Movies

A Alegria é a Prova dos Nove

Pièce de résistance que descende do cinema marginal brasileiro aposta na abordagem de tabus sexuais e outros assuntos sociais espinhosos

Texto por Abonico Smith

Foto: Mercúrio Produções/Divulgação

Helena Ignez é um símbolo do cinema marginal brasileiro. Nascida em Salvador, onde era modelo e começou a fazer teatro, namorou Glauber Rocha, com quem fez a transição para atuar nas grandes telas. Depois se relacionou com Julio Bressane e se casou com Rogerio Sganzerla. Atuou em muitos filmes durante a década de 1960, entre eles Assalto ao Trem Pagador, O Bandido da Luz Vermelha, A Mulher de Todos e Copacabana Mon Amour. Depois foi rareando os trabalhos até dar dois grandes intervalos na carreira. Retomou-a após a morte do marido em 2004, estreando como diretora.

Para celebrar este mês de maio e a chegada aos 86 anos de idade, Helena vê a chegada de seu mais novo longa-metragem ao circuito nacional depois de passagem por festivais, onde conquistou alguns prêmios. Com o nome de Ignez em diversas funções da ficha técnica (produção executiva, direção, roteiro, protagonista do elenco) A Alegria é a Prova dos Nove (Brasil, 2023 – Mercúrio Produções) é um retorno fidedigno ao espírito do cinema alternativo brasileiro sessentista. Irreverente, desafiador, provocador e, sobretudo, ousado, não apenas nas temáticas abordadas como também pelo formato. Aqui não há uma trama formal, com introdução, desenvolvimento e conclusão, sendo desenvolvida ao longo dos cem minutos de filme. A história de uma artista octogenária que emplaca uma bem sucedida trajetória de sexóloga e conta com a ajuda de algumas amigas para promoverem ações feministas e que têm o objetivo de ensinar as mulheres a terem um conhecimento maior de seu corpo e da exploração de seu próprio prazer durante as relações, aparece em uma montagem sequencial de pequenos esquetes até chegar ao grande clímax performático (em todos os sentidos que você queira colocar aqui, aliás) no happening que serve como sequência de encerramento.

Contando com um numeroso elenco que mistura sua filha e também diretora de cinema Djin Sganzerla, nomes da dramaturgia underground paulistana (como Mario Bortolotto e Fernanda D’Umbra), músicos dando vazão ao seu lado ator (Ney Matogrosso, Dan Nakagawa, Negro Léo) e mulheres que pesquisam, fazem, vivem e respiram cinema também nos bastidores (Michele Matalon, Thais de Almeida Prado, Danielly OMM, Barbara Vida), A Alegria é a Prova dos Nove enfileira diálogos francos e objetivos sobre assuntos que são tabus para a sociedade brasileira. Começa com a violência sexual praticada pelos homens e passeia pela dificuldade feminina de chegar ao orgasmo, o uso medicinal da cannabis e drogas químicas, os padres prafrentex dentro de uma retrógrada igreja católica, o opressor modus operandi da extrema-direita e até mesmo o massacre impiedoso sofrido pelos palestinos em seu próprio território.

Além das aulas e workshops promovidos pela celebrada Jarda Ícone, a personagem vivida por Helena, a costura do roteiro fica com o reencontro dela com o fotógrafo e ativista dos direitos humanos Lirio Terron (Ney Matogrosso), com quem mantém um longo relacionamento que muitas vezes passa da amizade para a cumplicidade e a confidencialidade. Jarda e Lirio viajaram nos anos 1970 para a parte saariana de um Marrocos ainda controlado por militares franquistas e agora dividem boas e más memórias do aconteceu por lá, uma delas mantida em segredo até então.

Feito durante um intervalo de terror vivido em nosso país, que juntou a pandemia da covid-19 com o desgoverno de quatro anos sob as ordens do inominável, A Alegria é a Prova dos Nove se caracteriza, mais do que nunca como uma enorme pièce de résistance que a arte brasileira provou ser durante este metuendo período que terminou (ou ao menos parece ter terminado) recentemente. Serve ainda como a contundência necessária para um cinema nacional tão combalido por bilheterias que impulsionam comédias irrisórias que mais parecem uma extensão daqueles horríveis programas de humor do Multishow. Mesmo com uma distribuição independente e de pouco poder de alcance frente a grandes empresas do ramo, revela que a chama da contestação do estabilishment e da fuga da obviedade e do que é raso permanece acesa.

