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Jean-Luc Godard

Oito filmes do ou sobre o cineasta que se tornou sinônimo de excelência no cinema e um dos ícones da nouvelle vague francesa

Textos por Marden Machado (Cinemarden)

Fotos: Divulgação

Na manhã desta terça-feira, 13 de setembro, o mundo acordou com a notícia da morte de Jean-Luc Godard, um dos nomes que fizeram a nouvelle vague, movimento cinematográfico francês. Roteirista, diretor, editor, também foi critico de cinema antes de iniciar a carreira produzindo a sétima arte. Do lado de trás das câmeras produziu clássicos e se tornou sinônimo de excelência para os cinéfilos de todo o mundo.

Godard não estava doente, mas optou pelo suicídio assistido, prática legal na Suíça, país do qual era descendente, e realizada pela própria pessoa, com assistência de terceiros. Ele tinha 91 anos de idade e, segundo declaração de uma pessoa da família ao jornal francês Libération, encontrava-se muito exausto.

Para homenagear este ícone das telas, o Mondo Bacana seleciona oito filmes importantes. Não são todos assinados por Godard: dois são sobre ele, sua vida e carreira. Desta maneira, pode-se ter um bom panorama de quem foi este gênio do cinema, nem sempre perfeito em sua trajetória pessoal mas com certeza direto e certeiro em sua fase de maior e melhor produção, os anos 1960.

Acossado (1960)

Os franceses Claude Chabrol, Éric Rohmer, François Truffaut, Jacques Rivette e Jean-Luc Godard, antes de se tornarem cineastas, escreviam crítica cinematográfica na revista Cahiers du Cinéma. A transição do “falar sobre” para o “fazer” cinema surgiu de um desafio proposto pelo editor do periódico André Bazin. Já que sabiam tanto de cinema e não estavam satisfeitos com as produções francesas da época, eles deveriam então realizar seus próprios filmes. Todos aceitaram o desafio e nascia aí a nouvelle vague, a “nova onda”, movimento que revolucionou a maneira de contar histórias em imagens e marcou toda uma geração de novos cineastas pelo mundo. Truffaut havia realizado em 1959 seu título de estréia, Os Incompreendidos. No ano seguinte foi a vez de Godard, que dirigiu Acossado a partir de uma idéia sua que Truffaut roteirizou. A trama acompanha a personagem de Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), um ladrão parisiense fã de Humphrey Bogart. Ele se envolve com uma jovem americana, Patricia (Jean Seberg), que vende jornais na rua. Michel é procurado pela polícia e Patricia o ajuda na fuga. Acossado é um filme difícil de ser classificado. Ele é tão diferente de tudo que era feito na época que pegou a todos de surpresa. Godard procurou “quebrar” as regras estabelecidas e realizou um filme que esbanja criatividade, inovação e originalidade. Um verdadeiro marco na história do cinema mundial.

O Desprezo (1963)

É difícil escrever sobre este filme feito em 1963 por Jean-Luc Godard. Há um pouco de tudo nessa obra marcante. Mas o principal é a declaração de amor ao cinema proposta pelo diretor. De forte teor metalinguístico porém sem se esgotar nessa característica, estamos diante de um filme que discute a criação cinematográfica e a construção da imagem e seus símbolos. Baseado no romance de Alberto Moravia, acompanhamos a crise de um casal em viagem pela Itália. Camille (Brigitte Bardot) é casada com Paul (Michel Piccoli) e acredita que ele não a ama mais. Para resolver a crise e tranquilizá-la, ele, que trabalha como roteirista, aceita uma encomenda para escrever uma nova adaptação de A Odisseia, de Homero. Ao longo da trama, muitas situações e sentimentos vão se misturando. Paralelamente a isso, existem questões relativas à produção do filme dentro do filme. Godard se permite homenagear um de seus diretores favoritos, o alemão Fritz Lang, que participa no papel dele mesmo (e, na tietagem das tietagens, o próprio Godard aparece em cena como assistente de Lang!). Mais fácil do que escrever sobre O Desprezo, é vê-lo e revê-lo diversas vezes. Afinal, trata-se de uma obra ímpar e de uma riqueza narrativa e simbólica que nunca acaba. Pelo contrário, torna-se melhor a cada nova visita.

