Movies, Music

A-ha: True North

Introspecção do novo disco do trio é antecipada nos cinemas com muitas imagens da natureza imponente e gélida do norte norueguês

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Cinemark Brasil/Divulgação

A long, long time ago, os oceanos eram cristalinos e azuis como a voz e os olhos de Morten Harket, o frontman do A-ha, banda originária da Noruega, país nórdico dos vikings, guerreiros que tinham fama de serem brutais e ferozes mas, contraditoriamente, permitiam o divórcio às mulheres. 

Neste país das maravilhas, as estátuas e barcos naufragados estão por toda parte. A felicidade está estampada no rosto das pessoas. A aurora boreal proporciona um espetáculo surreal. Enfim, a paz reina na Noruega. Nos museus, a História se solidifica. Contudo, não se pode dizer o mesmo das calotas polares do Círculo Ártico que derretem numa velocidade assustadora. Enfim, o meio ambiente vem sendo degradado a passos de troll

Justamente essa preocupação e a conexão tão rica com a mãe natureza serviram de pretexto para que Morten Harket, Pal Waaktaar-Savoy, Magne “Mags” Furuholmen, finalmente se reunissem para lembrar suas raízes e produzir um novo álbum de inéditas, depois de um hiato de sete anos desde o lançamento de Cast In Steel

O filme A-ha: True North (Reino Unido/Noruega, 2022 – Cinemark Brasil) deixa claro, sobretudo no behind the scenes, que essa foi uma ideia de Mags, ligado a causas ambientais assim como Morten. Como ele já tinha um punhado de músicas compostas, decidiu e conseguiu reunir os colegas para a nova missão. Mas, em vez de simplesmente lançar o álbum (previsto para chegar às plataformas digitais em 25 de outubro), o trio norueguês preferiu inovar e exibir ao público em primeira mão as novas composições nas telas do cinema.

E assim nasceu o audiovisual que documenta dois dias de gravação na cidade de Bodø, ao lado da orquestra Arctic Philharmonic. A produção, no entanto, vai além de um mero registro do trabalho do grupo e das cenas de bastidores: funciona também como uma carta de amor à terra natal da banda. 

Dirigido pelo também norueguês Stian Andersen (fotógrafo oficial da última turnê do A-ha), True North foi exibido nos cinemas do mundo todo em 15 de setembro, um dia após o aniversário de 63 anos de Morten. No início, traz um dos singles do novo álbum e que serviu como uma espécie de teaser do filme. “I’m in” é canção de resiliência e empatia, serve de pano de fundo para narrar a história de uma família que perde um ente querido. E que, aliás, faz muito sentido nesse momento pandêmico (“Whatever you think you’re worth/ However much you hurt/ Whatever you have to believe/ I’m in/ Begin”). A mensagem se estende em sentido macro: nos lembra as baixas da covid e nos faz pensar sobre futuras perdas que teremos de contabilizar se medidas mais enérgicas não forem adotadas no sentido de cumprir os objetivos do desenvolvimento sustentável da ONU.

Aliás, o filme se sustenta nas canções, bastante introspectivas. Portanto, não espere nenhum riff a la “Take On Me”. As apresentações da banda são intercaladas pelos depoimentos dos três integrantes, cobertos por takes aéreos que passeiam por paisagens deslumbrantes.

Fiordes, oceanos, orcas emocionam e intimidam pela beleza imponente e gélida. O frio de Bodø é tão avassalador que parece tomar conta da sala de projeção. E para mostrar essa exuberância natural, fria e magnífica, inclusive nas cenas de estúdio, o diretor optou por tons mais sombrios – que, aliás, é das características da banda, seja em muitas das composições ou em se tratando da convivência entre os três. Para quem vive nos trópicos e não é descendente de vikings, o calor humano é algo normal. Morten, Mags e Pal, entretanto, continuam sem trocar abraços, até mesmo quando posam para a foto oficial no estúdio.