Comics, Movies

Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente

Longa traz o icônico personagem de Angeli tentando evitar que seu autor dê a ele o mesmo destino trágico de Rê Bordosa

Texto por Abonico Smith

Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

Um dos mais icônicos personagens das tiras de jornal assinadas por Angeli ganha agora os cinemas com a estreia de um longa-metragem derivado da série de animação em stop motion de bonecos criada e exibida pelo Canal Brasil. Por se valer da mesma equipe de profissionais (direção, produção, roteiro, dublagem), o longa-metragem, de uma hora e meia, não só vem afiado como ainda reproduz a mesma linguagem da telinha, misturando os diversos tipos do cartunista em uma espécie de angeliverso, inclusive transformando o próprio criador (mais tudo que o cerca, como o escritório e a esposa) em criatura no meio de toda a trama.

A premissa de Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente (Brasil, 2021 – Vitrine Filmes) é simples. Acionado pelos irmãos Kowalski, o velho punk de moicano e argolas no rosto acaba sabendo, através de uma página de HQ desenhada pelo seu autor, que sua vida está em risco. Afinal, está ali, na crise de ansiedade do velho cartunista, a iminência de sua morte. Sem dó nem piedade, tal qual ele fizera muito tempo atrás com outra de suas queridas criações, a Rê Bordosa. E mais: o ambiente no qual Bob habita começa a ser infestado por mini Elton Johns. Com a capacidade de se fundirem em uma enorme hidra, as pequenas e insistentes criaturas mutantes – sempre com um visual chamativo diferente – perseguem o protagonista com a única intenção de matá-lo em nome daquilo que mais despreza no mundo: o pop.

Como punk (old school) que é punk (old school) não aceita a extinção, depois de driblar os Eltinhos lá vai ele em direção ao seu criador para confrontá-lo. Então, começa um obstinado road movie em direção ao prédio de Angeli. Durante a viagem, encontra como coadjuvantes de luxo marcos da trajetória deste como o editor Toninho Mendes (que transformou Angeli em ícone dos quadrinhos alternativos através da revista Chiclete com Banana), a amiga Laerte e alguns outros personagens marcantes (Skrotinhos, Rhalah Rikota e até mesmo Rê Bordosa).

Mantendo a linha do seriado, como a explosão de referências gráficas às obras publicadas e o tom semidocumental assumido nas falas do próprio cartunista quando este se coloca como entrevistado de uma equipe de filmagem, a animação evidencia aquilo que sempre esteve muito na cara dos quadrinhos dele (e só não via quem não queria): o universo transposto por Angeli ao papel (e agora às telas) é fruto das ruas sombrias e do udigrudi punk da megalópole paulistana da primeira metade dos anos 1980. Está lá o humor sarcástico, nihilista, muitas vezes corrosivo e politicamente incorreto. Estão lá na trilha sonora bandas que faziam shows obrigatórios nos inferninhos locais da época, como Inocentes, Mercenárias e Titãs. Está lá a atmosfera pós-apocalíptica a la Mad Max que serve de cenário à mente do autor (e ao mesmo tempo morada para Cuspe e os Kowalski). Está lá a verve de tomar decisões que vão contra a corrente. E está lá, sobretudo, o velho cartunista assumindo ser Bob Cuspe uma espécie de alter-ego seu.

Mais intenso e realista do que o primeiro longa baseado na obra de Angeli (Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll, uma animação tradicional em 2D feita pelo gaúcho Otto Guerra e lançada em 2006), Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente se torna, ao mesmo tempo, uma declaração de amor e ode a um período de uma riquíssima produção cultural de uma juventude paulistana que cresceu sob a furada promessa de futuro de uma nação governada pela ditadura militar e que ainda não tinha muito pra onde ir – ou pelo menos pensar em ir. Talvez para quem é mais novo do que o auge dos personagens de Angeli essa hora e meia de animação não signifique lá muita coisa, seja tudo menos uma peça de resistência. Contudo, é exatamente disso que voltamos a precisar hoje em dia. Resistência ao padrão, ao normal, à idiotia que insiste, como os mini Elton  Johns, em reinar soberana sobre o solo do estabilishment décadas e décadas depois.

