Comics, Movies

Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente

Longa traz o icônico personagem de Angeli tentando evitar que seu autor dê a ele o mesmo destino trágico de Rê Bordosa

Texto por Abonico Smith

Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

Um dos mais icônicos personagens das tiras de jornal assinadas por Angeli ganha agora os cinemas com a estreia de um longa-metragem derivado da série de animação em stop motion de bonecos criada e exibida pelo Canal Brasil. Por se valer da mesma equipe de profissionais (direção, produção, roteiro, dublagem), o longa-metragem, de uma hora e meia, não só vem afiado como ainda reproduz a mesma linguagem da telinha, misturando os diversos tipos do cartunista em uma espécie de angeliverso, inclusive transformando o próprio criador (mais tudo que o cerca, como o escritório e a esposa) em criatura no meio de toda a trama.

A premissa de Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente (Brasil, 2021 – Vitrine Filmes) é simples. Acionado pelos irmãos Kowalski, o velho punk de moicano e argolas no rosto acaba sabendo, através de uma página de HQ desenhada pelo seu autor, que sua vida está em risco. Afinal, está ali, na crise de ansiedade do velho cartunista, a iminência de sua morte. Sem dó nem piedade, tal qual ele fizera muito tempo atrás com outra de suas queridas criações, a Rê Bordosa. E mais: o ambiente no qual Bob habita começa a ser infestado por mini Elton Johns. Com a capacidade de se fundirem em uma enorme hidra, as pequenas e insistentes criaturas mutantes – sempre com um visual chamativo diferente – perseguem o protagonista com a única intenção de matá-lo em nome daquilo que mais despreza no mundo: o pop.

Como punk (old school) que é punk (old school) não aceita a extinção, depois de driblar os Eltinhos lá vai ele em direção ao seu criador para confrontá-lo. Então, começa um obstinado road movie em direção ao prédio de Angeli. Durante a viagem, encontra como coadjuvantes de luxo marcos da trajetória deste como o editor Toninho Mendes (que transformou Angeli em ícone dos quadrinhos alternativos através da revista Chiclete com Banana), a amiga Laerte e alguns outros personagens marcantes (Skrotinhos, Rhalah Rikota e até mesmo Rê Bordosa).

Mantendo a linha do seriado, como a explosão de referências gráficas às obras publicadas e o tom semidocumental assumido nas falas do próprio cartunista quando este se coloca como entrevistado de uma equipe de filmagem, a animação evidencia aquilo que sempre esteve muito na cara dos quadrinhos dele (e só não via quem não queria): o universo transposto por Angeli ao papel (e agora às telas) é fruto das ruas sombrias e do udigrudi punk da megalópole paulistana da primeira metade dos anos 1980. Está lá o humor sarcástico, nihilista, muitas vezes corrosivo e politicamente incorreto. Estão lá na trilha sonora bandas que faziam shows obrigatórios nos inferninhos locais da época, como Inocentes, Mercenárias e Titãs. Está lá a atmosfera pós-apocalíptica a la Mad Max que serve de cenário à mente do autor (e ao mesmo tempo morada para Cuspe e os Kowalski). Está lá a verve de tomar decisões que vão contra a corrente. E está lá, sobretudo, o velho cartunista assumindo ser Bob Cuspe uma espécie de alter-ego seu.

Mais intenso e realista do que o primeiro longa baseado na obra de Angeli (Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll, uma animação tradicional em 2D feita pelo gaúcho Otto Guerra e lançada em 2006), Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente se torna, ao mesmo tempo, uma declaração de amor e ode a um período de uma riquíssima produção cultural de uma juventude paulistana que cresceu sob a furada promessa de futuro de uma nação governada pela ditadura militar e que ainda não tinha muito pra onde ir – ou pelo menos pensar em ir. Talvez para quem é mais novo do que o auge dos personagens de Angeli essa hora e meia de animação não signifique lá muita coisa, seja tudo menos uma peça de resistência. Contudo, é exatamente disso que voltamos a precisar hoje em dia. Resistência ao padrão, ao normal, à idiotia que insiste, como os mini Elton  Johns, em reinar soberana sobre o solo do estabilishment décadas e décadas depois.