Bando à Parte (1964)

Este foi o sétimo longa-metragem dirigido pelo francês Jean-Luc Godard. Isso em um intervalo de apenas cinco anos. O que equivale a uma média de mais de um filme por ano, sem incluir aí os curtas e segmentos que ele dirigiu neste período. Muitos dizem ser este seu trabalho mais acessível. Mesmo que te sugiram ir a uma lanchonete, talvez você prefira ver um filme de Godard. O roteiro, escrito por Dolores Hitchens, tem base o romance Fool’s Gold, de sua própria autoria. A história nos apresenta dois amigos, Arthur (Claude Brasseur) e Franz (Sami Frey), que vivem de trapaças. Eles convencem uma estudante, Odile (Anna Karina, musa do diretor na época), a ajudá-los em um roubo. Godard, que ao lado de François Truffaut, escreveu na revista Cahiers du Cinéma e ajudou a criar o movimento da nouvelle vague, homenageia aqui a produção hollywoodiana de baixo orçamento. Bando à Parte foi rodado em apenas 25 dias e sem grandes pretensões. É visível a leveza e alegria do elenco, em especial a da bela Anna Karina, em estado de graça. Godard parecia querer apenas se divertir e nos diverte também. Em tempo: Tarantino é tão fã deste filme que batizou sua produtora com o nome de A Band Apart.

O Demônio das Onze Horas (1965)

Se considerarmos seus primeiros curtas, feitos a partir de 1955, passando por sua estreia em longas cinco anos depois com Acossado, Godard fecha sua primeira década de carreira com uma bem sólida filmografia composta por 13 curtas (incluindo aí os segmentos que dirigiu) e dez longas, sendo este o décimo deles. Diz a lenda que Godard iniciou as filmagens sem roteiro algum e convenceu o produtor Georges de Beauregard a bancar a produção por causa do par central à frente do elenco: Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, ambos muito queridos e populares. A base é o romance Obsession, de Lionel White, roteirizado pelo próprio diretor junto com Rémo Forlani. Tudo começa com a apresentação de Ferdinand Griffon (Belmondo), casado com uma mulher rica e vivendo confortavelmente em Paris. Apesar disso, ele se sente bastante entediado e certa noite, durante uma festa, termina saindo mais cedo e ao chegar em casa reencontra Marianne Renoir (Karina), babá de seus filhos e antiga paixão sua. Ferdinand, que ela insiste em chamar pelo nome de Pierrot, foge com Marianne e ambos passam a ser perseguidos por mafiosos que traficam armas. Em sua essência, O Demônio das Onze Horas é um road movie, um filme de estrada, no melhor estilo Bonnie e Clyde. Mas, em se tratando de Godard, é também muito mais do que isso. O cineasta sempre buscou quebrar regras narrativas em suas obras e não é diferente aqui. Mas dessa vez ele o faz em CinemaScope homenageando seus ídolos, misturando gêneros cinematográficos, quebrando a quarta parede (quando alguém olha direto para a câmera) e brincando com metalinguagem (ao utilizar a arte para falar da feitura dela). A química entre Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, então casada com o diretor, é perfeita e esbanja carisma. Em tempo: preste atenção na participação especial do cineasta americano Samuel Fuller, que responde à pergunta “o que é cinema?”, e no figurino de Marianne.

Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela (1967)

Existe o cinema como conhecemos e existe o cinema de Jean-Luc Godard. Um dos fundadores da “nova onda francesa”, Godard desenvolveu um estilo narrativo próprio já a partir de 1960, com Acossado, seu longa de estreia. Ao longo dos sete anos seguintes, ele dirigiu doze longas e alguns curtas. Uma grande e incomum produção, se levarmos em conta a quantidade e qualidade em tão pouco tempo. Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela é de um dos períodos mais criativos de sua carreira. O “dela” do título é a cidade de Paris, que tem participação ativa no desenvolvimento da história. O cineasta fala de mulheres que se prostituem para satisfazer suas necessidades consumistas. Uma sociedade perdida no culto ao supérfluo. O filme é narrado pelo próprio diretor, que aproveita para instigar o espectador, de maneira a fazê-lo pensar sobre aquilo que está sendo mostrado. Sem exagero algum, a extensa obra de Godard poderia resumida com esta frase: “duas ou três coisas que eu sei sobre cinema”.