Music

História do Rock: Synth Pop 81 – Parte 1

Há quarenta anos começava a temporada mágica que tornou os sintetizadores tão populares quanto as guitarras na música pop britânica

Kraftwerk

Texto por Abonico Smith

Fotos: Divulgação/Reprodução

instrumentos reservados à vanguarda do mundo da música eletrônica, de limitado potencial comercial e mais adaptável às viagens psicodélicas da cena contracultural, os sintetizadores começaram a entrar no mundo do rock sorrateiramente no começo dos anos 1970. Como eram grandiloquentes peças não muito apropriadas para se levar aos palcos e concertos, versões mais simplificadas, portáteis e baratas começaram a ser utilizadas por membros de bandas artsy ou progressivas britânicas (Roxy Music; Pink Floyd; Emerson, Lake & Palmer). Contudo, passou a ser amplamente adotado por uma geração de jovens alemães mais interessados em expandir os limites e as possibilidades da música popular germânica (Tangerine Dream; Neu!; Cluster; Kraftwerk). Este último, quando reformulou formação e sonoridade para gravar seu quarto álbum, em 1974), começou a definir as bases de toda uma geração de adolescentes espalhados por grandes cidades inglesas e que se encontravam sob uma peculiar condição sociocultural.

Esta última safra de baby boomers (isto é, aquelas pessoas nascidas no Pós-Guerra, quando as tropas militares já haviam voltado para seus países e a economia dos principais países do mundo lutava para se recuperar de todas as perdas provocadas pelo conflito bélico ocorrido entre os anos de 1939 e 1945) cresceu bombardeada por múltiplas referências da cultura pop dos anos 1960 e sob a crença do desenvolvimento de um mundo melhor, onde a evolução da tecnologia (transporte, eletrodomésticos, comunicação) proporcionaria um cotidiano mais confortável e aprazível, tal qual se via em episódios de desenhos animados dos Flintstones e Jetsons. Por outro lado, o sistema político macarthista, que imperou nos Estados Unidos  durante quase toda a década anterior foi crucial para que os universos do cinema e da literatura promovessem a ampla popularidade de narrativas de ficção científica, nas quais um futuro tomado por viagens no tempo e espaço e luta contra monstros e alienígenas traduzia em metáforas todos os medos e anseios daquela época.

Maravilhados pelo brilhantismo distópico de escritores como Bernard Quatermass, Philip K Dick, William Burroughs e JG Ballard, turbinados pelo movimentos artísticos de vanguarda do início do século 20 como o futurismo e o dadaísmo, estimulados pelos sintetizadores subvertidos por Wendy Carlos na trilha sonora da ultraviolência do filme Laranja Mecânica e por Giorgio Moroder na revolução que “I Feel Love” fez na disco music e ainda consumidos por centenas de horas na frente da televisão para assistir aos episódios da série da BBC Doctor Who, estes jovens aspirantes a cantores e instrumentistas britânicos viram, a partir dos meados dos 1970, a conjunção ideal de fatores musicais que possibilitavam a eles levar para o mundo de versos, harmonias e melodias todas as suas paixões dos primeiros anos de vida. Tudo começou com a extrema popularidade do Kraftwerk depois de Autobahn. Seus discos tornaram-se febre nas lojas da ilha, gerando frequentes apresentações por lá e a ótima receptividade da imprensa local – que, com a tradicional verve do fino humor irônico inglês, acabou batizando como krautrock (“rock chucrute”, em português) um suposto movimento gerado em terras germânicas por bandas que não primavam lá muito bem por uma uniformidade e coesão de proposta sonora). Apaixonado por discos como Autobahn (1974), Radio-Activity (1975) e Trans-Europe Express (1977), um dos maiores astros do rock britânico da época, o anteriormente glam David Bowie, resolveu fazer imersão total em Berlim entre os anos de 1977 e 1979, gravando por lá três discos (LowLodge e Heroes), todos com a produção artística de Brian Eno, que naquela altura já havia se desligado das funções de tecladista do Roxy Music para investir em uma carreira solo mais experimentalmente eletrônica sob o rótulo cunhado por ele mesmo de ambient music.

