Books, Movies

A Hora da Estrela

Baseado na obra literária de mesmo nome de Clarice Lispector, clássico do cinema nacional dos anos 1980 é restaurado e relançado

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Vitrine Filmes/ Divulgação

O cinema brasileiro é repleto de grandes clássicos desconhecidos do grande público. Se muitos já “ouviram falar” de Glauber Rocha ou, mais recentemente, assistiram a um sucesso de Kleber Mendonça Filho nos cinemas, é certo que estamos culturalmente desfamiliarizados com a filmografia produzida antes da retomada, no final dos anos 1990. Por sorte, a preservação dos negativos na Cinemateca Brasileira garante que iniciativas de restauração deem um novo respiro a alguns desses títulos, relançados aos cinemas. Nos últimos anos, foi o caso de Rainha Diaba, de Antônio Carlos da Fontoura (leia a crítica publicada no Mondo Bacana clicando aqui), e é o caso de A Hora da Estrela (Brasil, 1985 – Vitrine Filmes) de Suzana Amaral, que acaba de reestrear em circuito nacional na sessão Vitrine Petrobrás.

Antes de tudo, é preciso reconhecer o tamanho desta obra à época de seu lançamento. Em 1985 e 1986, A Hora da Estrela angariou os principais prêmios do Festival de Brasília (filme, direção, roteiro, atriz, ator, montagem, cenografia, trilha sonora e fotografia, além dos prêmios do Júri Popular, Especial da Crítica e Troféu Jangada) e garantiu o Urso de Prata de Melhor Atriz para Marcélia Cartaxo no Festival de Berlim. Em Havana, foi eleito o Melhor Filme de 1986.

A partir de um roteiro que adapta o romance homônimo de Clarice Lispector, o filme conta a história de uma jovem nordestina recém-chegada a São Paulo com pouquíssimas posses e menos dinheiro ainda. Macabéa (Cartaxo) é, aos olhos dos demais, feia e suja. Não sabe se portar com os costumes da cidade e, sempre se desculpando, é uma figura frágil e tímida. “Tão pobre que só comia cachorro quente”, como diz Clarice em uma entrevista anterior à publicação do livro.

Mas Macabéa é ser humano e, sendo assim, tem curiosidade e desejo. Não cabe num mundo que não a formou Enfeita seu pequeno espaço em um quarto compartilhado com outras três mulheres com recortes de revista. Escuta religiosamente a Rádio Relógio. Busca sentido nas palavras que datilografa com dificuldade. E, principalmente, quer o quer todos querem: amor, afeto e dinheiro. Por detrás do silêncio e da timidez, a inocência de quem não tem nada nem ninguém em uma corrida pela vida contra a malícia da cidade.

É natural, portanto, que o primeiro homem que a desse bola se tornasse seu grande amor. Dito e feito, Macabéa se apaixona pelo operário Olímpico de Jesus (José Dumont), também nordestino, cujo delírio de grandeza insiste em projetá-lo como eventual “deputado geral do Brasil” e ver nossa protagonista com os olhos amargos do machismo ressentido de seu tempo. Ainda que seja constantemente menosprezada ou rechaçada por seu companheiro, Macabéa não deixa de encará-lo com inocência e enxergar afeto onde há desprezo.

A direção de Suzana Amaral é muito astuta em delinear o desequilíbrio desta e das demais relações do filme. Olímpico constantemente está de costas para Macabéa, que não se importa com o protagonismo roubado do mau caráter que a enrola. Os planos e contraplanos mais despretensiosos são capazes de ilustrar o universo de densidade que perpassa as interações com Glória (Tamara Taxman), a colega de trabalho duas-caras. ou as vizinhas, com quem Maca partilha a cumplicidade da solidão na linha da miséria. Amaral dirigia seu primeiro longa-metragem, mas demonstrava a maturidade necessária para dar vida às personagens de Clarice Lispector desde a primeira cena.

