Movies, Music

Saudosa Maloca

Inspirado na criação das canções (e em parte da vida) do sambista Adoniran Barbosa, longa acerta ao fugir de uma cinebiografia convencional

Texto por Abonico Smith

Foto: Elo Studios/Divulgação

João Rubinato é uma figura ímpar da música brasileira. Filho de imigrantes italianos, falava muita palavra de modo errado perante a norma culta da língua portuguesa. Também não tinha muita instrução formal. Largou a escola cedo, pois não gostava de estudar e ainda precisava trabalhar desde criança para ajudar a complementar a renda de casa. Mesmo assim, com muita perspicácia, criatividade e talento, criou uma série de canções que se tornaram, com o tempo, pérolas icônicas de qualquer roda de samba que se preze, seja na mesa do botequim ou no palco de um pomposo teatro. Entrou para a história da cultura nacional sob o pseudônimo de Adoniran Barbosa. Não exatamente como o cantor que sempre sonhou ser desde jovem. Mas como compositor de fortes melodias aliadas a letras irresistíveis, com muito humor e verve literária do cotidiano ligado às pessoas à sua volta, quase toda vivida na cidade de São Paulo.

O diretor e roteirista Pedro Soffer Serrano é um dos maiores admiradores da obra de Adoniran. Depois de assinar um curta baseado nas principais músicas  (Dá Licença de Contar, de 2015 – clique aqui para assistir à obra) e um documentário sobre o artista (Adoniran: Meu Nome é João Rubinato, de 2018 – clique aqui para ler a resenha do Mondo Bacana), ele agora chega aos cinemas de todo o país com o terceiro produto desta trilogia, um longa-metragem. Saudosa Maloca (Brasil, 2023 – Elo Studios) não é bem uma biografia do ídolo. Em pouco mais de noventa minutos de história, aliás, bem pouco ou quase nada se mostra em cena da vida pessoal de João. Seu dois casamentos, sua família, sua filha, inclusive sua trajetória artística. Esse negócio de “onde nasceu, como viveu, do que se alimentou, do que morreu” pode caber para o Globo Repórter, mas  não aqui. Serrano opta pelo mesmo esquema do curta e costura um Rubinato já na terceira idade contando histórias para um jovem garçom fã de suas canções.

Quase tudo se passa em flashbacks protagonizado pelo trio formado por João, Joca e Mato Grosso. Com calibrada dose de humor no roteiro, detalhes sobre experiências vividas por estes três amigos que se uniram em uma maloca improvisada em um casebre na região central paulistana lá pelos anos 1950, quando a sensação de transformações definitivas vinha com o estabelecimento da indústria cultural forte e o surgimento de arranha-céus no lugar de simples casas. Todos os três já estão bem crescidos, por volta dos 40 anos de idade e com um grande ponto em comum: o amor pela boemia e pela malandragem de uma época ainda de alto grau de inocência cotidiana, sem o menor tino para o trabalho de modo convencional.

É foi justamente este universo ao redor de Adoniran Barbosa o grande trunfo para o surgimento de canções inesquecíveis como “Conselho de Mulher”, “Iracema”, “No Morro da Casa Verde”, “Um Samba no Bixiga” e “Vila Esperança” ou “Samba Italiano” – isso somente listando algumas criações coadjuvantes dos greatest hits (“Samba do Arnesto”, “Trem das Onze”, “Tiro Ao Álvaro” e “Saudosa Maloca”). Por meio de versos e títulos de suas músicas, bairros (mais centrais ou nem tanto assim) como Brás, Bixiga, Jaçanã e Vila Esprança ganharam popularidade extramunicipal na segunda metade do século 20. Este longa destrincha um pouco de como e porquê as famosas obras acabaram circulando, primeiro pela tradição oral e depois sendo eternizadas por gravações lançadas no mercado fonográfico nacional.