Gary Numan

O impulso decisivo, entretanto, foi dado pela efervescência do punk rock, que sacudiu e abalou as estruturas da sociedade britânica entre os anos de 1976 e 1978. Não era apenas a simplicidade dos três acordes na guitarra ou a fúria das letras contra o estabilishment. O que pegou mesmo foi o slogan do “faça você mesmo” e a ideia de que qualquer pessoa pode tocar um instrumento. Movidos pela vontade de fazer o que se quer mesmo que não existam as condições técnicas, econômicas e tecnológicas ideais, estes jovens começaram a formar bandas apoiadas na sonoridade dos sintetizadores. Mais do que isso, também viabilizaram a gravação de suas músicas em pequenos estúdios caseiros e o lançamento destes discos através de seus próprios selos e a criação de um circuito de clubes de shows e pistas de danças do gênero que, além da selva de concreto de Londres, envolvia importantes cidades do norte inglês como Manchester, Liverpool, Leeds e Sheffield. Todas, não por acaso, grandes centros industriais, cheias de fábricas jorrando fumaça nos céus e poluição sobre as ruas. A conjunção entre a criação e  a distopia, enfim, agora estava não só ao alcance das mãos como também na ponta dos dedos de todo este pessoal. Os sintetizadores (e na cola destes as percussões eletrônicas) anunciavam a chegada do futuro ao rock’n’roll. Sem guitarras ou baterias. Ou, pelo menos, sem elas na linha de frente dos arranjos.

O enfastio com a linguagem do rock – sobretudo naquela megalômana primeira metade dos anos 1970 – e o diálogo com a cara-de-pau e a força de vontade do punk deu início aos primeiros microsselos de synth pop, como Industrial (tocado pelo pessoal do grupo Throbbing Gristle e que também tinha bandas como Cabaret Voltaire e Clock DVA no elenco) e Mute (criado pelo produtor e músico Daniel Miller, que também lançava suas composições, mas sob a alcunha de The Normal e SIlicon Teens). Tudo no inicio tinha uma cara bastante experimental, com os músicos e produtores dando vazão às suas ideias de fuga do lugar-comum e fabricando sons de todo modo possível, chegando até mesmo a gravar ruídos captados nas barulhentas ruas dos bairros londrinos para depois processá-los através das teclas e botões. Nada comerciais, estes discos de pequenas tiragens passavam longe de despertar a atenção da grande mídia. Ficavam restritos a um nicho de seguidores fieis e, no máximo, recebiam resenhas nos semanários especializados em música (NME, Melody Maker) e eram tocados no programa do DJ da BBC John Peel, cultuado por “descobrir” excelentes sons alterativos do underground e tocá-los pela primeira vez nas ondas do rádiooc

Foi o que bastou, porém, para gerar um culto. Aos poucos, mais artistas dedicados aos sintetizadores surgiram e outros selos independentes (porém com maior estrutura de distribuição) como Beggars Banquet, Factory, Rough Trade, Island e Virgin também investiram no segmento Até que veio o primeiro grande êxito nas paradas com o cantor Gary Numan em seu primeiro álbum solo após a desistência de continuar usando o nome Tubeway Army como uma banda formal. Composta apenas por duas células harmônicas (uma estrofe com dois acordes apenas e uma ponte instrumental, sem um refrão característico), “Cars” ganhou performance até no programa Top Of The Pops, que mostrava na televisão, para todo o país, a cara e a imagem dos artistas mais vendidos na semana. Naquela noite de 30 de agosto de 1979, atrás do  microfone estava um quase-androide de gestos minimalistas, terno preto como o contorno dos olhos, a face toda pintada de branco e sem qualquer expressão. Ao seu redor, os músicos do extinto Tubeway Army, com uma bateria à frente e cinco sintetizadores dispostos lateralmente. Então a porta estava aberta para o sucesso nacional de uma turma que reunia nomes como Visage, Japan, Ultravox (e o primeiro frontman John Foxx, que largou a banda em 1979 para se lançar solo), Orchestral Manoeuvres In The Dark, Human League, Heaven 17, Cabaret Voltaire, Depeche Mode, Soft Cell, New Order, Yazoo, Eurythmics, Frankie Goes To Hollywood e Pet Shop Boys.

