Arts, Movies, Poetry

Vermelho Monet

Autor de Cine Holliúdy assina um drama sobre o mercado das artes com intensa paleta de cores e versos furiosos de Florbela Espanca

Texto por Abonico Smith

Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Vermelho é a cor mais quente. Pelo menos para o pintor português Johannes Van Almeida, fã confesso do tom incandescente dos entardeceres dos quadros assinados pelo impressionista francês Claude Monet. Vermelho é justamente a área do círculo cromático que ele procura preservar em sua memória desde que uma doença degenerativa passou a, progressivamente, tomar o que ainda lhe resta da visão. Sua esposa (e igualmente pintora) Adele é ruiva, tem sardas e usa e abusa da cor vermelha em seu figurino. Johannes é eternamente apaixonado por ela e é também o seu cuidador depois que a evolução do mal de Alzheimer abrevou sua carreira e lhe impôs grandes limitações de fala e movimento. Por isso, Almeida é mestre em pintar figuras femininas e abusar deliciosamente da matiz simbolizada pelo fogo.

É em torno desta relação intensa de paixão e sofrimento de Johannes (Chico Díaz) que gira a história de Vermelho Monet (Brasil/Portugal, 2024 – Pandora Filmes), criada por Halder Gomes. Agora o cearense (diretor e roteirista mais conhecido pelas comédias escrachadas como Cine Holliúdy 1 e 2, O Shaolin do Sertão e Os Parças) se lança em um drama que gira em torno do mundo criativo e comercial das artes plásticas. Aliás, é também uma declaração de amor do cineasta à pintura, misto de paixão “secreta” e hobby seu.

Enquanto cuida de Adele (Gracinda Nave), Johannes sofre em busca de uma grande inspiração para continuar pintando enquanto ainda lhe resta o puco de visão e a memória dela (repetindo exatamente o que enfrentara Monet no final de sua vida). Ele nunca fora reconhecido na área. Aliás, a fama ele conquistou, mas como falsificador de pinturas antigas com rosto feminino. Recém-saído da prisão, onde ficou cumprindo um tempo de reclusão por isso, ele volta às ruas, praças e parques de Lisboa nos passeios diários com a esposa até se deparar com a encantadora figura da atriz brasileira Florence Lizz (Samantha Heck, iniciante no cinema e mais conhecida do público nerd por ter feito a personagem Sheila na propaganda de TV com os personagens do mítico desenho animado Caverna do Dragão em live action). Fica obcecado pela jovem ruiva, a ponto de pintar com intensidade inspirado por um painel de colagem de fotos de jornais e revistas da nova musa e desejar a sua presença como modelo no ateliê. O pintor quer, enfim, provar que pode ter o seu talento autoral reconhecido.

Quem faz a ponte entre os dois acaba sendo a inescrupulosa marchand Antoinette Léfèvre (Maria Fernanda Cândido), figura poderosa do mundo europeu das artes, com altas conexões com milionários e colecionadores e leiloeiros de Paris e Londres. Dona de uma galeria respeitada na capital portuguesa, ela lida com a sedução sexual da ninfeta brasileira enquanto luta para manter o domínio psicológico diante de Johannes, deixando-o no underground à base das falsificações que lhe rendem milhões. É na manipulação de ambos que Antoinette injeta boas doses de suspense na trama.

Enquanto isso, Adele e Florence se reconhecem uma na outra. A primeira vê a jovem naquele lugar de desejo ao qual já pertencera. A segunda vê na esposa de Almeida uma alma boa e que teve a trajetória interrompida injustamente por algo maior, a doença – tudo o que a atriz deseja em Lisboa é superar suas limitações de novata na dramaturgia e convencer o arrogante diretor do filme que está rodando de que é capaz e foi a escolha certa dos produtores para interpretar a protagonista. O longa no qual a ruivinha trabalha gira em torno da vida e da obra de Florbela Espanca, um dos maiores nomes da poesia portuguesa de todos os tempos ao lado de Fernando Pessoa. É justamente no universo dos versos de Florbela, repletos de fúria, paixão, intensidade e desejos (tal qual o rubro dos quadros de Monet), que as duas se encontram. Os textos que decora para os ensaios das cenas que rodará é a área de Florence. Já a de Adele está nos pensamentos, sempre ouvidos em voice over por meio da estupenda interpretação de Gracinda.

