Movies

O Juízo

Thriller psicológico brasileiro desperdiça ótimos nomes em seu pequeno elenco com sérias lacunas em sua linguagem

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Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Paris Filmes/Divulgação

Nos últimos anos, o terror brasileiro tem ganhado projeção nos circuitos de festivais mundo afora. Junta-se ao coro um já estabelecido diretor, Andrucha Waddington, responsável por alguns documentários sobre artistas da MPB mais diversas colaborações com Fernanda Torres, sua esposa, e Fernanda Montenegro, sua sogra. Em O Juízo (Brasil, 2019 – Paris Filmes), estas parcerias se repetem.

O roteiro, segundo assinado por Torres em sua carreira, gira em torno de uma família que recém se mudou para a Casa Grande herdada por Augusto (Felipe Camargo). Além dele, Tereza (Carol Castro) e seu filho Marinho (Joaquim Torres Waddington) devem adaptar-se à nova casa, sem luz e isolada da cidade mais próxima. No entanto, a família é ameaçada pelos espíritos de um escravo (Criolo) e sua filha (Kênia Bárbara), assassinados por um antepassado de Augusto (por problemas temporais da narrativa não fica claro se é seu avô, constantemente citado ao longo do filme, ou alguma geração anterior). Aqui, Andrucha e Torres desenham um thriller psicológico, claramente inspirados em clássicos de Stephen King, como O Iluminado e Cemitério Maldito, porém sem sucesso.

Este é, sem dúvidas, um filme problemático. Não necessariamente em seu tema, mas em seus aspectos mais técnicos, desde a direção e o roteiro à atuação do pequeno elenco que compõe o longa. A integração desses problemas, no entanto, dificulta uma análise fragmentada destes aspectos.

Explico. O Juízo abre desenhando perguntas que jamais são respondidas. A principal delas, que está presente em todo filme, é “quem são esses personagens?”. A segunda, de igual importância, é “por que estes personagens estão se mudando para esta casa, sem luz e completamente isolada de sua aparente vida anterior?”.  Nenhuma dessas questões é satisfatoriamente solucionada, o que prejudica a imersão do espectador na história. Como vamos nos importar com o que ocorre com personagens que mal conhecemos, muito menos entendemos o porquê de estarem nessa situação? As tentativas, propostas pelo roteiro, são insuficientes, mas a direção parece estar igualmente despreocupada com a imersão do público. Há, aqui, a ausência de elementos fundamentais do cinema, uma fundação para a construção do filme.

Waddington tenta estabelecer suspense, principalmente por meio de imagens estilizadas (estilo não falta nesse filme!), porém nos distancia de seus personagens, já que não há uma conexão primordial ao funcionamento de qualquer filme (a saber: entre personagens e espectador). Ainda, não há uma definição espacial-geográfica. Como exemplo, não conhecemos pontos fundamentais da estrada que liga a cidade à casa ou até mesmo os ambientes internos desta casa. A magnitude opressora da arquitetura do Brasil escravocrata é minimizada pelo não-estabelecimento dessa magnitude. Da mesma forma, pontos importantes ao suspense não são elucidados. Surgem elementos de cena aqui e ali e o arco da loucura gradual de Augusto, o único na trama, é pouco explorado pela direção.

Outro ponto fraco é a condução do elenco que conta com nomes de peso, como Fernanda Montenegro e Lima Duarte. Ela é restrita a uma dicção novelesca – aquela que preocupa-se em verbalizar cada sílaba com perfeição, distante da língua falada – e esta destitui cada personagem de uma ferramenta importante de sua construção, a fonética particular a cada pessoa. Com exceção dos dois veteraníssimos atores citados acima, que cumprem um bom trabalho, na medida do possível, o elenco do longa sofre mais com esse imobilismo. Destacam-se Criolo e Joaquim Torres Waddington. Ambos ainda têm uma carreira curta dentro do cinema mas fazem personagens unidimensionais e monótonos. Carol Castro, que ganha uma importância cada vez maior com o andar do filme, visivelmente entrega uma Tereza profunda, porém sua atuação é amputada pelo conjunto da obra.

Ainda, como dito anteriormente, O Juízo é bastante estilizado, com planos muito bonitos e, em questão de iluminação, muito inventivos. A fotografia de Azul Serra é, por vezes, escura demais, mas manipula as sombras do longa com competência, flertando, ao mesmo tempo, com o chiaroscuro (forte contraste entre o claro e o escuro, marca registrada do cinema noir) e a iluminação com luz natural.

O Juízo é um filme de suspense que é ineficaz. Dá a impressão de que seus criadores compreendem o material – que pode ser interessante – com clareza e profundidade, porém foram incapazes de transmitir tal densidade ao produto final, que sofre com lacunas seríssimas em sua linguagem. Deixa no espectador a estranha sensação de que a parte mais importante da história está faltando.