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Music

L7 – ao vivo

Duas aulas de feminismo e resistência, performances juvenis arrebatadoras mais aquela certeza do eterno caráter transgressor do rock alternativo

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Suzi, Jennifer e Donita em Porto Alegre

Texto por Fernando Halal (Porto Alegre) e Abonico R. Smith (Curitiba)

Fotos de Fernando Halal/FHF (Porto Alegre) e Priscila Oliveira/CWB Live (Curitiba)

Um quarto de século após a histórica apresentação no Hollywood Rock, onde ofuscaram até mesmo um tal de Nirvana, as musas do L7 voltaram ao Brasil para uma disputada turnê que percorreu cinco capitais. Mas este é um cenário bem diferente daquele encontrado em 1993. O grunge perdeu vários de seus heróis para as drogas e a depressão. Chris Cornell, Layne Staley, Scott Weiland, todos deixaram uma lacuna difícil de preencher. Kurt Cobain virou mártir absoluto. E o rock, como todos sabemos, jamais teve um movimento de renovação tão forte quanto aquele.

E quanto ao L7 de hoje? Haveria ainda espaço para as notórias excentricidades do quarteto, como jogar absorventes na plateia ou mostrar a bunda para a TV em horário nobre, como na última vez delas por aqui?  Obviamente não. Até porque, no mundo pós-grunge, o politicamente incorreto é uma lembrança remota. Mas não se engane: em Porto Alegre, a noite de 4 de dezembro de 2018 teve peso e sujeira transbordantes. As atrações de abertura do Morrostock Vênus em Fúria seguiram o clima e também se destacaram pela representatividade: teve o dínamo punk Replicantes (da irrequieta vocalista Julia Barth) e, antes deles, Bloody Mary Una Chica Band, o projeto garage noise da multi-instrumentista Marianne Crestai (ex-Pullovers). Em suma, distorção girl power foi o que não faltou.

As cortinas reabriram para a atração principal. No palco, as pioneiras do movimento riot grrrl continuam velozes, lisas, empilhando riff em cima de riff – elas só estão mais sorridentes, e acredite, isso é muito bom. O grupo voltou em 2015 na sua formação mais clássica, após o hiato de quase uma década e meia. Donita Sparks (voz/guitarra), Suzi Gardner (guitarra), Jennifer Finch (voz/baixo) e Dee Plakas (bateria) seguem entregando um show vigoroso e que não evidencia qualquer marca do tempo. O repertório passeia por todas as fases, com destaque para os álbuns Bricks Are Heavy (1992) e Smell The Magic (1990), sempre com uma energia absurda. A chance de testemunhar ao vivo petardos como “Fast And Frightening”, “Pretend We’re Dead” e “Everglade” era o sonho molhado de qualquer jovem espectador da MTV dos anos 1990, e o L7 não decepcionou. Ainda houve espaço para a clássica “Shitlist”, que figurou na trilha sonora de Assassinos por Natureza (1994), além de faixas mais recentes, como “Come Back To Bitch” e “Dispatch From Mar-a-Lago”.

Definitivamente, a idade não chegou para a banda; não é todo dia que se pode testemunhar quatro mulheres na faixa dos 55 anos batendo cabeça, ajoelhando até o chão e fazendo air guitar sem soar datado ou ridículo. Sorte que o L7 nunca foi uma banda qualquer. Muito mais que um show de rock feito para tiazinhas pagarem suas contas, o que se viu foi uma celebração à vida e ao barulho, ao poder feminino, a envelhecer com desprendimento e amor próprio. Não é pouco, mesmo. (FH)

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Donita e Jennifer em Curitiba

O neoliberalismo é uma doutrina opressora, tanto social quanto economicamente. Vamos começar a sentir isso na pele logo a partir da virada do ano. Os britânicos sabem muito bem o que foi o regime mão-de-ferro da primeira ministra Margaret Thatcher entre 1979 e 1990. Já os americanos experimentaram uma versão um pouco menos severa durante os oito anos (1981-1989) em que o republicano Ronald Reagan esteve à frente da Casa Branca.

E o que isso tem a ver com o rock’n’roll? Simplesmente, muito. Afinal, não fosse a apatia geral da juventude do país naquela época talvez não houvesse surgido em torno dos principais centros universitários do país uma geração inconformada que uniu música e atitude e revolucionou o rock daquela época. Esta turma consolidou, com muito punk e hardcore na veia e uma boa dose de um heavy metal mais desacelerado, o que viria a ser chamado posteriormente pela indústria de “alternativo” e mais tarde ficaria conhecido no Brasil sob a alcunha geral de indie.