Teria tudo o que é mostrado na tela acontecido realmente? Aliás, em um determinado momento o tal jovem garçom lança no ar uma boa pergunta: teriam mesmo existido os tais de Mato Grosso e Joca que estão nas contações e cantações de Rubinato? A resposta acaba vindo nas entrelinhas e de maneira categórica: pouco importa se sim ou se não. O que vale, afinal, é a exímia destreza de Adoniran Barbosa como um observador e cronista social do dia a dia de uma classe trabalhadora e de baixa renda em uma metrópole ainda se desenhando para o agigantamento desenfreado que ainda pode ser presenciado pelo artista no final de sua vida (ele faleceu em novembro de 1982, aos 72 anos).

Saudosa Maloca conta ainda com um elenco afiado. Repetindo os seus papeis no curta-metragem (que ainda tem algumas breves cenas reprisadas no longa), Paulo Miklos (João), Gero Camilo (Mato Grosso) e Gustavo Machado (Joca) estão deliciosamente impagáveis. Uma trinca capaz de arrancar gargalhadas e competir com os Trapalhões no momento áureo do grupo capitaneado por Renato Aragão logo após a estreia do programa na Rede Globo. Sidney Sampaio (o tal jovem garçom de nome Cícero) e Leilah Moreno (a garçonete Iracema, sempre cortejada pelos dois parças de maloca de Adoniran) reforçam a parte mais dramática do roteiro, ao passo que Paulo Tiefenthaler (o rico Pereira, homem da grana, da influência e do contraponto ao trio de zé ninguéns que andam quase sempre duros e sem comida em casa) e Zemanuel Piñero (o chapa Arnesto, aquele que convidou para um samba que não existiu em sua casa) se mostram brilhante como escada. Diversas vezes eles levantam a bola para Gero, Gustavo e Paulo subirem nas alturas e cortarem com tudo a bola rumo ao chão e marcarem diversos pontos.

Quem já é iniciado no fantástico mundo dos versos escritos por Adoniran Barbosa vai se deliciar com este longa-metragem repleto de inesquecíveis frases acidamente filosóficas pronunciadas pelo protagonista. Quem ainda não conhece ou pouco sabe de João Rubinato tem a grande chance de se apaixonar e virar fã de vez dele.

Movies, TV

Segredos de um Escândalo

Natalie Portman e Juliane Moore estrelam drama baseado em relacionamento real entre adolescente e professora bem mais velha

Texto por Tais Zago

Foto: Netflix/Diamond/Divulgação

Com direção de Todd Haynes e roteiro de Samy Burch, Segredos de um Escândalo (May December, EUA, 2023 – Netflix/Diamond) é baseado “levemente”, segundo Haynes e Burch, na história real do envolvimento amoroso entre o garoto de 12 anos Vili Fualaau e a professora de 34 anos Mary Kay Letourneau. O caso se tornou um grande escândalo durante os anos 1990 nos EUA. Como consequência, Mary Kay acabou cumprindo sete anos de prisão por estupro de menor. Após ser solta, ela e Vili se casaram e tiveram um longo relacionamento, com duas filhas como fruto da união. Em 2020 Letourneau morreu de câncer com Fualaau, apesar de já separados, ao seu lado na cama.

Na versão ficcional o casal é formado por Gracie Atherton-Yoo (interpretada pela excelente Julianne Moore) e Joe Yoo (Charles Melton). A história polêmica do casal é requentada mais de duas décadas depois com a chegada da atriz Elizabeth (Natalie Portman) na pequena comunidade onde os dois moram com seus três filhos (Honor, Mary e Charlie). Elizabeth está obsessivamente pesquisando os desdobramentos do envolvimento do casal para o filme onde ela interpretará Gracie. No caso da trama, Gracie e Joe se conheceram no pet shop onde ambos trabalhavam. Na época, Joe tinha apenas 13 anos; Gracie tinha 36, era casada e já tinha quatro filhos. Aliás, a expressão may december – que dá o título original à obra – é utilizada na língua inglesa para rotular um relacionamento entre pessoas com uma grande diferença de idade. Não raramente de forma pejorativa.

A fascinação de Elizabeth por Gracie e Joe não parece ter limites. A atriz tranquilamente rompe as barreiras do profissionalismo e se envolve pessoalmente com o casal, o que gera atritos inevitáveis dentro do disfuncional núcleo familiar dos Yoo e dos Atherton. Feridas ainda não curadas são reabertas, e as graves consequências das escolhas de Gracie e Joe ficam bastante claras.