O humor ácido com que expõe as personalidades autocentradas ao redor da protagonista bem como os exageros místicos da cartomante (Fernanda Montenegro, em uma performance brilhante) que se voltam contra si são a fortaleza do filme, que não cansa de delinear a hostilidade monstruosa com que a metrópole recebe Macabéa. Sua verve sonhadora é explicitada pelos lindos e raros momentos de solidão da personagem, que se descobre entre o desejo e a paixão com o caminhar da história. A beleza arquitetônica dos metrôs vazios, que a encantam no início do longa, logo são substituídos pelos braços e sovacos de desconhecidos que, se a conhecessem, não lhe dariam bola. Eterna rejeitada, mesmo pelo homem que namora, Macabéa só recebe contato humano quando este é indesejado, na multidão do metrô.

Também encantam os momentos em que Suzana Amaral e Alfredo Oroz, que assinam o roteiro, deixam brilhar a potência literária de Lispector. O trabalho de adaptação é preciso em evitar a verborragia por meio da composição de mise-en-scènes que se destacam em comparação ao cinema atual. Em uma das muitas interações em que é sumariamente ignorada por Olímpico, a protagonista dispara: “eu não acho que sou muita gente”, uma oração tão densa que aluga espaço na cabeça do espectador por um bom tempo.

Mas, no fim, não há muita gente ao redor dela e A Hora da Estrela é o romance de uma inocência surrada, batida e escorraçada que, apesar dos percalços e tropeços, termina feliz, confiante de que tudo vai mudar para melhor.

Comics, Movies

Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente

Longa traz o icônico personagem de Angeli tentando evitar que seu autor dê a ele o mesmo destino trágico de Rê Bordosa

Texto por Abonico Smith

Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

Um dos mais icônicos personagens das tiras de jornal assinadas por Angeli ganha agora os cinemas com a estreia de um longa-metragem derivado da série de animação em stop motion de bonecos criada e exibida pelo Canal Brasil. Por se valer da mesma equipe de profissionais (direção, produção, roteiro, dublagem), o longa-metragem, de uma hora e meia, não só vem afiado como ainda reproduz a mesma linguagem da telinha, misturando os diversos tipos do cartunista em uma espécie de angeliverso, inclusive transformando o próprio criador (mais tudo que o cerca, como o escritório e a esposa) em criatura no meio de toda a trama.

A premissa de Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente (Brasil, 2021 – Vitrine Filmes) é simples. Acionado pelos irmãos Kowalski, o velho punk de moicano e argolas no rosto acaba sabendo, através de uma página de HQ desenhada pelo seu autor, que sua vida está em risco. Afinal, está ali, na crise de ansiedade do velho cartunista, a iminência de sua morte. Sem dó nem piedade, tal qual ele fizera muito tempo atrás com outra de suas queridas criações, a Rê Bordosa. E mais: o ambiente no qual Bob habita começa a ser infestado por mini Elton Johns. Com a capacidade de se fundirem em uma enorme hidra, as pequenas e insistentes criaturas mutantes – sempre com um visual chamativo diferente – perseguem o protagonista com a única intenção de matá-lo em nome daquilo que mais despreza no mundo: o pop.

Como punk (old school) que é punk (old school) não aceita a extinção, depois de driblar os Eltinhos lá vai ele em direção ao seu criador para confrontá-lo. Então, começa um obstinado road movie em direção ao prédio de Angeli. Durante a viagem, encontra como coadjuvantes de luxo marcos da trajetória deste como o editor Toninho Mendes (que transformou Angeli em ícone dos quadrinhos alternativos através da revista Chiclete com Banana), a amiga Laerte e alguns outros personagens marcantes (Skrotinhos, Rhalah Rikota e até mesmo Rê Bordosa).

