista Ruby (Amandla Stenberg) sobrevive a um poderoso e letal vírus que atinge a população até os primeiros dezoito anos de vida. Quem não morre (apenas 2% desta faixa etária) passa a ser considerado como uma potencial ameaça à humanidade. Ruby, que passa a desenvolver a habilidade de apagar a memória das outras pessoas e interferir na mente de qualque rum à sua frente, é classificada o nível máximo de “perigo” e deve ser abatida a qualquer custo. Separada da família ainda na infância, ela consegue passar alguns anos em um campo de concentração, disfarçada entre outros iguais porém com habilidades inferiores e mais inofensivas.

Quando sua real condição é descoberta, ela recebe ajuda da doutora insurgente Cate (Mandy Moore) e acaba escapando rumo a uma outra turma de jovens igualmente separados na clandestinidade, mas ainda por motivos incertos. Através de uma outra menina na nova localidade, a pré-adolescente Zu (Miya Cech), junta-se quase por acidente a uma turma de rebeldes para fugir desta segunda zona de confinamento. O inimigo do seu inimigo nem sempre é seu amigo, ensinam-lhe a ele os dois rapazes mais velhos, Liam (Harris Dickinson) e Chubs (Skylan Brooks) que lideram o agora quarteto dissidente.

Durante a fuga, eles batalham contra caçadores de recompensas, doidos para recapturá-los. Enquanto isso, descobrem os sentidos da amizade, da solidariedade, da sensualidade e do amor (sendo uma história juvenil, claro que não ficaria de fora o clima de início de romance entre Ruby e Liam). E só também. Nada de muito inovador acontece tanto no roteiro quanto da direção de Jennifer Yuh Nelson (mais conhecida por trabalhos anteriores com as animações 2 e 3 de Kung Fu Panda). Pior: a química entre Amandla e Harris é quase zero – a atriz, inclusive, declarou-se lésbica recentemente.

De positivo, entretanto, ficam as entrelinhas delineadas por Bracken em sua trama. Nela ficam subentendidas a ideia de que o desconhecido sempre provoca medo na maioria das pessoas. Por isso, a fotografia sempre soturna do filme, as referências seguidas à escuridão ditas por Ruby, o título da história. De quebra, o valor sempre ressaltado pela independência, a eterna manutenção da desconfiança e resistência a grandes corporações (sejam elas quais forem) e ainda a possibilidade da resiliência, o ato de se dobrar, envergar e às vezes aceitar fazer parte do sistema para que isto permita a você realizar algo de bom para as outras pessoas.