Music

Pato Fu – ao vivo

Música de Brinquedo 2 chega aos palcos com hits “nada infantis” nas vozes de Genival Lacerda, Maria Alcina, Jane & Herondy e Eduardo Dussek

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Texto por Abonico R, Smith

Foto de Priscila Oliveira (CWB Live)

Se existe uma expressão que norteou o rock nas suas duas primeiras décadas de vida ela era “se permitir”. Sem regras para serem seguidas (pelo contrário até, o que valia era quebrar tabus e questionar dogmas) e provocando a sensação de liberdade até então não vivida diante da sociedade rígida e controladora, os artistas metiam sem medo o pé na porta do preconceito. Procuravam viver tudo que havia para viver. Até que, em meados dos anos 1970, veio a explosão do superascendente mercado fonográfico e sua consequente derrocada para o corporativismo representado pelo executivo de marketing e sua obsessão em equiparar melodias a cifrões. E assim, amarrado e sufocado, viveu o meio musical até recentemente, quando a internet chegou com tudo para bagunçar o coreto.

E onde se encaixa o Pato Fu no meio disto tudo? O que ele tem a ver com toda essa aparente viagem sintetizada pela trajetória do mercado fonográfico na segunda metade do século passado? Simples. O grupo mineiro sempre teve a sábia noção de que o “se permitir” é a mola-mestra para a sobrevivência a longo prazo. Ritmos e estilos vêm e vão. O crescimento quase sempre induz a certos diálogos para a adaptação ao sistema. Portanto procurar fugir das normas, dos padrões, das convenções e do estabilishment é a grande receita para perdurar sem o risco de cair em armadilhas do tempo e do espaço. Fechar olhos e ouvidos para as interferências do meio e focar a mente para percorrer um caminho próprio, independente de tudo e todos. Foi isso que o Radiohead fez neste mesmo período: transformou-se no gigante que caminha muito bem obrigado sem a ajuda de ninguém (a ponto de dar o xeque-mate na indústria perguntando na internet “quanto vale pagar pelo meu disco?”). Foi isso o que o Pato Fu, de uma maneira semelhante, também fez aqui no Brasil.

Os Fus sempre traçaram o seu próprio caminho, indepentemente das ações da gravadora a que pertenciam até a virada deste século. Nunca se fixaram a fórmulas recentes de sucesso no mercado do rock nacional (mistura com música regional brasileira, letras metidas a engraçadas, guitarras hardcore e vocais berrados). Também estabeleceram desde o início uma bela proposta autoral, a de nunca se repetir – leia-se fazer um disco com sonoridades próximas aos anteriores. E, o que é melhor, nunca sequer manifestaram o interesse de deixar sua Belo Horizonte natal para “tentar a vida” no tal do superestimado eixo Rio-São Paulo. Por tudo isso angariaram um amplo contingente de fãs de ultrapassa qualquer barreira de tribos urbanas e não segue qualquer linha de códigos visuais e comportamentais. Por tudo isso se deram ao luxo de já há alguns anos lançar os últimos trabalhos por conta própria, pelo selo autogerido Rotomusic, sempre tendo o auxílio poderoso de ações realizadas no universo online.

Eis que em 2010 a banda chegou ao seu passo mais ousado em Música de Brinquedo. O Pato Fu criou no estúdio montado na residência da vocalista FernandaTakai e do guitarrista-produtor John Ulhoa um álbum todo especial. Por conta de todo o clima familiar motivado desde o nascimento da filha Nina, em 2004, uma ideia veio junto com todo o envolvimento de Nina com a paixão e a profissão dos pais. “E se…? O Pato Fu sempre levou a sério essa pergunta e sempre pagou pra ver. Dessa vez a pergunta foi: e se gravássemos um disco inteiro só usando instrumentos de brinquedo? Não um disco de música infantil, mas um disco de música ‘normal’ filtrada por essa sonoridade”, escreveu John no site da banda, na época, para justificar de onde veio a ideia. “No entanto, desde o Daqui Pro Futuro (álbum de 2007) começamos a flertar com sons de caixinhas de música, realejos, pianos de brinquedo… Em algumas de minhas produções recentes usei muitos desses instrumentos, muitos comprados como presente à nossa filha, mas que acabavam invariavelmente na frente de um microfone na sala de gravação do estúdio que temos em casa”. Então, miniaturas (como os micro baixo e bateria, tocados de verdade pelo então baterista Xande Tamietti e Ricardo Koctus), tecladinhos casio e bugigangas que produzem os mais diversos tipos de som e barulho acabaram reunidas para dar forma a Música de Brinquedo.