Mantendo a linha do seriado, como a explosão de referências gráficas às obras publicadas e o tom semidocumental assumido nas falas do próprio cartunista quando este se coloca como entrevistado de uma equipe de filmagem, a animação evidencia aquilo que sempre esteve muito na cara dos quadrinhos dele (e só não via quem não queria): o universo transposto por Angeli ao papel (e agora às telas) é fruto das ruas sombrias e do udigrudi punk da megalópole paulistana da primeira metade dos anos 1980. Está lá o humor sarcástico, nihilista, muitas vezes corrosivo e politicamente incorreto. Estão lá na trilha sonora bandas que faziam shows obrigatórios nos inferninhos locais da época, como Inocentes, Mercenárias e Titãs. Está lá a atmosfera pós-apocalíptica a la Mad Max que serve de cenário à mente do autor (e ao mesmo tempo morada para Cuspe e os Kowalski). Está lá a verve de tomar decisões que vão contra a corrente. E está lá, sobretudo, o velho cartunista assumindo ser Bob Cuspe uma espécie de alter-ego seu.

Mais intenso e realista do que o primeiro longa baseado na obra de Angeli (Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll, uma animação tradicional em 2D feita pelo gaúcho Otto Guerra e lançada em 2006), Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente se torna, ao mesmo tempo, uma declaração de amor e ode a um período de uma riquíssima produção cultural de uma juventude paulistana que cresceu sob a furada promessa de futuro de uma nação governada pela ditadura militar e que ainda não tinha muito pra onde ir – ou pelo menos pensar em ir. Talvez para quem é mais novo do que o auge dos personagens de Angeli essa hora e meia de animação não signifique lá muita coisa, seja tudo menos uma peça de resistência. Contudo, é exatamente disso que voltamos a precisar hoje em dia. Resistência ao padrão, ao normal, à idiotia que insiste, como os mini Elton  Johns, em reinar soberana sobre o solo do estabilishment décadas e décadas depois.

Movies

007: Sem Tempo Para Morrer

Despedida de Daniel Craig do papel de James Bond chega aos cinemas em grande estilo e marcada por tom dramático

Textos por Flavio Jayme (Pausa Dramática) e Marden Machado (Cinemarden)

Fotos: Universal Pictures/Divulgação

M, na pele de Ralph Fiennes, diz uma das falas mais representativas do novo filme de James Bond: “o mundo não é mais o mesmo”. E realmente não é.

Desde que o espião surgiu nas páginas literárias e no cinema, muita coisa mudou. Menos ele. Bond continuava o mesmo galanteador que desprezava as mulheres e não se importava com os sentimentos alheios. Aí veio Daniel Craig.

Em 2006, o ator assumiu o título de “Bond, James Bond”, e podemos dizer sem exageros que transformou o personagem. Seja por conta de carisma, de talento, de excelentes coadjuvantes ou de bons roteiros mais antenados com o mundo, os cinco filmes do agente estrelados por Craig formam uma série à parte dentro da história de Bond no cinema.

Não à tôa, sua despedida como Bond acontece agora em grande estilo e de forma inédita. Nunca em todos os filmes um ator que foi trocado sai de cena da forma como Daniel Craig sai. Sua despedida se dá em grande estilo, e a vaga (aberta ou não, não vou estragar esta parte!) está pronta para ser ocupada por um novo agente.

A história de 007: Sem Tempo Para Morrer (No Time To Die, Reino Unido/EUA, 2021 – Universal Pictures) dá continuidade aos eventos de Spectre e Skyfall, mas não se iluda: este não é um simples filme de James Bond. É uma despedida de um dos atores que mais marcaram o personagem (até porque para a atual geração provavelmente nem existe outro, já que eles ignoram qualquer acontecimento anterior a 2000). E todo o filme traz um tom muito mais sóbrio e dramático. A ameaça de uma doença mortal transmitida pelo toque que pode se tornar uma pandemia, inclusive, é absoluta e perigosamente up to date.