Florbela também é citada em uma sensacional versão fadística de “Fanatismo”, poema musicado pelo também cearense Raimundo Fagner e gravado em seu álbum Traduzir-se, de 1981. Além da trilha sonora, que traz uma metalinguística “Hot Stuff” (hit de Donna Summer) em um baile à fantasia que cita quadros de outros pintores como Matisse e Van Gogh), Vermelho Monet também impacta pela exuberante fotografia com o uso delicado de luz e sombras e uma paleta que realça a exuberância do vermelho, muitas vezes em contraste com o azul. Aliás, este duelo entre as duas cores se explica em um dos momentos mais interessantes dos diálogos criados por Halder.

E claro que mesmo em um filme dramático não poderia faltar um pouco do humor peculiar do cineasta. Aqui ele se manifesta nas considerações ditas pela trinca principal de personagens a respeito de como realmente funciona o mercado das artes e do que muita gente pensa a respeito dele. Não gargalhe se conseguir.

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Floripa Eco Festival 2023 – ao vivo

Natiruts, Silva, Arnaldo Antunes, Matuê e Filipe Ret são os destaques da terceira edição do festival catarinense

Natiruts

Texto e foto por Frederico Di Lullo

No último dia 16 de setembro rolou de tudo durante a terceira edição do Floripa Eco Festival. Teve um pôr do sol incrível, que vai ficar na memória de mais de 18 mil pessoas. Teve um lineup focado em sua maioria na Geração Z, que abraçou de vez a música pop atual. E também tiveram preços nada convidativos para alimentação e bebidas.

Cheguei no Campeche às 15h30 e a primeira atração, Dazaranha e Tijuqueira, já tinha se apresentado. Fiquei bem triste, mas não posso dizer que não sabia: era um sábado de muito calor e me programei para chegar um pouco mais tarde. Contudo, as grandes filas no entorno e a falta de sinalização clara para estacionar contribuíram para um atraso não tão planejado. Quando entrei, Arnaldo Antunes estava na sua terceira música.

E como toda regra tem sua exceção, este lineup Geração Z também. O sempre titã está numa fase incrível e foi muito bom assistir a mais uma apresentação solo dele. O poeta, compositor, e gênio da música pop brasileira fez um showonde percorreu boa parte dos seus clássicos, verdadeiros hinos. São quase 40 anos de carreira e ele ainda agita como um jovem adolescente. Na plateia, pessoas de todas as idades cantaram clássicos como “A Casa é Sua”, “Essa Mulher”, “Envelhecer”, “O Pulso”, “Comida” e “Televisão”. Sem dúvidas, uma apresentação ímpar e que durou exatos 60 minutos. Mas se expectativa ficou lá em cima no início, ela logo foi abaixada pelo preço da cerveja: 17 reais numa latinha. Enfim, seguimos em frente!

Na sequência de Arnaldo, Silva entrou em cena. Para mim, pelo menos, não prometia nada e entregou muito! O capixaba continua se afirmando como um dos principais nomes da nova MPB, ganhando cada vez mais fãs e seguidores nas redes sociais. Num clima intimista, ele cantou músicas de todas a fases de sua carreira, iniciando com o álbum Claridão, de 2012. Isso sem falar sobre a facilidade de interpretar sucessos alheios de forma interessante. No set list tivemos canções como “Fica Tudo Bem”, “Duas da Tarde” e “Pôr do Sol na Praia”. Sem sombra de dúvidas, esta uma escolha pra lá de sugestiva para um final de dia no sul da Ilha de Santa Catarina. O feat com Criolo, entretanto, foi demasiado curto: apenas três músicas, sendo uma instrumental. Deu impressão que o querido Kleber Cavalcante Gomes apenas veio passear por aqui. Por isso, aguardamos ele novamente para mais apresentações.

Logo o sol se escondeu, o céu ficou estrelado e o vento sul chegou com tudo no Floripa Eco: momento para procurar um abrigo e sentar um pouco. Ao fundo, Ziggy Alberts fazia sua estreia em solo catarinense, com sua música descompromissada e calcada na surf music. Pelo jeito, a galera gostou. Já eu aproveitei para esticar um pouco as pernas, sentar numa canga e prosar. Festivais proporcionam esta experiência também.