E quais eram as melhores armas para se enfrentar os tempos bicudos de opressão socioeconômica somada a pessimismo, depressão e desesperança? Um caldeirão de ativismo político repleto de elementos como cinismo, deboche, tosqueira, improvisos, quebra de paradigmas e sobretudo o eterno desafio ao estabilishment. Foi nos porões, muquifos e vans pela estrada afora por todo o país que aquela geração gerou uma série de ícones underground. Uns tornaram-se muito populares, mesmo não sabendo trabalhar direito com os percalços trazidos pela fama, como foi o caso de Nirvana e REM. Outros chegaram a flertar com o sucesso de massa por um curto intervalo de tempo. Vários outros construíram uma carreira consolidada e respeitada e até hoje, ainda na ativa ou não, conquistaram o direito definitivo de morar no coração de uma devotada legião de fãs.

O L7 se equilibra nestas duas últimas categorias. De volta aos palcos e estúdios após um longo hiato que durou de 2001 a 2015, o quarteto prepara aos poucos um novo disco – duas canções já foram apresentadas, “I Came Back To Bitch” e “Dispatch From Mar-a-Lago”, a última um tapa na cara do presidente Donald Trump tal qual faz o Batman no Robin naquele famoso meme. Enquanto isso, Donita Sparks (guitarra e voz), Suzi Gardner (guitarra e voz), Jennifer Finch (baixo e voz) e Dee Plakas (bateria e vocais) continuam espanando a poeira circulando pelos palcos alternativos dos EUA e do mundo. No final de 2018, deram uma circulada por Chile e Brasil, fazendo seis shows em sete dias, no melhor esquema “banda em início de carreira”, apenas trocando a van por aviões em virtude das grandes distâncias do lado de baixo do Equador.

Na noite de 5 de dezembro a banda passou por Curitiba, como headliner da segunda edição do festival Coisarada, realizado no Hermes Bar. E por lá mostraram que continuam com seu teen spirit imutável. O que poderia significar percalço – como gripe, doença e o peso da idade (que hoje varia dos 52 aos 58 anos) – foi tirado de letra durante quase uma hora e meia de show, com muita garra, vontade e alma rock’n’roll. A dupla Sparks-Finch, então, é um caso à parte em sua performance: não faltaram as tradicionais balançadas de cabeça, poses para fotógrafos e tiradas bem-humoradas ao microfone.

O repertório ficou dividido entre os quatro clássicos álbuns lançados entre 1990 e 1997: Smell The Magic, Hungry For Stink, The Beauty Process: Triple Platinum e Bricks Are Heavy, com ligeira tendência preferencial para o último, de onde saíram sete faixas para o set list. A sonoridade, claro, torna-se bem mais crua ao vivo. Sem muitas sutilezas, tal como um monolítico bloco de riff se pequenos solos em bases que trafega entre o punk e o heavy e a adição de melodias pegajosas mais versos curtos, diretos e sem firulas líricas. E, claro, com os tradicionais erros seguidos da parada da banda inteira para começar a mesma música de novo. A beleza da imperfeição.

O começo foi arrasador, com a ousadia de engatilhar quatro clássicos logo de cara (“Deathwish”, “Andres”, “Everglade” e “Monster”). Do meio para o final foi mais um show para fãs de carteirinha, aquelas pessoas que cantam as letras todas, que esperavam ouvir também as duas novidades na noite, que se encatam com o resgate de pérolas “lados B” dos discos. Para o bis foram reservados um cover de heróis delas (neste caso, “American Society”, do obscuro grupo punk de uma early eighties Los Angeles Eddie & The Subtitles) mais o hit “Pretend We’re Dead” (até hoje presente nos playlists de rádios brasileiras de perfil rock) e a cult “Fast And Frightening” (o verso “Got so much clit she don’t need no balls” será sempre um irresistível slogan da banda).

Terminado o show do L7 ficou a feliz sensação de que, mais uma vez, esta mesma geração põe a cara a tapas para mostrar o quão nocivo, transgressor e perigoso o rock ainda pode ser, sobretudo diante de pretensões autoritárias e opressivas de se governar o mundo e controlar a vida das outras pessoas. Sorte que bandas como estas fizeram muitos discípulos por aí. Em Curitiba, as duas atrações de abertura provaram isso: o Shorts, com seu misto de blues, noise e psicodelia; e o ruído/mm, com suas várias ambientações instrumentais que muitos chamam de post-rock. Garanto que, ao sair de um Hermes Bar lotado e plenamente satisfeito com a trinca da noite, ninguém pensou que o rock está morto ou ainda precisa ser salvo. Pelo contrário, aliás. Quem precisa ser salvo são os outros. Pessoas e gêneros musicais. (ARS)