O resultado foi um sucesso. O disco foi bastante comentado e rendeu um show com sete músicos no palco mais a presença de bonecos manipulados pelo grupo Giramundo. A turnê, extensa, parecia não acabar mais. Até que veio Música de Brinquedo 2, mais um disco, mais um show nos mesmos moldes do anterior e, previsto para 2019, mais um projeto audiovisual. Novas onze músicas, sucessos pop do passado e do presente, acabaram vertidas para o formato de instrumentos mirins ou inusitados (como apitos inseridos em frangos e pintos de borracha ou tubos de PVC “afinados” em diversas notas). E mais um repertório estrambólico foi montado, com resgates de pérolas de Eduardo Dussek (“Rock da Cachorra”), Maria Alcina (“Kid Cavaquinho”), Rita Pavone (“Datemi Un Martello”), Genival Lacerda (“Severina Xique Xique”), Jane & Herondy (“Não Se Vá”) e Raimundos (“I Saw You Saying”). Letras em inglês nada infantis, como “Every Breath You Take”, do Police, ou “Private Idaho”, do B-52’s, também compõem a graça do projeto. Tudo sempre respeitando o arranjo original, apenas transpondo notas, riffs, backings e batidas para a sonoridade “de brinquedo”.

Neste novo show, os bonecos monstrinhos Ziglo e Groco voltaram aos palcos para substituir os vocais infantis do disco e protagonizar novos esquetes de diálogos entre as músicas. Engrossando o set list, destaques do primeiro Música de Brinquedo (“Live And Let Die”, “Sonífera Ilha”, “Ovelha Negra”), hits cheios de fofura do próprio grupo (“Depois”, “Uh Uh Uh La La La Ié Ié”) e ainda um dos temas instrumentais mais populares do mundo dos games (da franquia Super Marios Bros). As crianças – como o que se viu no início da noite do último sábado, 20 de novembro, no Teatro Guaíra, em Curitiba – aprovaram e já saíram dançando e cantando tudo junto com a banda. Pais e parentes que as acompanham, fãs do Pato Fu desde os primeiros álbuns lançados pela banda nos anos 1990, também seguiram os pequenos na cantoria. E todo mundo se diverte. Até na hora em que o improviso toma conta na hora dos diálogos entre a banda quando um erro acidental acontece.

O projeto Música de Brinquedo pode não ser de músicas autorais de John Ulhoa (guitarra e vocais), Ricardo Koctus (baixo e vocais) e Fernanda Takai (violão e vocais), o mesmo trio que começou a banda lá no já longínquo ano de 1992. Mas não deixa de ser uma bela mostra como a criatividade e os desafios pessoais podem andar de braços dados para quem quiser enxergar um pouquinho mais à frente da zona de conforto, do óbvio, do estabelecido. Basta não ter medo de si próprio e, sobretudo, “se permitir”.

Set list: “Palco”, “Livin’ La Vida Loca”, “Kid Cavaquinho”, “I Saw You Saying (That You Say That You Saw)”, “Rock da Cachorra”, “Datemi Un Maretllo”, “Private Idaho”, “Severina Xique Xique”, “Depois”, “Ovelha Negra”, “Uh Uh Uh La La La Ié Ié”, “Every Breath You Take” e “Sonífera Ilha”. Bis: “Super Mario Bros Theme”, “Não Se Vá (Tu T’en Vas)” e “Live And Let Die”.

Music

Against Me! – ao vivo

Extenso set list e um largo sorriso estampado no rosto de Laura Jane Grace marcam a estreia da banda em solo brasileiro

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Texto por Abonico R. Smith

Foto de iaskara

Ela não entendia muita coisa do que a plateia gritava em português ao final de quase todas as músicas que a banda tocava, mas captou a mensagem e também mandou o seu recado, ao microfone, contra a nova onda de fascismo que varre o mundo, em especial o Brasil nos dias atuais. Foi o que bastou para o salão de shows do Jokers, lotado, explodir em êxtase já quase no final do show. Era a coroação de uma noite de glórias, tão esperada havia anos por muitos fãs brasileiros.

Naquela noite de 19 de outubro de 2018 estreavam, tardiamente, Laura Jane Grace e seu Against Me! em solo brasileiro. Depois de mais de vinte anos da formação da banda e do lançamento de sete álbuns, o quarteto, enfim, realizava em Curitiba seu primeiro show no país, abrindo uma turnê brasileira que incluiria passagens em outras duas capitais (São Paulo e Natal) e marcava também o lançamento da edição nacional de sua autobiografia Tranny – Confissões da Anarquista Mais Infame e Vendida do Punk Rock. E claro que tudo isso seria uma noite bastante politizada.