Seguindo com as apresentações, veio a pérola da noite: o cômico Rich The Kid. Sinceramente, eu não o conhecia até ver o anúncio do nome no festival. Fazendo uma rápida pesquisa na internet sobre ele, deu para sacar que é uma mala sem alça. E não deu outra no Campeche. Um show cansativo, com inúmeras interrupções, muitos xingamentos e pouca mão na massa. O garoto de Atlanta fez sua passagem por Florianópolis e não fará muita falta.

Depois o festival trouxe a atração mais aguardada da noite, pelo menos pela Geração Z. Sim, estamos falando de Matuê. Símbolo do trap brasileiro, o rapper cearense de 29 anos se apresentou finalmente em Florianópolis diante uma plateia juvenil que o aguardava praticamente em êxtase. No auge da carreira, Matheus Brasileiro Aguiar proporcionou um show interessante, no qual em nenhum momento deixou a peteca cair e ainda fez esquecer o fiasco da apresentação anterior. Não é de hoje que ele é um dos artistas mais escutado e querido de sua geração. Em sua apresentação, não faltaram clássicos do ícone pop como “Vampiro”, “Flow Espacial”, “Máquina do Tempo”, “Brinca Demais” e “Conexões de Máfia”, um feat gravado justamente com…. Rich The Kid! E não é que o americano voltou ao palco para cantar esta música, agora vestindo uma balaclava e distribuindo beats e xingamentos? Vai entender…

Seguindo adiante, eram quase 23 horas quando o Natiruts entrou no palco. Eu sempre achei engraçado o fato deles serem de Brasília, de onde o clima de praia passa longe. Mas isso não é, de jeito nenhum, uma crítica. Afinal, a banda com mais de 25 anos de história, hoje sela o status de ser uma das maiores (e melhores) bandas do gênero do país. A trupe comandada por Alexandre Carlo fez em Floripa um concerto antológico, apresentando eternos sucessos para uma plateia que, talvez, nunca tivesse ouvido eles. Já sobre ter visto ao vivo, tenho certeza disso.E é justamente aí onde a banda de destaca: traz uma energia cativante, onde as boas vibrações invadem o público e fazem todo mundo dançar e cantar junto. Isso só é possível graças a hinos como “Presente de um Beija-Flor”, “Tudo Vai Dar Certo”, “Quero Ser Feliz Também”, “Andei Só”, “Natiruts Reggae Power” e “Liberdade Pra Dentro da Cabeça”. Havia tempo para mais? Lógico. Ainda durante o Natiruts rolou um feat com IZA, que cantou três músicas, com destaque para uma versão reggae power de “Pesadão”. Isso só é possível em festivais como o Eco!

Para fechar a noite, subiu ao palco mais um artista aclamado da Geração Z: Filipe Ret. Mas pra mim, a noite tinha acabado com o último acorde do Natiruts. Estava de alma lavada, cansado e com vontade de uma cerveja sem comprometer meu orçamento do mês. Ao rapper carioca meu grande respeito, mas já havia assistido ao show dele menos de um ano atrás. Ficou para a próxima!

Em resumo, o saldo deste terceiro Floripa Eco Festival foi positivo. Com o Saravá anunciando data para dia 20 de janeiro, basta aguardar se teremos em 2024 mais uma edição summer do Floripa Eco Festival ou se este ficará mesmo com a data fixa e anual em setembro. Esperamos ansiosos por essas respostas.

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Coolritiba 2023 – ao vivo

Gilberto Gil, Marisa Monte, Mano Brown, Alceu Valença, Fresno, Liniker e outros bons shows

Gilberto Gil

Texto por Leonardo Andreiko e Luca Passos (com colaboração de Otto Browne)

Fotos: Coolritiba/Divulgação

No último dia 20 de maio, em pleno outono curitibano, 23 atrações musicais dividiram quatro palcos distribuídos entre a Pedreira Paulo Leminski e a Ópera de Arame em mais uma edição do festival Coolritiba, que agitou no frio e no calor de um sábado com mais de 12 horas de música. Foram 12 shows principais nos palcos-irmãos da Pedreira, além da música eletrônica ocupando o palco da Ópera e o caminho entre eles.

