Em noite de aplausos não fáceis e ausência de vários hits, dupla solidifica em SP a aura de integridade em três décadas de carreira
Brian Molko
Texto por Fabio Soares (com colaboração de Abonico Smith)
Fotos: Ricardo Matsuka/Mercury/Divulgação
Vinte e dois anos de idade possuía Brian Molko ao fundar o Placebo em 1994. Houve um preço a se pagar por capitanear este mastodonte alternativo por tanto tempo: abuso de álcool e drogas, exposição de sua bissexualidade, oposição às redes sociais e o recente processo movido por Giorgia Meloni, primeira-ministra italiana, a quem o vocalista chamou de “fascista” numa apresentação em Turim.
À parte das polêmicas, o Placebo 2024 segue sua trajetória com seu núcleo duro reduzido a Molko e seu fiel escudeiro (e conhecido de infância) Stefan Olsdal. De volta ao Brasil após dez anos, trouxe na bagagem a turnê de Never Let Me Go, álbum concebido durante a pandemia mas que foi finalizado somente em 2022.
“Todos os álbuns do Placebo são lapidados ao máximo e este não seria diferente”, afirmou Molko em recente entrevista. Sendo assim, quem se dirigiu ao Espaço Unimed (que já foi “das Américas”) no último domingo, 17 de março, redondamente enganou-se se esperava ouvir uma enxurrada de hits. Ela não veio. E o que se viu foi uma onda de aplausos não fáceis.
Como já esperado e praticado ao longo da atual turnê, uma mensagem em inglês nos telões laterais do palco pediu para que o público desligasse seus aparelhos celulares durante a apresentação. Aliado a este fato, um vídeo com a voz de Brian Molko repetiu o texto exibido. Por fim, logo antes do início, uma mensagem sonora em português reforçou a importância do público assistir a uma apresentação musical sem a tela de um aparelhinho manual à sua frente.
Funcionou? Sim! Nos primeiros acordes de “Forever Chemicals”, canção que também abre o mais recente álbum de estúdio, quase ninguém ousou sacar de seu telemóvel para filmar o início do show. A dupla Molko-Olsdal surgiu acompanhada por quatro músicos de apoio e a primeira faixa foi saudada com entusiasmo pela audiência, que não chegou a lotar a casa. “Beautiful James”, talvez o único hit radiofônico (não aqui no Brasil, claro!) do último disco, fez o público entoar a plenos pulmões o verso “Everybody lies/ One hundred times a day/ The silence in your hard eyes/ Is far too rare to give away”.
Na sequência, Stefan fez às vezes de maestro, conduzindo o público a uma peculiar batida de palmas que antecedeu a indefectível introdução de “Scene Of The Crime”, estupenda faixa de Loud Like Love, grande álbum de 2013. A visceral interpretação de Brian à canção seria o mote de toda a apresentação. Antes da quarta faixa, “Hugz”, também de Never Let Me Go, o momento descontração da noite: o vocalista informou a todos sobre o aniversário do baterista e em bom português soltou a famosa frase “uma salva de palmas para ele”.
A ausência de celulares na plateia deu à belíssima “Happy Birthday In The Sky” o tom de dramaticidade e depressão que a letra sugere. Já em “Bionic”, resgatada lá do homônimo álbum de estreia de 1996, apareceu o primeiro momento catártico por parte da plateia ao entoar o refrão “Harder! Faster! Forever after!”, sobre anos 1990 que não voltam mais. E está tudo bem em não voltarem também.
A execução da dobradinha “Twin Demons” e “Surrounded By Spies” promoveu o único momento “debandada” de alguns presentes, rumo aos banheiros ou aos bares do local. Dissonância esta que foi quebrada com os incidentais acordes de “Soulmates”, b-side de single e faixa integrante da compilação dupla A Place For Us To Dream, lançada em 2016. Apostaria um braço que não há um único fã da banda sobre a face deste planeta que não se arrepia ao menos uma vez ao ouvir o verso “Dry your eyes/ Soulmate dry your eyes/ Cause soulmates never die”.
Stefan Olsdal
A cama eletrônica de “Sad White Reggae”, aliada ao piano de Stefan Olsdal, confirma a tese de que Brian Molko é um compositor fora do comum. Fato este que se seguiu em “Try Better Next Time”, talvez a melhor faixa lapidada para o último trabalho. Olsdal permaneceu ao piano para o mais emocionante momento da noite. “Too Many Friends” (outra de Loud Like Love) arrancou lágrimas de pessoas à minha frente e ao meu lado. E não negarei: arrancou lágrimas minhas também!
Mas cadê as guitarras pesadas? Cadê o típico rock placebense por aqui? Ele viria com “For What It’s Worth” (de Battle for the Sun, de 2009) e a espetacular “Slave To The Wage” (de Vlack Market Music, de 2000). Momento retrô para uma geração que tinha a finada MTV como norte. Curiosidade: a última ainda conta com um sample do Pavement!
Na reta final, “The Bitter End” (de Sleeping With Ghosts, de 2003) causou catarse nas primeiras filas em frente ao palco. Momento em que um mané sacou de seu celular e tentou filmá-la na íntegra. Como resposta, tomou um dedo médio em riste de Molko em sua direção. Bem feito! Então, a maravilhosa “Infra-Red” (de Meds, de 2006) fechou a primeira parte da apresentação.
Para o bis, nada de obviedades escaladas para somente agradar aos fãs. O habitual retorno com a cover de “Shout”, do Tears For Fears, ficou de fora por aqui. “Taste In Men” (mais uma de Black Market Music), a lentíssima “Fix Yourself” (do mais recente disco) e a hipnótica versão de “Running Up The Hill (A Deal With God)” (gravada para o EP Covers, de 2003; a original, de Kate Bush, foi ressuscitada pela série Stranger Things em sua quarta temporada e teve jogada à estratosfera sua popularidade) deram números finais a uma noite que, por si só, já havia se tornado histórica. Sem celulares, sem mais de duas dezenas de hits (esqueça “Pure Morning”, “Every You, Every Me”, “You Don’t Care About Us”, “Meds”, “Come Home”, “”Bruise Pristine”, “Bright Lights”, “Loud Like Love”, “Nancy Boy”, “Special Needs”, “Special K”, “36 Degrees”, “This Picture”, “English Summer Rain”, “Battle For The Sun”, “Ashtray Heart”, “The Never-Ending Why”, “Because I Want You”, “Black-Eyed”, “Teenage Angst”, “Jesus Son”) e quase toda a última obra de estúdio recriada na íntegra. Isto reforçou a certeza de que Brian Molko é o peculiar anti-herói de uma geração que cresceu trazendo a música como melhor amiga mas que hoje pena com problemas psicológicos e a pressão das redes sociais.
Foi uma boa apresentação? Foi e pacas! Afinal, a competência de uma história ininterrupta de trinta anos deve (e sempre deverá ser) exaltada em um showzaço como este.
Set list: “Forever Chemicals”, “Beautiful James”, “Scene Of The Crime”, “Hugz”, “Happy Birthday In The Sky”, “Bionic”, “Twin Demons”, “Surrounded By Spies”, “Soulmates”, “Sad White Reggae”, “Try Better Next Time”, “Too Many Friends”, “Went Missing”, “Exit Wounds”, “For What It’s Worth”, “Slave To The Wage”, “Song To Say Goodbye”, “The Bitter End” e “Infra-Red”. Bis: “Taste In Men”, “Fix Yourself” e ” Running Up That Hill (A Deal With God)”.