Haynes tenta construir uma Elizabeth sem prejulgamentos ou pré-concepções apesar do assunto deveras espinhoso. Em alguns momentos isso é alcançado, mas em outros a prudência é propositalmente deixada de lado em prol da dramatização. Portman faz o que pode com o roteiro que tem em mãos e se torna uma verdadeira equilibrista em um campo minado. Várias vezes nos questionamos sobre a frieza na coleta de material da pesquisa feita por Elizabeth. Para ela absolutamente nada é tabu. Apesar de verbalmente expressar a intenção de ter cuidado e manter respeito pelos envolvidos, Elizabeth acaba tratando seus objetos de pesquisa como cobaias em um laboratório. Como parte de um experimento científico, ela questiona as decisões de Joe no relacionamento ao mesmo tempo que tenta traçar um perfil psicológico de Gracie como uma mulher transtornada e traumatizada pelos abusos que sofreu em sua própria infância.

Esteticamente, Segredos de um Escândalo é um filme modesto. O centro aqui é o roteiro e as relações interpessoais – é um drama feito sobre medida para arrecadar premiações. O foco é o universo interior de Joe, Gracie, seus filhos e até mesmo a própria Elizabeth. O resultado é relativamente estóico, sem muita exploração profunda das emoções. Talvez fosse esse mesmo o objetivo de Haynes e Burch. Ou talvez o cuidado seja uma consequência da dificuldade moral do tema abordado. De qualquer forma, o resultado é satisfatório mas não é excepcional.

Após o lançamento do filme nos EUA, em maio do ano passado, Vili Fualaau veio a público reclamar da falta de consentimento e consulta sobre o que considera claramente ser uma versão de sua história pessoal e não apenas uma inspiração periférica de seu caso. Haynes (cultuado por obras como The Velvet Undrground, Velvet Goldmine, Carol, Sem Fôlego, Não Estou Lá) rebateu veementemente as acusações.

Apesar de ter adquirido os direitos de distribuição do filme – e o mesmo já estar disponível na versão americana da plataforma – o canal de streaming Netflix acaba de colocá-lo nos cinemas brasileiros (em parceria com a Diamond) e ainda não tem previsão para disponibilizá-lo na plataforma daqui. O objetivo, afinal, é chamar novamente a atenção do publico em época de grandes premiações norte-americanas. May December é nome cotado a candidato a troféus no Oscar 2024, após receber indicações para o Globo de Ouro – em especial a indicação ao prêmio de melhor ator coadjuvante para Charles Melton.

Movies

A Menina que Matou os Pais + O Menino que Matou Meus Pais

Crime que chocou o Brasil em 2002 é contado pelos diferentes pontos de vista de Suzane von Richthofen e seu namorado Daniel Cravinhos

Texto por Regina Lampert

Foto: Galeria Distribuidora/Amazon Prime/Divulgação

Um tema relativamente comum no cinema internacional é a história real de psicopatas e de crimes que chocaram a humanidade, como Ted Bundy, Lizzy Borden, Zodíaco, Monster e O Anjo. Agora o assunto chega aos casos brasileiros.

Depois da polêmica série documental com a história de Elize Matsunaga, estreou dias atrás o combo dos dois filmes que narram o assassinato do casal Marísia e Manfred von Richthofen.  A Menina que Matou os Pais O Menino que Matou Meus Pais (Brasil, 2020 – Galeria Distribuidora/Amazon Prime Video) trazem mesma história, só que sob os diferentes pontos de vista de dois dos assassinos: a filha Suzane e seu namorado Daniel Cravinhos (a dupla ainda contou com a ajuda de Cristian, irmão de Daniel).

Por conta das incertezas da pandemia, o lançamento em cinemas, previsto para março de 2020, acabou sendo substituído pela exibição no streaming. A chegada das obras diretamente às casas dos espectadores também gerou certo desconforto do público brasileiro, que acreditava que os criminosos fossem lucrar algo com o filme. Não, eles não receberam e nem receberão dinheiro pelas produções, uma vez que os roteiristas se basearam nos autos do processo e nos depoimentos de Suzane e Daniel no tribunal. Logo, o material é de domínio público. 