Com a missão de abrir o dia no Palco A, Tuyo mostrou a que veio com as nuances eletrônicas de seu pop alternativo ancorado nas belíssimas e potentes vozes das irmãs Lio e Lay Soares – Jean Machado completa o trio com a produção eletrônica e as modulações de guitarra e baixo. As baladas melancólicas da banda curitibana arrepiaram quem chegou cedo para curtir o festival e incumbiram a próxima atração, Agnes Nunes, com a difícil missão de manter os ânimos. E assim ela o fez.

Baiana de apenas 21 anos e uma multidão de seguidores nas redes sociais, Agnes trouxe para o meio-dia de Curitiba seu som fortemente influenciado pelo r&b norte-americano, mas com pegada inequivocamente brasileira. Acompanhada por um pianista e um baixista/guitarrista no Palco B, encantou com sua voz, pôs o público para cantar e deu espaço para os instrumentais românticos de sua ainda incipiente discografia.

Liniker

Em seguida, Liniker trouxe seu álbum Indigo Borboleta Anil para os palcos junto de músicos estelares, com quem dividiu o protagonismo a todo momento. Do início ao fim de sua apresentação, mandou hits consagrados no meio indie brasileiro e novas apostas musicais, que a colocam em evidência como uma das maiores artistas em ascensão do país. Com “Intimidade”, “Baby 95” e outras canções, a artista foi mais uma das atrações que preencheu a Pedreira com presença vocal surpreendente. Ela embalou toda a plateia, agora já encorpada, com uma banda que nada deve às melhores do funk e do r&b mundial, sem deixar de incorporar brasilidade e samba para a equação. Bateria, percussão e baixo montaram uma cozinha espetacular, que dividiu o palco com teclados, guitarra e um naipe de sopros digno das big bands. Liniker provou que a veremos, mais cedo do que imaginávamos, protagonizar festivais como headliner.

Depois de uma das mais promissoras novas vozes da música brasileira foi a vez de um de nossos maiores patrimônios tomar o microfone. Encaixado em um horário que não faz jus a sua história, Alceu Valença subiu ao Palco B da Pedreira às 14h30 para levar a um público majoritariamente jovem sua sonoridade profundamente brasileira. Ainda que as interações com a plateia não estivessem com tamanha energia, o bom humor e a irreverência do pernambucano colocaram Curitiba para dançar e cantar “Tropicana”, “La Belle de Jour”, “Anunciação” e “Táxi Lunar”. Sua apresentação, ladeada por novas promessas e tendências fonográficas, foi um instigante ponto de toque para se refletir acerca das distâncias e proximidades entre o passado, o presente e o futuro da MPB.

Fresno

O Fresno, que sucedeu Alceu, ocupa um espaço particular nessa conjuntura temporal. Apresentando uma versão reduzida de sua turnê mais recente, que acompanha o álbum Vou Ter Que Me Virar, os gaúcho-paulistas teceram um set list que conjuga os sucessos emo da primeira metade de seus 24 anos de carreira com a refinada estética construída nos últimos projetos, que agregam elementos do synth pop e demais vertentes eletrônicas a uma gutural e crua herança do hardcore.

O show do grupo ostentou, junto à posterior presença agigantada de Mano Brown, o tom mais político desse festival. Entre os fortes riffs de “FUDEU!!!”, o vocalista Lucas Silveira comemorou a cassação do ex-deputado federal da Lava-Jato com um grito de “Deltan, tu se f*deu!”. Ainda, os versos “E o prеsidente, basicamente/ Quer te exterminar” foram acompanhados da projeção “ex-presidente” no telão, que complementa e cria a atmosfera de toda a apresentação da banda. Em “Eles Odeiam Gente Como Nós”, projetavam-se as silhuetas da pífia demonstração de força do Exército Brasileiro durante o desgoverno militarista de Bolsonaro.

Em seguida, o Lagum, banda de pop rock com uma influência de reggae que acaba de lançar o quarto disco, Depois do Fim, entregou-se nas interpretações de suas músicas, cativando o público forte interação. Além de prometer voltar para outro show na cidade até o fim do ano, os mineiros brindaram os fãs mais assíduos com uma palhinha de uma música vindoura.