Movies

Cidade dos Piratas

Animação baseada na vida e obra da cartunista Laerte Coutinho estreia nas telas depois de 25 anos com muitos percalços

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Lança Filmes/Divulgação

Durante os 25 anos em que o diretor de animação Otto Guerra manteve a ideia de levar para as telas de cinema a versão dos quadrinhos de Piratas do Tietê, a vida real – como ele mesmo disse quando esteve em Curitiba no último dia 27 de outubro, para lançar o filme – atropelou o projeto original diversas vezes. Ele, a cartunista Laerte Coutinho, o país e o mundo não são mais os mesmos. Otto descobriu um câncer metastático e por um triz não deixou o projeto órfão. Já Laerte, como todo mundo sabe e está cansado de saber, assumiu sua transexualidade e de seus colegas cartunistas do passado – a tríade Adão (Rocky & Hudson), Angeli  (Wood & Stock) e Glauco (Geraldão, Rê Bordosa) – o último foi assassinado, o do meio anda recluso (com depressão, segundo Otto) e o primeiro se debandou para a Argentina. Ou seja, tudo virou de cabeça para baixo.

O mundo também parece estar em derrocada, com a ascensão da extrema direita fascistoide e o Brasil liderado por um presidente que incentiva o uso de armas de fogo e sempre manteve  o discurso homofóbico. Por isso, não há arma melhor do que o humor irônico dos quadrinhos de Laerte para combater esse caos todo. Com um diretor de sobrenome Guerra, melhor ainda.

Cidade dos Piratas (Brasil, 2019 – Lança Filmes), a primeira animação proibida para menores, retrata exatamente esta confusão, sendo a obra em si totalmente caótica, mas com caráter extremamente filosófico e histórico. Depois de oito roteiros e muitas reviravoltas como o fato de quase morrer, Otto insistiu como todo brasileiro e, finalmente, conseguiu lançar a animação com storyboard de Laerte – que é corroteirista, ao lado dos sobreviventes Rodrigo John e Thomas Créus. O resultado foi um trabalho duplamente autobiográfico, que retrata tanto os percalços sofridos pelo diretor gaúcho, como a doença e a demissão da produtora executiva do projeto, e principalmente a mudança de identidade sexual da cartunista criadora dos piratas, um marco da contracultura nacional dos anos 80. Nesse caso, a criadora se tornou tão revolucionária quanto a criatura e sua transgeneridade deu novo rumo à história. Por isso o subtexto do filme é “livremente inspirado na vida e obra de Laerte Coutinho”.

Assim como Laerte, a animação também se metamorfoseou diante de todas essas situações sui generis e se transformou num filme fora da reta, com recortes, alegorias e metalinguagem, mas que, ainda assim, faz todo o sentido se juntarmos todos os caquinhos. Principalmente quem já têm um conhecimento prévio sobre a obra da cartunista. Caso contrário, sem este background, fica um tanto difícil entender alguns detalhes do humor refinado.

Diante de todo o cenário mutante, Otto definiu a animação como um “bicho de quatro cabeças”. “A produtora Marta Machado abandonou o projeto na metade. O roteiro mudou oito vezes. A sorte é que eu tive um câncer com metástase. Depois disso eu decidi: agora eu faço o filme que eu quero”, brincou Otto, diante da própria tragédia. Ao lado de Benett, representante da nova geração de cartunistas, o gaúcho conversou com a plateia curitibana, após a primeira exibição comercial do filme no país, no Cine Passeio. “Vou aproveitar que é aniversário do Lula e vou visitá-lo”, ainda disse o diretor na ocasião.

Otto revelou ainda que a linguagem dos quadrinhos tem um universo parecido com a animação. “Mas a estrutura é muito difícil. Me perdi completamente”, confessa. E por se desviar do tradicional, existe a dificuldade em definir a animação, principalmente fora do Brasil, onde é considerado um filme “exótico”.

Da história original foi mantido o confronto entre os bandeirantes e os índios escravos, que pegam em armas de fogo com a música de fundo de Raulzito Seixas, a superplausível “Aluga-se”. São Paulo cortada pelo seu rio marginalmente poluído representa toda a sujeira do Brasil.  A animação é costurada com aparições de personagens da cartunista, hoje com 67 anos, cujo traço é indefectível. Estão lá o político homofóbico e enrustido Azevedo, como se fosse uma previsão de Bolsonaro em quadrinhos, dublado por Marco Ricca. Hugo e seu alterego Muriel, que é travesti, surgem na voz de Matheus Nachtergaele. Também há trechos de depoimentos da Laerte para a imprensa, com uma montagem bem irônica. O próprio Otto também estrela o filme, narrando numa subtrama o ocorrido durante o tempo de filmagem. Aliás, um dos culpados pelos seu câncer aparece numa das cenas de bar: o conhaque da propaganda maliciosa cujo slogan era “Deu duro? Tome um Dreher!”.

No final, Otto vence a doença e ganha elogios de Laerte. “Ela me deu um beijo na boca”, confidenciou. Por sua vez, a cartunista segue combatendo o preconceito com seu nanquim. Já São Paulo continua à mercê dos piratas, sendo cenário do apocalipse. Resta, agora, esperar como será a recepção da patrulha ideológica a esta animação.