A história realmente não teve espaço para liberdade de criação, justamente por isso. Os roteiristas Ilana Casoy (de Bom Dia, Verônica e também criminalista) e Raphael Martins construíram ambas as narrativas totalmente em cima do que já sabíamos pelas notícias da época. Mas elas não pretendem ser algo investigativo ou que nos direcione a uma verdade, a uma elucidação definitiva sobre motivações do crime. Apenas colocam os dois assassinos cada um contando a sua versão dos fatos. Não há uma ordem certa para assistir os dois. O diretor Maurício Eça sugere começar por O Menino que Matou Meus Pais, o depoimento de Suzane.

As atuações são o ponto mais forte dos filmes. Quando disseram que ao invés de “o filme de Suzane”, ele teria se transformado em “o filme de Carla Diaz”, isso não foi um exagero. Há uma entrega absoluta em ambas as Suzanes, beirando o exagero, mas algo que soa extremamente assertivo, dada a carga psicológica da protagonista. E os dois Daniéis Cravinhos de Leonardo Bittencourt são extremamente convincentes e naturais. As duas mães da história, a Marísia interpretada por Vera Zimmermann e a Nádia (mãe de Daniel) de Débora Duboc, também são um grande presente aos espectadores. Ambas as produções compartilham das cenas iniciais: a reconstituição da chegada da polícia e a descoberta da repugnante cena dos assassinatos do casal von Richthofen em 31 de outubro de 2002 e a chegada dos três acusados (Suzane e os irmãos Cravinhos) para o julgamento quatro anos depois. 

Em O Menino que Matou Meus Pais, temos uma Suzane que teve a inocência perdida e fora influenciada pelo namorado deslumbrado pela fortuna dos Von Richthofen a se voltar contra os pais e cometer o crime. Nessa versão, ela era uma menina estudiosa, perdeu a virgindade e conheceu as drogas por influência do jovem (Daniel era o instrutor de aeromodelismo do irmão dela). Apesar dos pais serem extremamente rígidos e controladores, eram inocentes e ela os amava. Daniel, aqui, mostra-se manipulador, fazendo-a comprar presentes caros e lhe dar dinheiro, realmente sentindo o gosto de um estilo de vida diferente do dele. A Suzane entregue ao público, neste filme, é pintada como aquela versão adocicada da famigerada entrevista para o Fantástico, na qual a assassina foi flagrada recebendo instruções do advogado para chorar.

Em A Menina que Matou os Pais, Daniel é um rapaz bom, filho de uma família amorosa, que sempre trabalhou muito e nunca pediu dinheiro à namorada. Nesse filme, Suzane é mostrada como a manipuladora, não o anjinho virginal da outra versão. Ela que apresenta a maconha ao rapaz. E mais: Cravinhos a descreve como uma garota muito problemática, com traumas e abusada sexualmente pelo pai. A motivação de Daniel para aceitar cometer o crime seria proteger a moça. 

Outro ponto alto deste filme é a trilha sonora. Tanto os temas da época do incidente, muito bem escolhidos de acordo com as personalidades e juventude dos personagens, quanto a trilha original de Ed Côrtes. Destaque para as duas versões de “Love Will Tear Us Apart”, com vocais masculino e feminino. A passagem do tempo, com a data de cada flashback, também revela-se um ponto certeiro.

Há algumas falhas na dobradinha. Tudo bem que os filmes não tenham um compromisso em fazer o espectador buscar uma verdade, mas a coisa ficou muito em aberto, apenas narrando o ponto de vista de cada um dos dois. Uma figura-chave para a história, Andreas, o caçula da família Von Richthofen, não recebe o devido destaque. Não se dá pistas para quem assiste se ele tinha algum envolvimento ou conhecimento dos planos de assassinato ou do que aconteceria naquela noite. Alguns outros pontos acabam deixando certa superficialidade na narrativa onde gostaríamos de ter mais informação ou envolvimento. A fotografia mostra muitos planos abertos, o que quase estraga a profundidade de certos diálogos – mas o elenco excepcional consegue salvar esses momentos e a gente não deixa de ver as expressões e o tom dos atores, principalmente o casal Suzane e Daniel. Vale muito pela atuação que pode ser a consagração de Carla Diaz e a ótima química dela com Leonardo Bittencourt.