Agnes Nunes

Embora o baiano Teto e o cearense Matuê sejam parceiros de muitas composições e constassem juntos na programação (como parte de sua turnê em conjunto), eles não dividiram o palco em nenhum momento. No entanto, ambas as aparições animaram o público com suas potentes presenças de palco e sucessos mais recentes (do primeiro, “Flow Spacial”; do outro, “Conexões da Máfia”), além de seus maiores hits. Fizeram a alegria dos fãs que compareceram em peso no festival.

Se o trap de Matuê o faz um dos artistas em maior evidência do país, o palco de seu show catapulta a experiência àquela dos grandes performers mundiais, com luzes e um telão que ostenta animações psicodélicas que expandem a toada estética iniciada no álbum Máquina do Tempo, de 2020. A última música do set, “777-666”, seu píncaro artístico, entregou a exata atmosfera do artista: os dois acompanhantes, guitarrista e tecladista (que, inclusive, surpreendeu com um solo que parecia saído dos álbuns contemporâneos de jazz), juntaram-se num palco “em chamas”, efetuando solos com seus instrumentos já quase inaudíveis pela batida da música. Deliberadamente tosco, um jeito perfeito de terminar.

Em seguida, L7nnon deu sequência coerente aos artistas anteriores. Um dos nomes mais evidentes do rap nacional, suas músicas, já conhecidas por boa parte do público, cativaram a juventude que o esperava – a despeito de uma possível qualidade da interpretação, que não passou do mais básico. Dificilmente alguém que não o conhecia – justamente uma das qualidades do formato do festival, o contato com o choque entre gêneros e carreiras – foi atraído pelas canções, com a notável exceção de “Ai Preto”, não à toa seu maior sucesso.

Mano Brown

Um dos destaques do festival neste ano foi o veterano Mano Brown, que nos brindou com o que pode ser considerado um concerto duplo. Os primeiros 20 minutos foram dedicados a canções de seu álbum solo lançado em 2016, Boogie Naipe. As composições, executadas com o cantor Lino Kriss, deram boas-vindas calorosas ao som do boogie e do r&b. No telão, uma miscelânea de capas de álbuns clássicos dos gêneros que inspiraram o álbum: um convite a explorar a história musical que claramente encanta Brown desde os primórdios. Curitiba dançou “dois pra cá, um pra lá” contagiada com os ritmos dançantes de músicas como “Gangsta Boogie” e “Mal de Amor”.

Na segunda parte do espetáculo, a plateia foi presenteada com hinos do clássico álbum de 2002 dos Racionais MCs, Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, interpretadas no sentido mais puro da palavra: o palco, decorado de forma quase minimalista, foi usado à exaustão para dar forma aos versos. Com as gigantescas presenças de Ice Blue e KL Jay, músicas que já integram o substrato mais profundo da cultura brasileira foram entregues com suas forças sempre vivas: “Vida Loka (Parte I)”, “Eu Sou 157” e “Jesus Chorou” foram algumas pedradas que rolaram em som na noite. Aliás, é necessário um contraste entre a apresentação de Brown, de 53 anos, com os rappers da nova geração: o único que levou dançarinos e intérpretes de libras, Mano, em certo momento, brincou com o fato de ainda estar antenado, mas de um modo meio duvidoso. Talvez seja justamente por esse anacronismo que ainda se pode falar de arte, que os corpos ainda se movimentam no espaço e que as palavras sobrevivem.

Sandy

Dez minutos depois, Sandy entrou no palco ao lado, numa produção grandiosa em seu trabalho de luzes e da própria sonoridade. A cantora, que parece ser incapaz de sair da afinação, evidentemente não parecia afinada à programação: apertada entre Mano Brown e Gilberto Gil, sua presença foi um pouco anódina. Foi um show voltado a fãs da cantora, que interagiram bastante com o público e cantaram seus grandes sucessos, como “Aquela dos 30” e “Me Espera”, em parceria com Tiago Iorc. Ainda assim, a música que mais fez vibrar os curitibanos foi um dos sucessos dela com o irmão, Júnior: “A Lenda”, num soturno exemplo que pode resumir a carreira da cantora.