Set list Porto Alegre e Curitiba: “Deathwish”, “Andres”, “Everglade”, “Monster”,  “Scrap”, “Fuel My Fire”. “One More Thing”, “Off The Wagon”, “I Need”, “Slide”, “Crackpot Baby”, “Must Have More”, “Drama”, “I Came Back To Bitch”, “Shove”, “Freak Magnet”, “(Right On) Thru”, “Dispatch From Mar-a-Lago” e “Shitlist”. Bis: “American Society”, “Pretend We’re Dead” e “Fast And Frightening”.

Music

Pato Fu – ao vivo

Música de Brinquedo 2 chega aos palcos com hits “nada infantis” nas vozes de Genival Lacerda, Maria Alcina, Jane & Herondy e Eduardo Dussek

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Texto por Abonico R, Smith

Foto de Priscila Oliveira (CWB Live)

Se existe uma expressão que norteou o rock nas suas duas primeiras décadas de vida ela era “se permitir”. Sem regras para serem seguidas (pelo contrário até, o que valia era quebrar tabus e questionar dogmas) e provocando a sensação de liberdade até então não vivida diante da sociedade rígida e controladora, os artistas metiam sem medo o pé na porta do preconceito. Procuravam viver tudo que havia para viver. Até que, em meados dos anos 1970, veio a explosão do superascendente mercado fonográfico e sua consequente derrocada para o corporativismo representado pelo executivo de marketing e sua obsessão em equiparar melodias a cifrões. E assim, amarrado e sufocado, viveu o meio musical até recentemente, quando a internet chegou com tudo para bagunçar o coreto.

E onde se encaixa o Pato Fu no meio disto tudo? O que ele tem a ver com toda essa aparente viagem sintetizada pela trajetória do mercado fonográfico na segunda metade do século passado? Simples. O grupo mineiro sempre teve a sábia noção de que o “se permitir” é a mola-mestra para a sobrevivência a longo prazo. Ritmos e estilos vêm e vão. O crescimento quase sempre induz a certos diálogos para a adaptação ao sistema. Portanto procurar fugir das normas, dos padrões, das convenções e do estabilishment é a grande receita para perdurar sem o risco de cair em armadilhas do tempo e do espaço. Fechar olhos e ouvidos para as interferências do meio e focar a mente para percorrer um caminho próprio, independente de tudo e todos. Foi isso que o Radiohead fez neste mesmo período: transformou-se no gigante que caminha muito bem obrigado sem a ajuda de ninguém (a ponto de dar o xeque-mate na indústria perguntando na internet “quanto vale pagar pelo meu disco?”). Foi isso o que o Pato Fu, de uma maneira semelhante, também fez aqui no Brasil.

Os Fus sempre traçaram o seu próprio caminho, indepentemente das ações da gravadora a que pertenciam até a virada deste século. Nunca se fixaram a fórmulas recentes de sucesso no mercado do rock nacional (mistura com música regional brasileira, letras metidas a engraçadas, guitarras hardcore e vocais berrados). Também estabeleceram desde o início uma bela proposta autoral, a de nunca se repetir – leia-se fazer um disco com sonoridades próximas aos anteriores. E, o que é melhor, nunca sequer manifestaram o interesse de deixar sua Belo Horizonte natal para “tentar a vida” no tal do superestimado eixo Rio-São Paulo. Por tudo isso angariaram um amplo contingente de fãs de ultrapassa qualquer barreira de tribos urbanas e não segue qualquer linha de códigos visuais e comportamentais. Por tudo isso se deram ao luxo de já há alguns anos lançar os últimos trabalhos por conta própria, pelo selo autogerido Rotomusic, sempre tendo o auxílio poderoso de ações realizadas no universo online.