The Rolling Stones: Sympathy For The Devil (1968)

No auge da contracultura, Jean-Luc Godard já era um nome importante do cinema mundial. Naquele ano de 1968, ele fora convidado a ir a Londres para dirigir um documentário sobre a luta pela liberação do aborto. Como houve um relaxamento na legislação britânica, o trabalho terminou sendo cancelado e Godard permaneceu na cidade por mais um tempo. Ele queria dirigir um filme sobre os Beatles ou os Rolling Stones. O quarteto de Liverpool não aceitou. Mick Jagger e Keith Richards, fãs declarados do franco-suíço, adoraram a proposta e o resultado é este The Rolling Stones: Sympathy For The Devil. Temos aqui a banda no processo de gravação do disco Beggar’s Banquet – em especial, da faixa de abertura do LP e que dá nome ao filme. Por se tratar de um filme de Godard, a já esperada desconstrução da narrativa, típico do cineasta, faz-se presente. Ao mesmo tempo, há um interessante debate sobre o papel da mídia, as bandas que influenciaram os Stones, além de uma série de temas que um artista inquieto e provocador como o diretor jamais deixaria de fora. No entanto, apesar do apoio dos líderes da banda, a produção não foi tranquila, uma vez que existiram muitos atritos com o produtor, Iain Quarrier, que alterou o final do documentário sem que Godard soubesse e este, quando descobriu a mudança na sessão de estreia, simplesmente deu-lhe um soco na boca. The Rolling Stones: Sympathy For The Devil também é um registro de inestimável valor histórico. Seja por seu diretor, pela banda em questão ou por sua abordagem. Em tempo: Godard faz uma ponta levando cigarros e bebidas para os músicos.

Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague (2009)

Dois dos maiores nomes do cinema francês nasceram quase no mesmo ano e se conheceram com vinte e poucos escrevendo críticas de filmes na redação da revista Cahiers du Cinéma. Jean-Luc Godard e François Truffaut revolucionaram, primeiro com seus textos, a maneira de se ver os filmes. Depois, ao se tornarem cineastas, a própria maneira de se fazer filmes. O documentário Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague, escrito por Antoine de Baecque, biógrafo de ambos, e dirigido por Emmanuel Laurent, traça um painel da importância dada nouvelle vaguea partir das obras de seus dois realizadores mais destacados. O filme celebra os 50 anos de lançamento de Os Incompreendidos, estreia de Truffaut na direção e apontado por muitos estudiosos como marco zero do movimento cinematográfico. Mostra também a repercussão de Acossado, primeiro longa de Godard, que teve o roteiro escrito por Truffaut. O cinema os tornou amigos e a visão de cada um sobre o cinema terminou por afastá-los. Laurent utiliza vasto material de arquivo para contar sua história e nos faz viajar por um mundo cheio de novas ideias e novos olhares. Godard e Truffaut foram os principais artífices de um novo jeito de fazer cinema e influenciaram todos os cineastas que surgiram a partir dos anos 1960. Isso não é pouco.

O Formidável (2017)

A atriz, diretora e escritora francesa Anne Wiazemsky teve uma carreira curta atuando e dirigindo. Sua produção artística é literária. Ela nasceu na Alemanha, mas se criou e se estabeleceu na França. Casada por 12 anos com Jean-Luc Godard, chegou a participar de dois filmes do cineasta e em 2015 publicou o livro autobiográfico Um Ano Depois, que tratava de seu encontro e envolvimento com Godard quando este iniciou as filmagens de A Chinesa, em 1967. E esse livro serviu de inspiração para o francês Michel Hazanavicius escrever o roteiro e dirigir O Formidável. À frente do elenco, Louis Garrel e Stacy Martin dão vida ao casal apaixonado Jean-Luc e Anne. O pano de fundo é a conturbada situação político-social que o mundo em geral (e a França em particular) enfrentava na segunda metade dos anos 1960. Acompanhamos aqui uma espécie de comédia romântica tendo como personagem principal um dos mais radicais cineastas da história do cinema. Quem conhece a filmografia, o gênio e a fama de Godard é capaz de pensar se tratar de algo, no mínimo, anacrônico. Mas funciona melhor, por exemplo, que O Artista, grande sucesso anterior de Hazanavicius. Em tempo: Godard disse que O Formidável era uma “estúpida, estúpida ideia”. O produtor, com senso de humor e de oportunidade, utilizou a frase nos cartazes do filme.