Em seguida, um dos protagonistas da noite: Gilberto Gil, 80 anos e com sua banda, ofereceu um dos mais destacados espetáculos do Coolritiba, com uma sequência de músicas de seu repertório próximas da sonoridade do forró entrecortadas por interlúdios  quase industriais. Ninguém ficou parado ou calado na plateia: de crianças a senhoras, todos cantavam a plenos pulmões (ok, havia alguns mais comedidos, aqueles cuja vergonha ataca mesmo nessas ocasiões) músicas como “Eu Só Quero Um Xodó”, “Toda Menina Baiana” e “Esotérico”. A movimentação, preenchida pela harmonia com as notas, não foi exclusiva da plateia, já que em cima do palco toda a banda parecia estar em enorme entrosamento, rendendo sobretudo bons solos de guitarra e sanfona, esta nas mãos do ilustre Mestrinho. Vale o destaque à filha mais velha de Gil, Nara Gil, que acompanhou o acordeonista nos vocais.

Alceu Valença

Uma das coisas que mais indicam a qualidade de um show é a interação entre o público e o artista – tanto entre as músicas quanto durante elas. Gil falou de tudo um pouco sobre a capital paranaense: citou os times de futebol, o quentão e o frio. Essa proximidade com a cidade rendeu uma das partes mais bonitas do espetáculo: a homenagem para a filha mais nova de Paulo Leminski e Alice Ruiz, “Estrela”. O concerto de Gil, portanto, foi à altura de seu nome gigantesco, uma pequena janela de paraíso musical.

Para fechar a noite, Marisa Monte vestiu-se de deusa e trouxe a Curitiba um espetáculo não apenas musical como também visual. Seu telão com projeções em 3D criaram uma espacialidade magnânima onde a voz de Marisa pudesse ecoar, acompanhada de uma banda de dar inveja a qualquer artista nacional. Conduzindo os sopros, o trompetista Antônio Neves, que ostenta um dos melhores lançamentos brasileiros do jazz contemporâneo, levou a especial textura que torna sucessos como “Ainda Bem” tão especiais na discografia de Marisa.

A cantora também presenteou as plateias com hits da carreira, como “Vilarejo”, “Beija Eu” e “Velha Infância”. O show ainda contou com a presença do percussionista Pretinho da Serrinha, que dividiu o palco com a estrela para apresentar a colaboração dos dois, em homenagem à Portela, chamada “Elegante Amanhecer”.

Marisa Monte

Assim se encerrou mais uma edição do Coolritiba, que faz aterrissar no Paraná a megaestrutura dos grandes festivais, mas também traz consigo seus problemas. É impossível ignorar as reclamações com os preços abusivos e a falta de transparência em relação à promessa de água e ônibus gratuitos, assim como é impossível ignorar a qualidade do aparelho cultural disposto à cidade, ainda que com a mácula da inacessibilidade.

Music

Jonnata Doll & Os Garotos Solventes – ao vivo

“Alienígenas” incendeiam noite fria e chuvosa com performance arrebatadora em noite de lançamento do novo disco

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Texto e foto por Fábio Soares

A sexta-feira do dia 6 de setembro anoiteceu fria, chuvosa e carrancuda em São Paulo. Atmosférico convite para permanecer em nossos lares maratonando séries, ficar debaixo de edredons ou simplesmente hibernar até o dia seguinte. Na zona oeste da capital, porém, um “interplanetário” evento ocorria no lendário palco da choperia do Sesc Pompeia. Com uma tríade de lançamentos no currículo, a trupe cearense Jonnata Doll & Os Garotos Solventes promovia o lançamento de seu novo álbum de estúdio, chamado Alienígena. Com recém-completados dez anos de estrada, os Solventes encararam a temporada de 2019 como uma final de campeonato. Alienígena é o disco de afirmação do grupo, carregando a missão de elevar seu patamar de promessa alternativa para um dos grandes nomes da atual cena do rock brasileiro.