O resultado é positivo, porém não maravilhoso. Para quem gosta de histórias de assassinatos baseados em fatos reais, os filmes irão agradar. Contudo, também poderão deixar lacunas. Justamente porque não são obras investigativas, apenas expositivas.

Movies

Atentado ao Hotel Taj Mahal

Ataque terrorista ocorrido em 2008 em hotel de luxo na Índia chega aos cinemas brasileiros logo após eventos semelhantes em Sri Lanka

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Imagem Filmes/Divulgação

Quase 62 horas ou pouco mais de 2.350 quilômetros de distância separam o Hotel Shangri-La, em Colombo, no Sri Lanka, do Taj Mahal Palace Hotel, em Mumbai, na Índia. Os dois hotéis de luxo cinco estrelas em dois países de extrema desigualdade social foram alvo de ataques terroristas. No último domingo de Páscoa, data que simboliza a ressurreição de Jesus Cristo, foram 253 mortos no Sri Lanka. Os terroristas islâmicos explodiram igrejas – templos do catolicismo – e hotéis – templos de turistas endinheirados em várias cidades do país.

Onze anos separam este domingo de Páscoa daquele 26 de novembro, um dia qualquer na capital econômica da Índia, terra do hinduísmo (que divide a sociedade em castas), do jainismo, do budismo, do sikhismo e onde a população muçulmana cresce a cada ano. País onde a vaca é sagrada e a mulher ainda é inferiorizada e constantemente vítima de violência sexual.

Em 2008, assim como no Sri Lanka (que tem o budismo como religião predominante), uma série de ataques terroristas matou mais de 160 pessoas. Esses quatro dias de pânico são recontados no primeiro longa do diretor Anthony Maras, Ataque ao Hotel Taj Mahal (Hotel Mumbai, Austrália/Índia/EUA, 2018 – Imagem Filmes). A produção tem o ator britânico Dev Patel (estrela de Quem Quer Ser um Milionário, longa rodado em Mumbai e que estreou no cinema no ano do atentado) como protagonista e produtor executivo. Retrata o “11 de setembro da Índia” e entrou em cartaz no Brasil na última quinta-feira, um ano após o lançamento de outro filme sobre o tema, One Less God, também australiano.

O longa de Maras (premiado diretor dos curtas Azadi, de 2005, e The Palace, 2011, sobre o conflito Chipre-Turquia) foi lançado no festival de cinema de Adelaide, no final de março, em uma sessão emocionante que reuniu sobreviventes do atentado, entre eles o chef do Taj Mahal, Hermant Oberoi (interpretado pelo veterano ator indiano Anupam Kher), que ajudou a salvar centenas de hóspedes. Em entrevista à NBC News, Oberoi disse que a experiência de reviver o ataque foi visceral, sobretudo nas primeiras cenas de tiroteio.

E essa era a intenção de Maras: trazer a maior carga de verossimilhança possível e retratar o heroísmo de pessoas comuns diante do terror. Pessoas que, sem poderes sobrenaturais, escolheram arriscar a vida para salvar desconhecidos diante do abismo. Foram humanas, demasiadamente humanas.

É nítida a intenção do diretor australiano em chocar, expor a realidade, seja com o estampido dos tiros – nada artístico, sem uso de qualquer música clássica como em Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola – ou em cenas em que as personagens precisam escolher entre permanecer no hotel para salvar outras vidas ou tentar escapar para reencontrar a família.

As cenas de tiroteio, aliás, parecem intermináveis. São tantos tiros de AK-47 que o espectador corre o risco de deixar o cinema com náusea e dores de cabeça. A sensação, porém, não chega aos pés de quem sofreu na pele uma situação limite de estar em meio a um massacre ao vivo.

O apocalipse de Atentado ao Hotel Taj Mahal já fica evidente no início com os contrastes de um país onde milhões de pessoas são indigentes; onde agricultores cometem suicídio todos os anos, e 40% das crianças com menos de cinco anos sofrem de desnutrição crônica.

