Series, TV

Euphoria

Segunda temporada da cultuada série continua a maravilhar com suas transgressões na narrativa e os dramas de coming of age

Texto por Taís Zago

Foto: HBO Max/Divulgação

Nunca faltou, em canais de streaming, filmes ou séries do estilo coming of age, onde as agruras da adolescência são esmiuçadas de todas perspectivas possíveis. Pegando como exemplo o canal com mais assinaturas mundo afora, a Netflix, temos uma enxurrada disso nos últimos cinco anos. Do ponto de vista de pessoas com necessidades especiais temos a adorável Atypical (2017-2021). Para a fixação sexual na puberdade, temos a bagunça de Sex Education (2019-) ou a mais comportada – mas não menos engraçada – Never Have I Ever (2020-). Já com foco no público latino temos a escrachada On My Block (2018-2021), com dramas (quase) reais. Para os que gostam de fantasia ou terror, temos The Chilling Adventures Of Sabrina (2018-2020) ou Riverdale (2017-). Os amantes de quadrinhos sombrios foram agraciados com The End Of The Fxxxing World (2017-2019) e I Am Not Okay With This (2020). Ainda tem todo o escopo das direcionadas aos fãs de sci-fi, sendo a mais famosa Stranger Things (2016 -)

Mas nada, NADA MESMO – e nisso podem ser incluídos os outros canais – se compara à série Euphoria (EUA), da HBO Max. A segunda temporada iniciou em janeiro de 2022, e está em pleno andamento. Ou melhor, em plena ascensão, já que a cada episódio quebra (seus próprios) recordes de visualização. É a queridinha da geração Z, é tema de inúmeras postagens semanais no Tik Tok ou polêmicas no Twitter. Não que isso sirva de incentivo para adultos também assistirem a ela. Eu, por exemplo, descobri a série na sua estréia em 2019, quando HBO Max ainda estava se despedindo do formato HBO GO, portanto bem antes do hype se espalhar por todos cantos do mundo. Eu nem mesmo sabia que a protagonista Zendaya já era bastante conhecida por sua carreira musical e por séries infantojuvenis da Disney.

O que prende em Euphoria é que viramos um pouco o adolescente que é retratado, independente da nossa idade. O drama é tão atual, tão real, tão próximo que todo mundo conhece (ou foi) alguém com alguma das dúvidas e angústias dos personagens. E o tom é sério. Mesmo que adentre por vezes um humor cáustico e absurdo. Não tem mesmo muito o que rir por aqui: é uma seriedade púbere, a certeza que a vida sempre vai acabar no próximo porre, no próximo amor ou no próximo high. Mas, curiosamente, nada soa falso ou montado nessa obra. E vejamos que, em uma série onde a protagonista é viciada em drogas (no caso de Rue pode ser qualquer uma indo do fentanyl à morfina), a presença de um imaginário fantástico, do surreal, do lúdico ou do assustador é uma constante.

Para viajarmos sem tomar as drogas embarcarmos na trip com Rue (Zendaya). Se quisermos experimentar todo o ressentimento, a raiva, o medo e a autodepreciação de quem ainda não consegue se aceitar, Nate (Jacob Elordi) é o cara. Se preferirmos nos aprofundar nos dramas de uma menina trans, brilhante e talentosa, que está descobrindo sua sexualidade e seu lugar no mundo, a pessoa indicada é Jules (Hunter Schafer). Se formos explorar as questões de autoimagem e autoestima, Barbie (Barbie Ferreira) e Cassie (Sydney Sweeney) são praticamente estudos de caso. Se decidirmos mergulhar na vida de alguém que nunca conheceu na vida nada diferente de violência, o personagem é Fezco (Angus Cloud). Se nos identificamos com a durona com coração mole, nos enxergamos em Maddie (Alexa Demie). E se nos sentimos descolados de nossa realidade, veremos em Lexi (Maude Apatow) o espelho. Euphoria nos inunda com situações inesperadas e com histórias belas e comoventes. Não tem um único momento novelesco. Não tem nenhum exagero descabido. Não peca em nenhum detalhe, dos figurinos à música. Aliás, a trilha da série é sensacional e vale muito buscar a playlist oficial no Spotify. 

O criador, Sam Levinson, faz tudo: dirige, escreve e produz, o que torna a série quase um one man show, e colhe muitas criticas dos fãs por se recusar a colaborar com outros artistas, salvo em algumas exceções. Euphoria, assim como In Treatment (HBO Max), também é inspirada em uma série de TV israelense, porém em muito supera a sua modesta matriz. Fica bastante evidente que Levinson é o fruto de uma família afluente e ligada ao audiovisual. Mesmo ainda dando seus primeiros passos no ramo, desfrutou de certos privilégios e liberdades criativas e isso fica bem claro na sua forma transgressora e livre de montar os episódios. Não existe ritmo que não possa ser quebrado, flashbacks ou mininarrativas que não possam ser inseridas nos capítulos, sonhos que não se misturem perigosamente com a realidade ou até uma crueza que, muitas vezes, adentra a crueldade. Sam entrou chutando a porta, e o resultado é, felizmente, maravilhoso.

Music

Against Me! – ao vivo

Extenso set list e um largo sorriso estampado no rosto de Laura Jane Grace marcam a estreia da banda em solo brasileiro

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Texto por Abonico R. Smith

Foto de iaskara

Ela não entendia muita coisa do que a plateia gritava em português ao final de quase todas as músicas que a banda tocava, mas captou a mensagem e também mandou o seu recado, ao microfone, contra a nova onda de fascismo que varre o mundo, em especial o Brasil nos dias atuais. Foi o que bastou para o salão de shows do Jokers, lotado, explodir em êxtase já quase no final do show. Era a coroação de uma noite de glórias, tão esperada havia anos por muitos fãs brasileiros.