Às 21h30, os Solventes surgiram ao palco em vestimentas brancas contrastantes com o “tom de boate” do ambiente. Edson Van Gogh (guitarra), Léo BreedLove (guitarras e teclados), Felipe Popcorn Maia (bateria), Joaquim Loiro Sujo (baixo) e Jonnata Araújo (vocais) tinham a companhia da cantora sergipana Marcelle nos hacking vocals e iniciaram a apresentação com “Filtra Me”, poderoso stoner rock de letra urgente (“Sou um ruído que sempre sujou a imagem crua que você nunca mostrou”). “Edifício Joelma”, por sua vez, não é apenas uma singular descrição do lendário prédio consumido por uma tragédia incendiária em 1974. É uma crônica musicada sobre este mesmo centro de São Paulo com suas idiossincrasias.

Já “Baby”, confirma ao vivo o que já se ouviu em disco. Esta é séria candidata a faixa do ano. Flerta com o iê-iê-iê, narrando os perrengues de um jovem casal que decide morar junto na selva de pedra. Perrengues estes que são explicitados em “TRABALHO TRABALHO TRABALHO”. Carro-chefe de Alienígena e grafada integralmente em maiúsculas, a canção (que já possui um clipe) narra a rotina de um sujeito à beira de um colapso nervoso com transporte público lotado, salário baixo e falta de reconhecimento no emprego. Sua execução tão caótica quanto (no bom sentido da palavra!) contou com o trompetista Guilherme Guizado, que também participou da canção seguinte, “Vale do Anhangabaú”, mais uma das inúmeras faixas que tem o centro paulistano como cenário.

“Crocodilo”, do homônimo álbum lançado em 2016, foi um dos pontos altos da apresentação. É justamente nela que o grupo usa seu “supertrunfo” com maestria: a performance de Jonnata Araújo. Incansável no palco, o vocalista incorporou o personagem insano que tantas vezes habitou o imaginário de fãs de Iggy Pop e Lux Interior. Dando um bico nos fundilhos do convencional, desceu à plateia seminu, subiu nas mesas, beijou bocas masculinas e ofereceu seu microfone aos presentes num improvável karaokê em versão pocket. Após quase oito minutos de “insanidade”, até parecia que o vocalista sairia dali direto para a UTI mais próxima. Só que o show tinha de continuar.

Clemente Nascimento (Inocentes, Plebe Rude) deu o ar de sua graça em “Volume Morto” e “Matou a Mãe”. Esta última, um arrasa-quarteirão de dois minutos beirando o hardcore, foi a responsável por rodas de pogo na plateia. Estas mantiveram a atmosfera elevada para a derradeira “Cheira Cola”, mais uma canção de Crocodilo. Punk rock em estado bruto que chacoalhou as estruturas da choperia.

A banda não retornou para o bis e nem era preciso. O recado de Alienígena já havia sido muito bem passado. Os Solventes falam grosso e reivindicam, com razão, um lugar de destaque em festivais Brasil afora. Muito cedo para dizer que explodirão em breve? Não. Após quatro discos (um é ao vivo), o caminho está muito bem pavimentado tanto por terra quanto pelo ar. Afinal, alienígenas voam. Melhor: teletransportam-se.

Set list: “Filtra Me”, “Edifício Joelma”, “Baby”, “TRABALHO TRABALHO TRABALHO”, “Vale do Anhangabaú”,  “Derby Azul”, “Vai-Vai”, “Música de Caps”, “Pássaro Azul”, “Crocodilo”, “Volume Morto”, “Matou a Mãe” e “Cheira Cola”.

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Vanguart

Quarteto faz sua homenagem ao ídolo Bob Dylan em álbum-tributo que reúne muitas faixas de sua fase áurea nos anos 1960 e 1970

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Juan Pablo Mapeto/Divulgação

Bob Dylan é um gênio com suas crônicas e poesias rimadas e musicadas no gênero folk. Por conta de sua complexidade e riqueza artística incomparável, ouvidos menos treinados sempre encontrarão certa dificuldade em absorver sua arte. A voz rouca e o timbre anasalado do cantor e compositor norte-americano podem soar um tanto enjoativo para alguns e as canções quase intermináveis são compridas demais para cativar a atenção das novas gerações acostumadas com a fluidez das coisas. Acompanhar “Hurricane” do começo ao fim, por exemplo, exige uma dose extra de paciência.

Por isso, o recém-lançado álbum do Vanguart é um alento para quem gosta de Bob Dylan. Com uma roupagem despretensiosa e leve, Vanguart Sings Dylan (DeckDisc) é perfeito para se ouvir numa manhã de domingo ou durante uma loooonga viagem ao lado de uma agradável companhia, o que renderá um bom papo cabeça durante o percurso.