As rugas e rusgas também não ficaram de lado neste filme (assim como ficaram explícitas no documentário A-ha: The Movie, produção pré-pandêmica, lançado seis meses atrás – leia mais sobre este filme aqui). No A-ha, Mags sempre faz questão de frisar que ele e Päl são os principais compositores. De qualquer forma, o tecladista declarou que não consegue imaginar outra voz interpretando suas músicas se não a de Morten. Por sua vez, o vocalista replicou em um de seus depoimentos que enaltece as criações dos parceiros mas também compõe, sim, embora prefira lançar suas canções em trabalhos solo. Ou seja, nem o aquecimento global derrete o gelo entre os três. De qualquer forma, Morten (antes de cortar as madeixas e com barba por fazer) foi devidamente brindado com lindos planos contra-plongée ao interpretar as canções do novo álbum.

Em termos de conteúdo, True North é construído em camadas que tentam mesclar não ficção e ficção em seu arco narrativo. Uma ficção, aliás, que se tornou realidade para muitos durante a pandemia: a morte.  Em termos de forma, é um híbrido de concerto, ficção e documentário. A questão ambiental é o fio condutor dos depoimentos, quase sempre sutis e polidos, sem desbancar para o tom político. Quem leu a autobiografia de Morten Harket sabe que sua forte conexão com a natureza vem da infância. No início, ele resume seu pensamento: “poluir a natureza é como poluir o útero”. Por isso, a contradição ainda impera. Líder em energia limpa, modelo a ser seguido na proteção do meio ambiente, e até então um dos maiores patrocinadores do Fundo Amazônia (verba que foi congelada), a Noruega é um dos principais exportadores de petróleo do mundo. Ou seja, para não enterrar o planeta Terra é preciso agir.

Em relação a isso, Mags não esconde sua decepção, mas também não cria expectativas nem obriga ninguém a levantar bandeiras. Segundo o tecladista, infelizmente podemos dizer para as próximas gerações que nós falhamos. A partir de agora, quem quiser contribuir para manter o mundo mais sustentável, que faça o seu melhor. Quem não quiser, ok. Que espere sentado no sofá, assistindo TV, o derretimento da sua própria vida, da vida de seus filhos, de seus netos.

Movies

Uma Noite em Miami…

Encontro de lendas da cultura afro-americana do auge dos movimentos civis dos EUA supera as limitações de uma adaptação teatral para o cinema

Texto por Andrizy Bento

Foto: Amazon Prime/Divulgação

“This is one strange fucking night!”

Baseado na peça homônima de Kemp Powers, o longa de Regina King é um relato fictício de uma noite transformadora na vida de quatro personalidades lendárias. O que realmente se desenrolou naquele quarto de hotel, em 25 de fevereiro de 1964, apenas os protagonistas desse encontro – Sam Cooke (Leslie Odom Jr), Jim Brown (Aldis Hodge), Malcolm X (Kingsley Ben-Adir) e Cassius Clay (Eli Goree) – saberiam relatar com exatidão, visto que não existem registros se essa reunião realmente ocorreu. Mas partindo do contexto histórico, sócio-político, econômico e cultural da época, bem como das particularidades e características que definem os quatro protagonistas e seus respectivos papéis na sociedade, Uma Noite em Miami… (One Night In Miami…, EUA, 2020 – Amazon Prime) imagina quais foram as pautas discutidas naquela informal conversa entre amigos, sem soar forçado, didático ou superficial. Ainda que os eventos tenham sido ficcionalizados, o modo como a trama é conduzida torna a atmosfera crível e natural, escapando do caráter enfadonho que assombra outros longas adaptados de peças teatrais.

Dessa forma, os quatro relatam suas inquietudes, colocam na mesa seus conflitos e procuram conhecer as opiniões uns dos outros acerca dos rumos que pretendem dar às suas vidas. De maneira magistral, é como se o longa simbolizasse a véspera do rito de passagem de cada um dos quatro retratados. Seus caminhos estão prestes a mudar drástica e completamente e é visível como eles anseiam tanto pelo apoio mútuo (por vezes, expressando isso de modo tímido) como por ouvir as críticas que cada um tem a fazer sobre suas escolhas – mesmo que seja apenas para rebatê-las de maneira enérgica. Mas a produção não é só feliz ao abordar esse lado intimista dos retratados; de evocar o clima de bromance entre os quatro homens e desmitificá-los, despindo-os da aura heroica criada em torno de suas figuras. Situado no auge da segregação racial nos Estados Unidos do século 20, no momento em que o movimento pelos direitos civis (que pregava a igualdade para a comunidade afro-americana) tornava-se cada vez mais expressivo, o longa se aprofunda e reflete sobre questões ainda pertinentes à atualidade, tais quais racismo, colorismo e outros ismos, como ativismo e radicalismo.