Os dez terroristas paquistaneses chegam à cidade de barco, com suas mochilas nas costas e sempre seguindo instruções do líder que faz uma massiva lavagem cerebral. “You feel strong. There is no fear in your heart. You are like sons to me. I am with you. God is with you. Paradise awaits” (Você se sente forte. Não há medo em seu coração. Vocês são como filhos para mim. Estou com vocês. Deus está com vocês. O Paraíso espera). É como o líder terrorista profetizou: o mundo inteiro está vendo. E com as mídias sociais, o alcance das mensagens de intolerância religiosa fica cada vez mais potente.

O grupo se separa a fim de concretizar a sequência de ataques. Corta para a personagem de Patel: Arjun está num banheiro público e se arruma na frente do espelho. Sua filha, ainda bebê, está no chão sujo, chorando. Ele a pega no colo e segue para o trabalho da mulher porque não tem com quem deixar a criança. A esposa está grávida. Com o turbante sikh (que fortalece nosso deus interior), apressa-se para não chegar atrasado ao imponente hotel – uma construção de arquitetura gótica vitoriana que homenageia a umas das sete maravilhas do mundo. Lá ele trabalha como garçom. No caminho, perde um dos sapatos e, por pouco, não perde o emprego. Oberoi, seu chefe, empresta-lhe um par e Arjun precisa atender os clientes mancando.

O Taj Mahal é um paraíso. Ali o hóspede – estrangeiro, rico, fino, vip, famoso – é tratado como um deus. Toma banho na temperatura perfeita. Enquanto isso, em nome de Alá ou Allah (a palavra árabe que designa Deus), os terroristas dão cabo ao primeiro ataque, na estação de metrô, onde calcula-se que cem pessoas tenham morrido. O tiroteio é noticiado pela televisão mas os hóspedes que chegam ao Taj ainda permanecem alheios ao terror, jantando nos restaurantes de luxo do hotel. Como o casal formado pela indiana Zahra (Nazanin Boniadi) e o americano David (Armie Hammer), que viaja com o filho recém-nascido e a babá dele (Tilda Cobham-Hervey).

Depois do ataque a um restaurante na cidade, as vítimas sobreviventes correm desesperadas para buscar refúgio no hotel e os terroristas se infiltram entre elas. O luxo se transforma em inferno. O sangue, o suspense e o pânico se instalam.

Forças militares de Nova Delhi demoram horas para chegar e o staff do hotel e uma equipe de policiais locais tentam salvar os hóspedes como heróis. Os dedos massacrados pelo sapato apertado de Arjun não importam mais. A dor desaparece diante do caos, de um pesadelo real, da luta pela sobrevivência.  Aos tiros somam-se o choro do recém-nascido e a experiência de assistir ao filme torna-se torturante.

Maras tenta ainda humanizar os terroristas, como na comovente cena em que um dos atiradores telefona para a família perguntando se o dinheiro já havia sido enviado aos pais. O vilão é o herói da família. O terrorista, capaz de amar e matar o próximo em nome de Alá, chora diante de suas vítimas amordaçadas.

Como toda história baseada em fatos reais, o desfecho desse filme já é esperado, é conhecido. E, se depender da escalada do terror que só cresce no mundo, muitos outros finais como esse serão retratados no cinema. Quem sabe o próximo título do filme de Maras será Atentado ao Hotel Shangri-La.

Saiba mais

Documentário

Este atentado na Índia já rendeu algumas produções cinematográficas. Em 2009, foi lançado um documentário sobre a infiltrada dos jihadistas. “A maioria dos ataques terroristas duram segundos. Mas o ataque em Mumbai foi diferente”, assim começa a narração do documentário Surviving Mumbai, sobre o ataque. O país é o vice-campeão mundial de taxa de extrema pobreza (perdeu para a Nigéria em 2018, segundo o relatório da Brookings Institution) e está entre aqueles com maior número de ataques e vítimas de terrorismo em todo o mundo, depois de Iraque e Paquistão. O documentário foi lançado em 2009 e traz relatos de sobreviventes, como Oberoi.