Naquela noite de 19 de outubro de 2018 estreavam, tardiamente, Laura Jane Grace e seu Against Me! em solo brasileiro. Depois de mais de vinte anos da formação da banda e do lançamento de sete álbuns, o quarteto, enfim, realizava em Curitiba seu primeiro show no país, abrindo uma turnê brasileira que incluiria passagens em outras duas capitais (São Paulo e Natal) e marcava também o lançamento da edição nacional de sua autobiografia Tranny – Confissões da Anarquista Mais Infame e Vendida do Punk Rock. E claro que tudo isso seria uma noite bastante politizada.

O Against Me! transformou-se em sinônimo de banda política com o passar dessas duas últimas décadas. Não a política partidária ou econômica. Mas a política das coisas pequenas e cotidianas, do comportamento, da sexualidade, do rock’n’roll, do contestamento ao que já está estabelecido. Por isso, Laura Jane Grace é tão reverenciada. Seja pelas letras repletas de sarcasmo e ironia, incluindo um certo tom jocoso de autodepreciação – que sempre funciona para captar a identificação do público. Seja pelas melodias pegajosas, que ajudam a grudar as suas letras no cérebro e fazem todo mundo cantar junto com ela a hora que for. Seja pela questão de gênero, que envolve uma recente transição sexual. Seja pelas atitudes fora dos palcos, que colocam-na como uma das grandes expoentes da música LGBT mundial. Por isso, a turma do #EleNão entoava gritos contra um certo capitão. Aquela noite também era de protesto.

A celebração ficou por contato do extenso repertório, elaborada especialmente pela banda para sanar a sua ausência até então dos palcos brasileiros. Talvez por isso tenha havido a opção de resgatar, de modo equilibrado, as três distintas fases do Against Me!. Das 26 músicas pinçadas para o set list da noite no Jokers, quase metade representavam os três primeiros álbuns, lançados entre 2002 e 2005, quando a banda iniciava seus passos no circuito do punk rock americano com canções mais juvenis, urgentes, diretas e barulhentas. Da fase que representou o período de contrato por uma grande gravadora (com dois álbuns produzidos por Butch Vig entre 2007 e 2010, singles nas paradas de sucesso, números musicais em cultuados programas de entrevistas e humor na TV, presença no topo das listas dos melhores discos do ano), um belo recheio de sete músicas. Da fase em que Tom Gabel deixou de existir para dar lugar a Laura Jane Grace (mais dois discos entre 2014 e 2016, sendo o primeiro o essencial Transgender Dysphoria Blues, no qual o conceito é justamente a disforia de identidade de gênero da vocalista), outras sete. Então fã nenhum pode sair reclamando. Teve para todos os gostos, teve para todas as fases.

Um show do quarteto também significa que as músicas falam por elas mesmas. Daí a opção de Laura por falar bem pouco entre as canções. Era uma pancadaria atrás da outra. Quase sem interrupção, com uma banda afiadíssima, contando com o esperado retorno do baixista Andrew Seward, que passou os últimos cinco anos tocando outros negócios, e o novo baterista Atom Willard, nome experiente do rock alternativo, que encaixou-se como uma luva na engrenagem motora do ritmo do Against Me!.

Então, por quase duas horas, a plateia curitibana foi levada à loucura. Do início arrasador (com a dobradinha “FuckMyLife666” e “Transgender Dysphoria Blues”) ao final do set, com uma série de clássicos enfileirados (“I Was A Teenage Antichrist”, “The Ocean”, “Dead Friend”, “333”, “True Trans Soul Rebel” e “Black Me Out”) foi um festival de punhos erguidos no ar, coro em uníssono durante todas as letras e stage divings celebradíssimos – em especial o de uma garota de apenas dez anos de idade, fanática pela banda e levada pelos pais também fãs assumidos. Ainda deu tempo para um bis longo fuçar o repertório da primeira fase do grupo e entregar canções não tão óbvias como um presente especial para quem esperou por tanto tempo.

Na letra de “True Trans Soul Rebel”, Laura pergunta se Deus abençoaria seu coração transexual. Deus é amor, alegria e energia. E ele, com certeza, estava presente junto aquelas pessoas que se espremiam cantando tudo em alto e bom som no Jokers. Um belo e largo sorriso, estampado em seu rosto frequentemente coberto pelos longos cabelos, entregava o estado de espírito da vocalista. Uma verdadeira alma trans rebelde. Rebelde e muito feliz no Brasil.

Set list: “FuckMyLife666”, “Transgender Dysphoria Blues”, “Pints Of Guinness Make You Strong”, “Cliché Guevara”, “Rice And Bread”, “Pretty Girls (The Mover)”, “Miami”, “From Her Lips To God’s Ears (The Energizer)”, “New Wave”, “Piss And Vinegar”, “Ache With Me”, “Haunting, Haunted, Haunts”, “Walking Is Still Honest”, “Those Anarcho Punks Are Mysterious…”, “Animal”, “Americans Abroad”, “I Was A Teenage Antichrist”, “The Ocean”, “Dead Friend”, “333”, “True Trans Soul Rebel” e “Black Me Out”. Bis: “Joy”, “Baby, I’m An Antichrist!”, “We Laugh At Danger (And Break All The Rules)” e “Sink, Florida, Sink”.