Movies

Estados Unidos vs Billie Holiday

Perseguição à musa do jazz por causa de hino de protesto ao racismo traz grande atuação de Andra Day mas se perde na edição e no roteiro

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Hulu/Amazon Prime/Divulgação

Billie Holiday é uma das vozes mais marcantes da música mundial. Suas interpretações cheias de emoções são lembradas até hoje por diversas gerações. Especialmente “Strange Fruit” que  virou um hino de resistência, apesar da repressão sofrida inicialmente. Este é o cenário de Estados Unidos vs Billie Holiday (The United States vs. Billie Holiday, EUA, 2020 – Hulu/Amazon Prime), a cinebiografia da musa do jazz

Dirigido por Lee Daniels, o filme recapitula a longa perseguição do governo americano à cantora. Lady Day (apelido que ganhou de seu amigo e saxofonista) tinha problemas com drogas, o que aumentou a tensão com as autoridades. A canção “Strange Fruit” tornou-se a gota d’água. Narrando o linchamento de negros, a música-protesto foi abraçada pelo comunidade afro-americana e rejeitada pela polícia e pelo FBI.

Cinebiografias são difíceis de construir. The United States vs. Billie Holiday escolhe focar em um período da vida de cantora, mesmo que no final resolva se alongar. No filme, Billie (Andra Day) já é uma estrela que enfrenta problemas com a fama, amores e drogas. Os narcóticos, inclusive, são sua porta de entrada para o tribunal mais de uma vez. 

Daniels constrói seu filme ao redor de um romance especulado, mas jamais confirmado, entre Lady Day e o agente Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes), da divisão de narcóticos. Mesmo após as intenções do policial serem reveladas, ele continua andando e viajando com Billie e seus músicos pelos EUA. O jogo de amor e poder cansa e tira o foco do maior vilão do filme: o racismo. 

As dúvidas e as inseguranças do personagem de Fletcher são interessantes. O momento em que ele se toca que está sendo instrumento do sistema que aprisiona negros injustamente é forte. Porém, é rápido demais. Quem pensa em ver o filme esperando algo mais voltado aos tribunais está enganado. Apesar do título, Estados Unidos vs. Billie Holiday são vários retalhos de Lady Day, que envolvem algumas idas ao tribunal. 

Billie teve uma vida difícil, precisou prostituir-se na infância, foi vítima do vício em drogas e de homens abusivos. Andra Day soube retratar essa personagem tão complexa de forma magistral. Sua atuação é de longe o ponto alto do filme. Apesar da grande entrega, o roteiro e a edição prejudicam a artista em seu primeiro papel no cinema. São cansativas as constantes adesões e sumiços de personagens e as súbitas mudanças de temporalidade cortam o clima.

A história é pesada, triste, ao final o alívio é iminente. Billie sofreu, amou, cantou e encantou. Uma figura tão icônica merecia uma cinebiografia à sua altura. Esta aqui é mediana, por vezes tediosa. A grande estrela do jazz ficou miúda na tela, engolida por um roteiro que não soube captar seu magnetismo frenético. 

>> Estados Unidos vs Billie Holiday concorre no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em uma categoria: atriz

Music

Odair José e Thunderbird – ao vivo

Ao lado do ex-VJ da MTV Brasil, cantor resgata na Virada Cultural de SP disco que ficou marcado como maldito durante a ditadura militar

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Texto e foto por Fábio Soares

Mais uma vez, um dos mais interessantes palcos da Virada Cultural é aquele dedicado à execução, na íntegra, de clássicos álbuns brasileiros. Às nove da noite do último dia 18 de maio, foi a vez de Odair José tocar sua ópera-rock lancada em 1977, O Filho de José e Maria, clássico “maldito” do septuagenário cantor e compositor que tardiamente alcançou o status de cult. Antes tarde do que nunca.

Esqueça a pecha de “brega” que Odair carregou por quase toda a carreira. Seu show é de um bom gosto e elegância acima da média com um excelente quinteto de asseclas – naipe de metais incluso. E para contar a história de O Filho de José e Maria, a apresentação no palco Barão de Limeira teve algo a mais: a participação de Thunderbird, eterno ex-VJ da MTV Brasil com o qual Odair cultiva uma recente e sólida amizade.

A belíssima “O Casamento” abriu os trabalhos com Thunder incorporando a fúria de um pastor-ditador que questiona um casal que carrega a culpa por estar esperando um filho antes da consumação do matrimônio. Qualquer crítica à Bíblia não é mera coincidência e entende-se aí o porquê do disco ter sido execrado pela censura na época. Meter o dedo em feridas religiosas, prostituição, consumo de drogas e pais separados em plena ditadura militar foi, no mínimo, um ato de coragem.

Resignado, discreto mas muito concentrado, Odair conduzia o espetáculo com a calma e parcimônia de um veterano meio-campista que cola a bola em seu pé, aguardando o momento exato em deixar o companheiro na cara do gol. Executou “Não Me Venda Grilos” com o carinho de quem carrega um filho no colo e o trecho da canção “viver já pesa muitos quilos” já não lhe pesa tanto. A letra de “Só Pra Mim, Pra Mais Ninguém” trouxe o medo de levar um chifre, da possessão, do ciúme doentio. Não “aprovável” mas “entendível” na cabeça de um retirante de 35 anos de idade, inexperiente e frequentador de bordeis no Rio 1970.

Polaróide à parte O Filho de José e Maria é um dos discos mais injustiçados da história da MPB. Injustiçado como o seu criador. Injustiçado por uma sociedade preconceituosa do eixo Rio-São Paulo que julgou Odair somente pela sua aparência, rotulando-o pura e simplesmente como brega em detrimento ao seu enorme talento.

“Que loucura” encerrou o espetáculo com uma audiência ensandecida e implorando por um bis que não viria. Leonino e elegante, agradeceu timidamente à plateia. Não foi efusivo na despedida (ainda bem!) e soltou um curto “até o próximo show” aos presentes. A impressão que ficou foi a de que Odair ainda sente muita raiva e tristeza por ter sido escanteado pela mídia há quarenta e tantos anos. Contudo, sabe também que a vida anda para frente. Setenta anos de idade com um público fiel. Setenta anos de idade com uma obra gigantesca. Setenta anos de idade com muita lenha pra queimar (ainda bem!).

Até o próximo show!