A bem da verdade as versões não são tão vanguardistas e seguem à risca o jeito Dylan de ser. Há covers que de tão fiéis às originais ficam quase impossíveis de se distinguir até surgir o vocal. Como “Hurricane” (que conta a história da prisão indevida do boxeador Rubin “Hurricane” Carter) interpretada pelo guitarrista David Dafré (que recebeu esse fardo por saber a letra com 880 palavras de cor).

A banda do vocalista Helio Flanders pode até resistir em inovar nos covers até mesmo para não macular a obra do bardo, mas nos presenteia com surpresas como a bela interpretação da violinista Fernanda Kostchak em “The House Of The Rising Sun”. À medida que se vai escutando o álbum fica clara a intenção da banda em gravar um tributo reverenciando o compositor, instrumentista autodidata, que foi grande influência para dezenas de artistas mundo afora. Aliás, essa homenagem até demorou para ser gravada em disco, porque o Vanguart sempre flertou com Dylan, tocou-o ao vivo e até gravou um especial com covers dele para o Canal Bis.

O deus do folk era respeitado, venerado no meio artístico, sobretudo nos anos 1960 e 1970 e continua sendo um grande influencer para artistas contemporâneos. Entre seus principais discípulos estão Beatles (a quem Dylan teria introduzido a marijuana) e Rolling Stones (que regravaram o clássico de Dylan “Like a Rolling Stone”). Claro que é preciso uma certa dose de preparo para consumir suas composições com seis, oito minutos de duração e seus versos com rimas impecáveis. Goste ou não, Dylan é nome de mestre. Que aprendeu de ouvido a tocar piano e violão. E com seu olhar detalhista, a observar e traduzir o mundo e suas reviravoltas, o que lhe rendeu um prêmio Nobel de literatura em 2016.

No Brasil, ele continua sendo fonte de inspiração para muitos cantores – principalmente do Nordeste – que se aventuraram no árduo e complexo trabalho de traduzir o punhado de canções mais famosas e transpor os versos em inglês impecável para a língua portuguesa. O primeiro que me vem à cabeça e cuja aura mais se aproxima do norte-americano é Zé Ramalho. O paraibano lançou em 2008 um disco com versões de Dylan, como “Knockin’ On Heaven’s Door” Mas a tradução fidedigna do refrão, por exemplo, destoa da versão original: como encaixar “céu” no mesmo acorde de “door” (“Bate, bate, bate na porta do céu”)?.

Outra versão que deve ter dado trabalho foi a de “Romance em Durango” gravada pelo cearense Fagner, que nos primeiros versos dá uma velocidade que mais parece um desespero atropelado para casar letra e música. As rimas originais desaparecem na tradução também fiel à original. A primeira estrofe (“Hot chilli peppers in the blistering sun/ Dust on my face and my cape/ Me and Magdalena on the run/ I think this time we shall escape”) se transformou em “Pimenta quente no sol escaldante/ Poeira no meu rosto e minha capa/ Eu e Madalena na corrida/ Acho que desta vez vamos escapar”.

Esses exemplos levam a concluir que a arte de Bob Dylan deve se perpetuar na língua inglesa. É preciso ouvi-lo no original, caso contrário, pode se perder todo o sentido. Por isso, o álbum de Vanguart é tão significativo por respeitar a voz e a língua do compositor.

Quinze das dezesseis faixas contemplam a primeira fase da sua obra entre suas décadas mais expressivas. Começa com baladas mais suaves como “Tangled Up In Blue” e “Don’t Think Twice it’s All Right”, “Just Like a Woman” (com a clássica gaita na introdução), “Hurricane” e “Like a Rolling Stone” aparecem em sequência, mais para o final do álbum que encerra com a obra-prima “Blowin’ In The Wind”, hino entoado em coro pela banda. Claro que faltam singles bastante conhecidos, como “Knockin’ On Heavens door” (escrita em 1972 por Dylan para o filme Pat Garrett & Billy The Kid) e “Mr. Tambourine Man”. Entrada e prato principal para um segundo Vanguart Sings Dylan, quem sabe.