Reconstrução

Vidas não podem ser “reconstruídas”. Espaços físicos, sim. Dois anos após o atentado, o jornal New York Times publicou matéria sobre a restauração de preciosas obras de arte indiana que o Taj Mahal abrigava em suas dependências, como no imenso lobby. O trabalho durou 21 meses. Quase 300 peças, entre elas quadros de importantes pintores indianos como Vasudeo S. Gaitonde e Jehangir Sabala, ficaram cobertas por fuligem e fungo. Para ler mais sobre isso clique aqui.

Conflito sem fim

Índia e Paquistão são hoje duas potências nucleares e disputam a região da Caxemira antes mesmo de se tornarem independentes do Reino Unido, em 1947. Na época, foi traçado um plano territorial apresentado pelo parlamento britânico e o governante local (isto é, o marajá) da Caxemira decidiu se anexar à Índia, dando início ao conflito interminável. A rivalidade é intensificada por conta da religião. Na Índia, o hinduísmo ainda predomina. Já os paquistaneses são muçulmanos.

Movies

Green Book: O Guia

Comédia dramática baseada em história verídica expõe o preconceito racial no sul dos Estados Unidos no começo dos anos 1960

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Texto por Leandro Saueia

Foto: Diamond Films/Divulgação

Uma comédia dramática sobre tensão racial passada no início dos anos 1960 não é bem o tipo de filme que seria de se esperar de Peter Farrelly em sua primeira incursão cinematográfica longe de seu irmão Bobby – com quem realizou longas mais afeitos ao besteirol como Quem Quer Ficar Com Mary ou Debi e Lóide. Mas foi nesse terreno que o diretor resolveu apostar agora, e, de maneira no geral, a experiência se mostrou bem sucedida.

Green Book: O Guia (Green Book, EUA, 2018 – Diamond Films) é um road movie baseado em fatos reais – ênfase no baseado, já que as reclamações sobre as liberdades tomadas pelo roteiro não foram poucas. O filme conta a história de Tony Vallelonga, um italiano bronco e racista, mas, claro, de bom coração, vivido por Viggo Mortensen. Ao se ver temporariamente sem o seu emprego de segurança na boate Copacabana, em Nova York, ele acaba aceitando o trabalho de ser o motorista de um músico negro, o excêntrico pianista Don Shirley (Mahershala Ali), em uma excursão pelo sul dos EUA em uma época de segregacionismo institucionalizado. O roteiro é baseado nas memórias de Vallelonga, que nos anos seguintes faria pequenos papéis em filmes como O Poderoso Chefão, Um Dia de Cão, Os Bons Companheiros e também na série The Sopranos.

O longa não escapa dos clichês típicos desse tipo de história em que dois opostos são forçados a conviver juntos e assim descobrindo que têm mais em comum do que imaginavam. Ainda assim, garante duas horas divertidas que também podem gerar alguma reflexão, mesmo que em escala bem menor do que a observada em Infiltrado na Klan, de longe o melhor filme dessa safra do Oscar.

Green Book (assim chamado em alusão a um guia com endereços para motoristas negros em viagem pelo sul não se meterem em enrascada com os brancos racistas)  é daqueles trabalhos que crescem quando visto como parte de uma plateia. O mérito maior do sucesso cabe ao par central de atores, ambos excelentes. Viggo se revela um inspirado comediante – esta é a grande razão para recomendar que ele seja assistido na tela grande.

A alma da história, entretanto, pertence a Ali, que lida com um personagem bem mais complexo. O Don Shirley que ele precisa encarnar é um homem em perpétuo estado de inadequação: um negro educado na mais alta cultura e que, por isso não tem nada em comum com a visão típica que os brancos têm dos afro-americanos (ele sequer sabe quem é Little Richard!). Ao mesmo tempo, Don jamais será aceito nas altas rodas, que só querem fazer algum uso de seu talento mas sequer estão dispostos a deixá-lo usar o mesmo banheiro ou comer em seus restaurantes. O fato dele também revelar tendências homossexuais, obviamente não facilitam em nada a sua vida.

Green Book resvala um pouco na pieguice, tem algumas saídas fáceis e não deixa de manipular as emoções do espectador, mas tudo de forma aceitável. Sabe aquela sensação de se pegar gostando de uma canção que você sabe que é brega? É um pouco por aí. Não tem mal nenhum nisso.