A ousadia do pugilista Cassius Clay, a oratória do ativista Malcolm X, a energia do músico Sam Cooke e a ponderação do jogador de futebol americano Jim Brown são os traços que mais se destacam em suas personalidades e ressoam nos brilhantes diálogos imaginados por Powers (que também assume a função de roteirista do filme), mas, felizmente, a composição dos protagonistas na tela foge com sabedoria de arquétipos limitados, de retratações bidimensionais e rasteiras. Apesar da segurança com que emitem suas opiniões e de soarem autoconfiantes demais, suas conversas enveredam por caminhos que trazem à tona certa vulnerabilidade, o receio com relação à mudança e algumas mágoas e rancores acentuados. A construção dos personagens, por meio de diálogos reveladores, é notável por humanizar nomes conhecidos como lendas, com legados inquestionáveis em suas respectivas áreas de atuação. Powers e King querem que os vejamos como homens adultos ainda tentando se situar e superar suas próprias fraquezas, falhas, temores e apreensões. Tratam-se de personalidades que colidem e ao mesmo tempo se complementam.

Em um momento-chave do longa, Malcolm critica a postura de Cooke, conhecido como o rei do soul, em agradar plateias brancas com suas músicas que versam sobre o amor, denotando a falta de profundidade e posicionamento do vocalista. Posteriormente, Brown avalia sobre o quanto Sam é o único dos quatro com independência financeira, que não trabalha para brancos e conduz sua carreira do modo que bem entende. Em outra sequência, uma das mais belas do filme, Sam e Malcolm “fazem as pazes” após o ativista relatar que esteve em um dos concertos do músico e, diante de um defeito técnico com o microfone, Cooke foi obrigado a pensar com agilidade para resolver e sair daquela situação constrangedora, resolvendo cantar a capella. Mesmo sem o alcance que o microfone traria à sua voz, o artista magnetizou os presentes, atraiu-os a bater as mãos e os pés enquanto ele entoava seus versos. O ativista conta que o que o admirou (por mais que, à distância em que se encontrava sequer conseguisse ouvir o amigo cantar) foi o senso de comunidade, de esforço coletivo e o carisma e “capacidade de liderança” que fez com que a plateia se unisse a ele um momento após começarem as vaias. Em meio a potes de sorvete e provocações ora sutis ora contundentes, os quatro amigos parecem, enfim, encontrar-se prontos para seguir rumos mais audaciosos com firmeza e segurança, ainda que certos fantasmas insistam em assombrá-los. Então Cassius se converte ao islamismo e adota o nome Muhammad Ali. Jim se aposenta da NFL e se dedica a uma nova carreira, a de astro do cinema. Sam apresenta ao mundo uma canção de protesto, diferente de seu habitual repertório. E Malcolm, infelizmente, teria em breve um trágico fim, sendo assassinado dias após proferir a sentença que encerra o longa.

Diferentemente de A Voz Suprema do Blues (um dos destaques dessa temporada de premiações que também é baseado em uma peça teatral), a transposição dos palcos para as telas de Uma Noite em Miami… é bastante funcional. O texto é bem adaptado e enxuto e os atores não se excedem em nenhum momento, jamais soando acima do tom. Em uma estreia mais do que competente como cineasta, a atriz Regina King demonstra absoluto domínio da mise-en-scène e destreza ao contornar limitações. Mesmo apostando na economia de cenários (basicamente toda a narrativa se desenrola dentro do quarto de hotel de Malcolm X, após uma vitória emblemática de Clay nos ringues, quando o atleta faturou seu primeiro título mundial dos pesos-pesados) e em longos diálogos, a trama segue sem se tornar exaustiva, apostando no carisma, química e interações de quatro excelentes intérpretes.

Infelizmente, o longa não concorrerá às categorias de melhor filme e direção no Academy Awards. Ainda assim, tem três indicações e é o favorito para levar a estatueta de canção original, com a belíssima “Speak Now”, composta pelo mesmo Leslie Odom Jr que interpreta San Cooke.

>> Uma Noite em Miami… concorre no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em três categorias: ator coadjuvante, roteiro adaptado e canção original