Esqueça as perseguições mirabolantes, as fugas espetaculares. Elas agora são muito mais “pé no chão” e, por isso mesmo, Sem Tempo Para Morrer pode decepcionar os fãs de saltos de aviões, perseguições aéreas e explosões infindáveis. Este Bond está cansado de conflito físico. Suas perseguições de carro, por exemplo, são muito mais “cruas” e nem por isso menos impressionantes.

Como não poderia deixar de ser, o longa nos leva para cenários idílicos e pitorescos: de uma vila esculpida na rocha na Itália a uma cidade em Cuba, a viagem ao lado de Bond é deliciosa e perigosa. As mulheres também estão ali ainda, mas, em vez de meras coadjuvantes, são suas aliadas. Atiram, batem, matam assim como ele. E aqui o elenco faz bonito (em todos os sentidos): Léa Seydoux, Ana de Armas e Lashana Lynch dão um show à parte. (FJ)

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Quase 60 anos após o lançamento do filme inaugural da franquia James Bond chegamos à 25ª aventura oficial do agente secreto de sua majestade. Pronto desde o final de 2019, deveria ter sido lançado em abril do ano passado, mas a pandemia atrasou a estreia em quase dezoito meses. O filme é dirigido pelo americano Cary Joji Fukunaga, responsável pela primeira temporada da série True Detective, também autor do roteiro, junto com Neal Purvis, Robert Wade e Phoebe Waller-Bridge.

Ao longo desse período de seis décadas tivemos seis intérpretes do espião da MI6 e em 007: Sem Tempo Para Morrer (No Time To Die, Reino Unido/EUA, 2021 – Universal Pictures) o ator Daniel Craig, após 15 anos à frente desse icônico papel em cinco filmes, se despede da personagem. O novo filme começa logo depois dos eventos de 007 Contra Spectre, de 2015. Bond está aposentado e vivendo na Jamaica até ser procurado por Felix Leiter (Jeffrey Wright), seu amigo da CIA. Uma série de eventos o coloca novamente na mira da Spectre e de um novo e misterioso inimigo, Safin (Rami Malek).

Assim como em Skyfall, de 2012, Sem Tempo Para Morrer explora aspectos da vida pessoal do agente. O mais interessante nesses cinco filmes de Bond estrelados por Daniel Craig é a forma como os produtores e roteiristas desenvolveram uma cronologia própria que tem início em Casino Royale, de 2006; continua em Quantum Of Solace, de 2008; e passa pelos outros dois já citados. Craig continua bastante à vontade no papel. Sem exagero algum, pode ser considerado o melhor Bond de todos e é, desde já, o ator que por mais tempo deu vida ao herói.

Apesar de sua longa duração, o filme não perde o ritmo um segundo sequer e mantém nossa atenção do início ao fim. Confesso que até o momento Skyfall era meu 007 favorito da série. Agora posso dizer que ele está tecnicamente empatado com Sem Tempo Para Morrer. Por fim, uma nova personagem, vivida por Lashana Lynch, é apresentada e rende bons diálogos relativos aos zeros que designam a permissão para matar. (MM)

Movies

Coringa

Joaquin Phoenix encarna com maestria o clássico vilão de Gotham em contundente história que metaforiza a psicopatia da sociedade atual

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Texto por Janaina Monteiro

Fotos: Warner/Divulgação

Sorria, mesmo que seu coração esteja dolorido. Sorria, mesmo que ele esteja partido. Charles Chaplin, que deu vida ao palhaço Carlitos, escreveu esses versos em “Smile”, música composta nos anos 1930 para o filme Tempos Modernos.