Eis que em 2010 a banda chegou ao seu passo mais ousado em Música de Brinquedo. O Pato Fu criou no estúdio montado na residência da vocalista FernandaTakai e do guitarrista-produtor John Ulhoa um álbum todo especial. Por conta de todo o clima familiar motivado desde o nascimento da filha Nina, em 2004, uma ideia veio junto com todo o envolvimento de Nina com a paixão e a profissão dos pais. “E se…? O Pato Fu sempre levou a sério essa pergunta e sempre pagou pra ver. Dessa vez a pergunta foi: e se gravássemos um disco inteiro só usando instrumentos de brinquedo? Não um disco de música infantil, mas um disco de música ‘normal’ filtrada por essa sonoridade”, escreveu John no site da banda, na época, para justificar de onde veio a ideia. “No entanto, desde o Daqui Pro Futuro (álbum de 2007) começamos a flertar com sons de caixinhas de música, realejos, pianos de brinquedo… Em algumas de minhas produções recentes usei muitos desses instrumentos, muitos comprados como presente à nossa filha, mas que acabavam invariavelmente na frente de um microfone na sala de gravação do estúdio que temos em casa”. Então, miniaturas (como os micro baixo e bateria, tocados de verdade pelo então baterista Xande Tamietti e Ricardo Koctus), tecladinhos casio e bugigangas que produzem os mais diversos tipos de som e barulho acabaram reunidas para dar forma a Música de Brinquedo.

O resultado foi um sucesso. O disco foi bastante comentado e rendeu um show com sete músicos no palco mais a presença de bonecos manipulados pelo grupo Giramundo. A turnê, extensa, parecia não acabar mais. Até que veio Música de Brinquedo 2, mais um disco, mais um show nos mesmos moldes do anterior e, previsto para 2019, mais um projeto audiovisual. Novas onze músicas, sucessos pop do passado e do presente, acabaram vertidas para o formato de instrumentos mirins ou inusitados (como apitos inseridos em frangos e pintos de borracha ou tubos de PVC “afinados” em diversas notas). E mais um repertório estrambólico foi montado, com resgates de pérolas de Eduardo Dussek (“Rock da Cachorra”), Maria Alcina (“Kid Cavaquinho”), Rita Pavone (“Datemi Un Martello”), Genival Lacerda (“Severina Xique Xique”), Jane & Herondy (“Não Se Vá”) e Raimundos (“I Saw You Saying”). Letras em inglês nada infantis, como “Every Breath You Take”, do Police, ou “Private Idaho”, do B-52’s, também compõem a graça do projeto. Tudo sempre respeitando o arranjo original, apenas transpondo notas, riffs, backings e batidas para a sonoridade “de brinquedo”.

Neste novo show, os bonecos monstrinhos Ziglo e Groco voltaram aos palcos para substituir os vocais infantis do disco e protagonizar novos esquetes de diálogos entre as músicas. Engrossando o set list, destaques do primeiro Música de Brinquedo (“Live And Let Die”, “Sonífera Ilha”, “Ovelha Negra”), hits cheios de fofura do próprio grupo (“Depois”, “Uh Uh Uh La La La Ié Ié”) e ainda um dos temas instrumentais mais populares do mundo dos games (da franquia Super Marios Bros). As crianças – como o que se viu no início da noite do último sábado, 20 de novembro, no Teatro Guaíra, em Curitiba – aprovaram e já saíram dançando e cantando tudo junto com a banda. Pais e parentes que as acompanham, fãs do Pato Fu desde os primeiros álbuns lançados pela banda nos anos 1990, também seguiram os pequenos na cantoria. E todo mundo se diverte. Até na hora em que o improviso toma conta na hora dos diálogos entre a banda quando um erro acidental acontece.

O projeto Música de Brinquedo pode não ser de músicas autorais de John Ulhoa (guitarra e vocais), Ricardo Koctus (baixo e vocais) e Fernanda Takai (violão e vocais), o mesmo trio que começou a banda lá no já longínquo ano de 1992. Mas não deixa de ser uma bela mostra como a criatividade e os desafios pessoais podem andar de braços dados para quem quiser enxergar um pouquinho mais à frente da zona de conforto, do óbvio, do estabelecido. Basta não ter medo de si próprio e, sobretudo, “se permitir”.

Set list: “Palco”, “Livin’ La Vida Loca”, “Kid Cavaquinho”, “I Saw You Saying (That You Say That You Saw)”, “Rock da Cachorra”, “Datemi Un Maretllo”, “Private Idaho”, “Severina Xique Xique”, “Depois”, “Ovelha Negra”, “Uh Uh Uh La La La Ié Ié”, “Every Breath You Take” e “Sonífera Ilha”. Bis: “Super Mario Bros Theme”, “Não Se Vá (Tu T’en Vas)” e “Live And Let Die”.