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A Carta de Esperança Garcia

Documentário resgata a história da escrava do Piauí do século 18 que foi reconhecida pela OAB como a primeira advogada brasileira

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Divulgação

A esperança é a última que morre. Na mitologia grega, a esperança presa na caixa (ou jarra) de Pandora pode ser considerada um mal. Ou um bem. Depende da interpretação, do ponto de vista. Afinal, de todos os males liberados pela mulher criada pelos deuses, foi ela – a esperança – que ficou aprisionada. 

Pelo viés pessimista nietzschiano, a esperança serve para que o homem não abandone a vida após ser torturado por todos os outros males – doenças, guerras, sofrimento. Por isso, é considerada o mal supremo, já que prolonga o nosso suplício. É como se fosse uma armadilha, que nos aprisiona na aceitação das coisas.

Por outro lado, a esperança pode ser encarada como o único bem: aquele que, justamente, torna a vida suportável, apesar de todo o mal. No Piauí do século 18, a Esperança com E maiúsculo e sobrenome Garcia foi escravizada, arrancada de sua família, maltratada, violentada, acorrentada. Diante de todos os infortúnios contidos numa caixa chamada fazenda Poções, ela escreveu uma carta que mudaria o seu futuro e de tantas outras mulheres. Por causa dessa carta, Esperança foi considerada autora da primeira petição escrita por uma mulher negra e, assim, reconhecida pela OAB como a primeira advogada do Brasil.

Esperança Garcia é a prova da benevolência desse sentimento que carrega seu nome de batismo. O pedido de socorro, escrito em um pedaço de papel ao governador da província, serviu de inspiração para o documentário A Carta de Esperança Garcia (Brasil, 2023), com roteiro e direção de Douglas Machado e pesquisa da advogada Maria Sueli Rodrigues de Sousa. 

Esperança Garcia nasceu em 1751, na fazenda Algodões, em Nazaré do Piauí, e foi arrancada da família e enviada para a fazenda Poções, em Isaías Coelho. Em 6 de setembro de 1770, aos 19 anos de idade, decidiu denunciar as condições desumanas pelas quais ela, seus filhos e outros escravos eram submetidos.

A carta dizia assim: “Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda Algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha os olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.”

O filme, rodado na comunidade quilombola Algodões, onde Esperança Garcia viveu, é dividido em quatro partes e se inspira na carta-denúncia da escrava piauiense para retratar a vida de mulheres que dão continuidade ao movimento de resistência contra as ressonâncias da escravidão, da opressão, da violência, da discriminação. Mesmo porque havia pouca informação sobre Esperança.

“Só sabíamos a história da carta. E que Esperança, de 17 anos, havia se casado com Ignácio, de 57”, disse o diretor Douglas Machado, durante uma sessão de exibição do documentário no Cine Passeio, em Curitiba. 

O fato de ter sido alfabetizada – possivelmente pelos jesuítas – e de carregar a força de uma mulher guerreira lhe possibilitou mudar o seu futuro e das outras “Esperanças”, como Chitara Souza, Luíza Miranda, Tina Ribeiro e Catarina Santos, que mostram como é o cotidiano no quilombola: uma vida simples, de pés no chão e gingado de capoeira, comida feita no fogão a lenha, fava colhida na árvore e algodão, do pé. 

Para transmitir essa aura bucólica porém de muito trabalho e luta de Algodões, Machado organizou oficinas de filmagem com as moradoras para que elas mesmas pudessem registrar as cenas do cotidiano. Assim mesmo, no improviso. Como a vida é. Além de Tina, Chitara, Luíza e Catarina, também fazem parte do elenco a primeira governadora negra do Piauí, Regina Sousa, mais a atriz e cantora Zezé Motta, que na última parte do documentário conduz uma entrevista com todas as personagens reais.  

Ao resgatar a cultura brasileira e tocar num assunto urgentíssimo que é a reparação pela escravidão, o documentário traz à tona algo que ainda nos incomoda: o descaso com a memória do povo brasileiro. Tudo o que resta da carta de Esperança Garcia é uma cópia guardada no arquivo municipal da capital Teresina. Não se sabe como, nem quando, muito menos quem foi o responsável pelo sumiço da original –  sendo que um documento histórico como esse deveria estar num museu, emoldurado, para todos terem acesso. Ao contrário disso, porém, seu paradeiro é desconhecido. Não se sabe se foi furtada ou até mesmo está em Portugal. Segundo Machado, o pedaço de papel do século 18 vivia sendo manuseado e transportado de um lado para o outro, apresentado em eventos e exposições sobre a escravidão no Piauí. Até que um dia ele desapareceu.

No final do documentário, uma nova carta escrita pela pesquisadora Sueli traz uma lista com demandas atuais. Sueli sofria de uma doença degenerativa que lhe paralisou os movimentos do corpo. Ela morreu antes de ver o filme finalizado e deu novo sentido ao verbo “esperançar”.

