Movies

Judas e o Messias Negro

História dos últimos momentos de vida de líder revolucionário encerra trilogia fortemente realista e historiográfica do povo negro dos EUA

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Warner/Divulgação

Os dois últimos longa-metragens de Spike Lee sugerem uma abordagem fortemente realista, até mesmo historiográfica, de pontos-chave da história do povo negro nos Estados Unidos. Enquanto Infiltrado na Klan desvenda o plano de Ron Stallworth ao infiltrar-se na racista Ku Klux Klan, Destacamento Blood explora o sangrento passado da Guerra do Vietnã, cujas vidas perdidas eram majoritariamente negras.

Para fechar a conta, Judas e o Messias Negro (Judas and the Black Messiah, EUA, 2020 – Warner) mergulha nos últimos momentos de vida do pantera negra Fred Hampton Jr, bem como na tortuosa traição cometida por William O’Neal, infiltrado no partido pelo FBI e corresponsável por seu assassinato. O interessante, no entanto, é que Spike Lee não está, de modo algum, envolvido neste último. Pelo contrário, a obra é dirigida por Shaka King e produzida por Ryan Coogler (o diretor de Pantera Negra).

A proposta de encarar Judas como o “sucessor espiritual” e, portanto, terceira peça dessa trilogia com as obras de Lee surge, naturalmente, a partir da clara inspiração de King no cinema daquele. A abordagem acima chamada de “historiográfica”, que abre e encerra seu discurso com imagens potentes de uma realidade completamente factual ao mesmo tempo que escondida, determina o tom deste longa-metragem.

A sombria trama decide focar em O’Neal (LaKeith Stanfield) e sua psique enquanto trai o líder revolucionário (Daniel Kaluuya) em quem, conforme se aproxima, passa a acreditar. Assim, o filme é capaz de escapar de um tratamento panfletário de seu tema político – a saber, o Partido dos Panteras Negras, associação socialista americana que defendia a revolução armada contra a violência policial e racismo estrutural na sociedade estadunidense – ao aprofundar-se no conflito interno imensurável do traidor de uma causa que lhe é cara. 

Ao não reduzi-lo a um comentário histórico-político externo a si mesmo, Shaka King consegue utilizar desse aparato discursivo para significar melhor sua narrativa. O diretor é capaz de explorar não somente a relação entre Hampton e O’Neal, mas no conjunto de relações que surge com diversas personagens presentes no Partido dos Panteras Negras. Dessa forma, é uma ótima escolha que um filme cuja mensagem de sobreposição do indivíduo para o coletivo (com o impactante slogan “você pode matar um revolucionário, mas não pode matar a revolução”) não se ampare somente na dinâmica entre os protagonistas. Há uma preocupação com a dimensionalidade de cada personagem, criando uma rede de relações íntimas e potentes que elevam a narrativa e amplificam a mensagem política inerente à trama.

Ainda, King demonstra uma competente manipulação das tensões trabalhadas no filme, amplificadas pela ótima trilha de Craig Harris e do veterano Mark Isham, que experimentam com a cozinha do jazz (isto é, baixo e bateria) isolada. Assim, o peso de elementos melódicos é gritante – uma dinâmica que torna capaz o impacto da utilização de “Symbiosis”, de Bill Evans, como motif para o romance entre Hampton e sua esposa, Deborah (interpretada pela ótima Dominique Fishback).

Judas e o Messias Negro é, em última análise, um filme muito tenso, porém capaz de atenuar a agonia por meio do balanço oferecido por seu roteiro. Drama, romance e amizade são equilibrados em uma história política em conteúdo e forma. A visibilidade de figuras oprimidas, como esse líder político assassinado aos 21 anos, é pauta em crescimento no cinema hollywoodiano. Com King, Coogler e, claro, Lee assumindo as rédeas, pode-se esperar bons filmes como esse.

>> Judas e o Messias Negro concorre no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em seis categorias: filme, ator coadjuvante (duas vezes), roteiro original, fotografia e canção original

Music

Belgrado – ao vivo

Banda de Barcelona com raízes no pós-punk promove interação comovente com plateia paulistana

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Texto e foto por Fábio Soares

É muito fácil cair na tentação de comparar o Belgrado com o Vive La Fête, já que o binacional quarteto (composto pelos poloneses Patrycja Proniewska e Jonathan Sirit e os venezuelanos Fernando Márquez e Renzo Narváez) radicado em Barcelona, carrega pesado, em certos momentos, nas pitadas eletropop tão presentes no repertório do duo belga. Porém, a sonoridade da banda não se restringe a qualquer redoma de estética clubber, ao que o segundo se propõe. O Belgrado bebe da fonte do pós-punk e não nega, sobretudo em seu segundo trabalho Siglo XXI, lançado em 2013.

O Centro Cultural São Paulo ainda é uma das melhores opções para assistir a shows na capital paulista mas ainda padece de uma debilidade histórica: quem vê as apresentações da plateia superior da pequena arena sofre com a baixa qualidade e má equalização do som oferecido. Durante os  sessenta minutos da apresentação do Belgrado na última noite de 23 de maio, a voz de Patrycja atingiu patamares ininteligíveis. Sua presença de palco, porém, compensava em parte ao incômodo técnico. As ultradançantes “Dalej” e “Wiatr”, do mais recente álbum Obraz, evidenciaram o entrosamento dos músicos, com destaque para a performance do baterista Jonathan, alterando, por mais de uma vez, a condução do instrumento.

Reservadas ao bis ficaram as duas melhores faixas de Siglo XXI. “Automatyczny Swift” remetia ao Gang Of Four em sua melhor fase. Já a arrasa-quarteirão “Jescze Raz” fez o CCSP tremer com a plateia do piso inferior literalmente invadindo a área reservada aos músicos. Foi comovente ver a bela vocalista pulando e cantando em meio aos fãs, concebendo um ar de apoteose a uma apresentação irregular (mas que foi longe de ser decepcionante).

Deixando aquele gostinho de quero mais, o Belgrado se despediu de São Paulo com uma base sólida de fãs. Fica agora a torcida para que retornem em melhores condições técnicas, justamente porque este combo multinacional ainda tem muito a nos oferecer.