Mas como sorrir quando se é miserável de alma e conta bancária? Quando se é vítima de toda a sujeira mais imunda que o ser humano pode produzir? Quando o bullying e o abandono se arrastam pela vida adulta? Quando você perde emprego, vive sozinho, deprimido, e, pra piorar, sofre de transtorno psicótico? Esse é o dilema de Coringa (Joker, EUA, 2019 – Warner). No filme que leva o nome em português do personagem, o vilão se transforma em herói retratado de forma humanizada pelo diretor Todd Phillips (mais conhecido pela trilogia Se Beber Não Case). O aguardado e aclamado longa sobre um dos antagonistas de Batman, vencedor do último Leão de Ouro em Veneza, estreia nesta quinta-feira no Brasil cercado de polêmicas e protagonizado por Joaquin Phoenix, um ator com estrutura física e psicológica para viver o papel que já foi interpretado por Heath Ledger (morto por overdose acidental de medicamentos logo após terminar as filmagens de Batman: O Cavaleiro das Trevas), Jared Leto e Jack Nicholson.

O Coringa de Phoenix sorri por conta de sua psicose acompanhada de um distúrbio neurológico (ele ri incontrolavelmente a ponto de quase sufocar) e do seu trabalho como palhaço de rua. Arthur, na verdade, chora através de suas risadas histéricas. Ele é o freak, o weirdo, em busca de sentido de pertencimento no mundo cada vez mais apático e egocêntrico. Faz parte da escória da humanidade, que de tanto sofrer assume a personalidade de Joker e se transforma num monstro guiado pela violência nua e crua, similar à praticada por jovens armados em escolas e cujos massacres são exibidos e reexibidos pelos telejornais. Por isso a preocupação com a censura: no Brasil, o filme não é recomendado para menores de 16 anos.

A introdução mostra o drama de Arthur em seu ambiente hostil. Gotham City está infestada por ratos reais, numa analogia à Nova York do início dos anos 1980 quando o número de habitantes roedores quase ultrapassou a população. Arthur mora com a mãe num prédio decadente do Bronx e sonha em ser comediante de stand-up. O tempo todo ele é esculhambado, ridicularizado por colegas, agredido por gangue de adolescentes, refém de sua doença, dos remédios e da pilhéria da sociedade em que vive.

Phillips, que coescreveu o roteiro, conseguiu de forma soberba traduzir essa personagem dos quadrinhos capaz de causar tanto fascínio e terror. E humanizar o vilão, digno de pena. Todo o sofrimento serve como base de seu comportamento no decorrer da trama. Arthur não chega a ser um psicopata, pois consegue sentir compaixão: cuida da mãe tão perturbada quanto ele. E como todo psicótico, encontra fuga numa realidade paralela. Quando assiste, por exemplo, ao seu talk show preferido, chamado Live With Murray Franklin, imagina-se dentro do programa. Delira e encontra no apresentador  (interpretado por Robert De Niro) o pai que nunca teve. O mundo de Arthur está em vias de explodir quando perde o emprego, momento em que seu alterego passa a dominar.

O turning point acontece quando ele descobre a verdade sobre sua mãe, sobre o seu passado, sua doença, sobre o pai que nunca conheceu e que poderia ser o mesmo pai de Bruce Wayne, o Batman, super-herói nascido em berço de ouro. Thomas Wayne, bem ao estilo Donald Trump, é candidato a prefeito de Gotham e se refere aos pobres como sendo palhaços. O filme, aliás, faz um paralelo surpreendente com a história de Batman e confronta as duas personagens, dando uma suposta prévia do novo filme sobre o Homem-Morcego.

Na mente do Joker (o nome original do Coringa, em inglês), Arthur passa do homem ridicularizado, vítima de chacota e agressão, ao palhaço vingativo, terrorista. Sua satisfação vem através da violência. Em vez de estourar seus miolos, Arthur decide eliminar quem o ridicularizou. E poupa aqueles que o trataram bem, na maioria das vezes também minorias.

Cenas chocantes não faltam no filme, que alimentam a polêmica de fomentar atos de violência. Entretanto, o roteiro consegue a proeza de, em algumas delas, nos fazer rir com uma certa culpa por conta da atitude perturbada do protagonista. Phillips e Phoenix transformam em arte cenas de dança em que o Coringa comemora e parece emular Carlitos, incorporando gestos de tai chi. Aliás, o balé do Coringa foi feito de improviso. Joaquin e Todd não gostaram do primeiro resultado e o ator, gênio, começou a dançar, o que rendeu uma cena de beleza poética e transformou em marca registrada desse Joker.