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Plebe Rude + Relespública – ao vivo

Uma noite entre mods e punks com carreiras longevas, repertórios matadores e muita fúria em forma de rock’n’roll

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Plebe Rude

Texto por Getulio Guerra
Fotos: Murilo Ribeiro

Jokers Pub, noite de sábado, 8 de junho de 2019. Casa cheia pra ver dois dinossauros da cena roqueira nacional no bar mais tradicional do rock curitibano. DJ Ronypek era um dos fanzineiros responsáveis pelo Ordem & Protesto – o fanzine mais foda da cidade, distribuído mundo afora nos anos 1980. Entre um IPA e um APA, a discotecagem já antevia a vibe da noite com “Festa Punk”, dos Replicantes (“Quero uma festa com os Kennedys / Eles é que sabem o que é hardcore / Depois pra resfriar, pra afastar os junkies/ Poguear um monte ouvindo Circle Jerks”)

Sobe ao palco a primeira banda da noite. A Relespública com o trio clássico é matadora! Não consigo pensar em outra formação que não seja Moon-Fábio-Ricardo fazendo aquele som… A banda curitibana tem hits, mesmo que no underground e o anexo todo do Jokers socado, inclusive os camarotes, e cantando junto com Fábio Elias – em sua melhor forma possível, mental-física-espiritualmente. Ele conta que abrir para a Plebe no Jokers já era um sonho antigo, da banda e do Sandro – o dono da porra toda da conceituada casa. Fabio brinca que sua guita não está afinando talvez por causa do frio. Diz que quando foi comprar na loja ela afinava mas ali no palco, não. Oferece a cover “I Cant Explain”, do Who, a Serguei e Andre Matos, ambos falecidos horas antes desse show.

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Relespública

A Plebe Rude é uma banda que tem uma egrégora que é muito foda! Era “só” a predileta do Renato Russo em Brasília. E isso é uma baita responsa, pra vida inteira. O André e o Phillipe se conhecem e tocam juntos há muito tempo, desde a fundação da banda em 1981. E lá se vão quase 40 anos de estrada… A leveza da relação, o respeito que um tem pelo outro (que deu pra ver no recente DVD Primórdios) é bonito. E somados ao Clemente, que tem também uma presença de espírito maravilhosa, e o Capucci, que é de outra geração mas veio com discrição e precisão juntar-se aos dinossauros… Vira um quarteto e tanto.

Eu ouço os caras desde o lançamento do primeiro disco, O Concreto Já Rachou, de 1986! Aquele discurso pertinente daqueles primeiros tiros (“Proteção” e “Até Quando Esperar”) bateu forte no então jovem de 15 anos que já ouvia Inocentes (cujo bandleader é o Clemente, desde a formação da banda, também em 1981), Cólera, Garotos Podres, Replicantes, Camisa de Vênus… Tinha aquela estética e pegada pós-punk, sem tosquices nem exageros, que até hoje se mantém com integridade.

Abonico Smith – editor deste site – entrevistou os punks velhos horas antes do show, descobrindo que logo entram em estúdio pra gravar um novo disco. Será uma ópera punk com quase trinta músicas e que servirá de base para um musical. Neste disco será contada a História da humanidade. De três mil anos pra cá, desde quando o homem se tornou bípede. A ideia iniciou de uma canção inédita já há três décadas, que se chama “Evolução” e foi tirada pela Plebe da gaveta. Em breve este bate-papo estará disponível aqui no canal do Mondo Bacana no YouTube.

Mas voltemos ao show do Jokers. Phillipe fala, depois de “Um Outro Lugar”, que esta canção tem 30 anos e ele não pensava que teria de ficar cantando ela hoje. Não imaginava que teríamos um presidente que ficaria fazendo gracinhas em relação à cor das pessoas, à cultura quilombola e a outras coisas. A base do set list fica nos dois históricos primeiros discos, mas ainda dá espaço a novidades e faixas posteriormente incorporadas ao repertório da banda, como “Medo”, clássico do Cólera (“Redson não está morto!”, avisa alguém da banda).

Cortinões fechados, sem bis de nenhuma das bandas. Esse é o último concerto desta tour referente a Primórdios! Compro um botton da Plebe, carrego um pouco meu celular numa tomada do hall, pago minha ficha e pego o rumo do Xaxim. É… Alguns artistas ainda me tiram de casa.

Set list Relespública: “Boogie”, “Nós Estamos Aqui”, “Mudando os Sentidos”, “Dê Uma Chance Pro Amor”, “Nunca Mais”, “Eu Soul”, “I Can’t Explain”, “Sol em Estocolmo”, “Capaz de Tudo”, “Mod de Viola”, “In The City”, “Garoa e Solidão”, “Boatos de Bar/A Fumaça é Maior Que o Ar”,  “Camburão” e “Minha Menina”.

Set list Plebe Rude: “Voz do Brasil”, “Brasília”, “Johnny Vai à Guerra (Outra Vez)”, “Dança do Semáforo”, “Luzes”, “Censura”, “Um Outro Lugar”, “Anos de Luta”, “O Que Se Faz”, “Sua História”, “A Ida”, “Esse Ano”, “Bravo Mundo Novo”, “Pressão Social”, “Tá Com Nada”, “Códigos”, “Sexo & Karatê”, “Medo”, “Minha Renda”, “Proteção”, “Plebiscito”, “Disco em Moscou” e “Até Quando Esperar.