O Against Me! transformou-se em sinônimo de banda política com o passar dessas duas últimas décadas. Não a política partidária ou econômica. Mas a política das coisas pequenas e cotidianas, do comportamento, da sexualidade, do rock’n’roll, do contestamento ao que já está estabelecido. Por isso, Laura Jane Grace é tão reverenciada. Seja pelas letras repletas de sarcasmo e ironia, incluindo um certo tom jocoso de autodepreciação – que sempre funciona para captar a identificação do público. Seja pelas melodias pegajosas, que ajudam a grudar as suas letras no cérebro e fazem todo mundo cantar junto com ela a hora que for. Seja pela questão de gênero, que envolve uma recente transição sexual. Seja pelas atitudes fora dos palcos, que colocam-na como uma das grandes expoentes da música LGBT mundial. Por isso, a turma do #EleNão entoava gritos contra um certo capitão. Aquela noite também era de protesto.

A celebração ficou por contato do extenso repertório, elaborada especialmente pela banda para sanar a sua ausência até então dos palcos brasileiros. Talvez por isso tenha havido a opção de resgatar, de modo equilibrado, as três distintas fases do Against Me!. Das 26 músicas pinçadas para o set list da noite no Jokers, quase metade representavam os três primeiros álbuns, lançados entre 2002 e 2005, quando a banda iniciava seus passos no circuito do punk rock americano com canções mais juvenis, urgentes, diretas e barulhentas. Da fase que representou o período de contrato por uma grande gravadora (com dois álbuns produzidos por Butch Vig entre 2007 e 2010, singles nas paradas de sucesso, números musicais em cultuados programas de entrevistas e humor na TV, presença no topo das listas dos melhores discos do ano), um belo recheio de sete músicas. Da fase em que Tom Gabel deixou de existir para dar lugar a Laura Jane Grace (mais dois discos entre 2014 e 2016, sendo o primeiro o essencial Transgender Dysphoria Blues, no qual o conceito é justamente a disforia de identidade de gênero da vocalista), outras sete. Então fã nenhum pode sair reclamando. Teve para todos os gostos, teve para todas as fases.

Um show do quarteto também significa que as músicas falam por elas mesmas. Daí a opção de Laura por falar bem pouco entre as canções. Era uma pancadaria atrás da outra. Quase sem interrupção, com uma banda afiadíssima, contando com o esperado retorno do baixista Andrew Seward, que passou os últimos cinco anos tocando outros negócios, e o novo baterista Atom Willard, nome experiente do rock alternativo, que encaixou-se como uma luva na engrenagem motora do ritmo do Against Me!.

Então, por quase duas horas, a plateia curitibana foi levada à loucura. Do início arrasador (com a dobradinha “FuckMyLife666” e “Transgender Dysphoria Blues”) ao final do set, com uma série de clássicos enfileirados (“I Was A Teenage Antichrist”, “The Ocean”, “Dead Friend”, “333”, “True Trans Soul Rebel” e “Black Me Out”) foi um festival de punhos erguidos no ar, coro em uníssono durante todas as letras e stage divings celebradíssimos – em especial o de uma garota de apenas dez anos de idade, fanática pela banda e levada pelos pais também fãs assumidos. Ainda deu tempo para um bis longo fuçar o repertório da primeira fase do grupo e entregar canções não tão óbvias como um presente especial para quem esperou por tanto tempo.

Na letra de “True Trans Soul Rebel”, Laura pergunta se Deus abençoaria seu coração transexual. Deus é amor, alegria e energia. E ele, com certeza, estava presente junto aquelas pessoas que se espremiam cantando tudo em alto e bom som no Jokers. Um belo e largo sorriso, estampado em seu rosto frequentemente coberto pelos longos cabelos, entregava o estado de espírito da vocalista. Uma verdadeira alma trans rebelde. Rebelde e muito feliz no Brasil.

Set list: “FuckMyLife666”, “Transgender Dysphoria Blues”, “Pints Of Guinness Make You Strong”, “Cliché Guevara”, “Rice And Bread”, “Pretty Girls (The Mover)”, “Miami”, “From Her Lips To God’s Ears (The Energizer)”, “New Wave”, “Piss And Vinegar”, “Ache With Me”, “Haunting, Haunted, Haunts”, “Walking Is Still Honest”, “Those Anarcho Punks Are Mysterious…”, “Animal”, “Americans Abroad”, “I Was A Teenage Antichrist”, “The Ocean”, “Dead Friend”, “333”, “True Trans Soul Rebel” e “Black Me Out”. Bis: “Joy”, “Baby, I’m An Antichrist!”, “We Laugh At Danger (And Break All The Rules)” e “Sink, Florida, Sink”.