A tensão é mantida do início ao fim, garantida pela riqueza da personagem e o brilhantismo do ator. Como é possível esperar qualquer coisa da mente de um psicótico, há tomadas tão carregadas de suspense que o espectador sente aquele frio na espinha. Somando a isso, a trilha sonora do filme é fundamental na manutenção dessa condição de ansiedade e expectativa. Muitas vezes, por si só, uma canção é capaz de dar sentido à determinada sequência. Como “Send In The Clows” (gravada originalmente por Frank Sinatra e interpelada por uma das vítimas do Coringa) e “Smile”, de Chaplin, sobre quem há faz várias referências durante esta história (o homem por trás de Carlitos era um gênio, filho de mãe doente mental e que acabou tendo fama de pedófilo).

Além de close-ups reveladores e movimentos de câmeras sempre em sintonia com o tom sombrio do filme, Phillips também faz uso de elementos não verbais para mostrar o conflito de personalidade e a angústia de Arthur. Exemplos disto são as cenas em ele aparece numa escadaria, sinônimo de verticalidade, representando os planos do espírito, da mente, a ligação entre o céu e a Terra. A trama, aliás, é tão bem costurada que o espectador não consegue definir quais são momentos de delírio e sanidade da personagem até que, quase na metade do filme, um flashback desnecessário surge como uma explicação para os improváveis desatentos.

Muito mais que a história de um conflito pessoal, Coringa é a metáfora de uma sociedade que caminha para uma psicopatia, na qual seus cidadãos usam da violência, desprezo, abandono para resolver diferenças e exigir seus direitos, num mundo em que a raiva toma conta e os fins justificam os meios. Essa sociedade exclui, ignora, marginaliza e trata essas pessoas como meros clowns.

Quando o protagonista se transforma em vigilante, há referências claras a Guy Fawkes e críticas evidentemente políticas a injustiças sociais, como o fato da extinção do serviço social que garante os remédios de Arthur.

Coringa é um soco na cara. Pisa na ferida e escancara a violência de modo brutal, pura, ácida, nua e crua. É um papel tão forte, poderoso, trágico que só um Phoenix (irmão do ator River, morto por overdose em 1993, aos 23 anos de idade) para encará-lo de forma esplêndida. O ator emagreceu 23 quilos para encarnar o vilão e lembra Christian Bale em O Operário (Bale, aliás, foi Batman nas telas). Nessa nossa sociedade delirante, nem todos são psicóticos, mas pobres mortais são, sim, todos palhaços.

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Represálias

Por evocar a violência e transformar o vilão em herói, embora a Warner negue isso, o filme vem sofrendo represálias e chegou a ser proibido em Aurora, cidade norte-americana onde um rapaz supostamente inspirado no Coringa abriu fogo numa sala de cinema matando doze pessoas em 2012. O medo é que este novo filme inspire novas tragédias. O diretor Todd Phillips, porém, diz que não é justo fazer essa associação. “É um personagem de ficção num mundo fictício que existe há 80 anos”, justificou Phillips numa entrevista.

A Warner divulgou um comunicado respondendo a uma carta escrita por familiares do massacre de Aurora, enfatizando que violência por arma de fogo é um assunto crítico e que o estúdio tem uma longa história de doações a vítimas de violência, incluindo esta cidade do estado do Colorado. “Ao mesmo tempo, a Warner Bros acredita que uma das funções da arte de contar histórias é provocar diálogos difíceis sobre questões complexas. Não se engane: nem o personagem fictício Joker, nem o filme, é um endosso de qualquer tipo de violência no mundo real. Não é esta a intenção do filme, dos cineastas ou do estúdio manter esse personagem como um herói”, declarou a empresa.