Music

Oficina de Música de Curitiba – ao vivo

Homenagem a Paulo Leminski e shows com Fernanda Takai, Maria Alcina, Criolo, Zélia Duncan, Edgard Scandurra, Relespública e Jovem Dionísio

Criolo

Textos por Abonico Smith, Diego Scremin e Janaina Monteiro

Fotos de Cido Marques/FCC (João Egashira + Fernanda Takai, Zélia Duncan + Estrela Leminski + Téo Ruiz, Edgard Scandurra + Relespública, Banda Sinfônica) , José Fernando Ogura/SMS (Jovem Dionísio) e Abonico Smith (Criolo)

Onze dias de incontáveis combinações de 12 notas na capital paranaense. Foram, ao todo, 120 cursos e 180 eventos (mais de uma centena com ingressos gratuitos) promovidos nesta última edição, a 41ª, da Oficina de Música de Curitiba. Entre os dias 25 de janeiro e 4 de fevereiro, números oficiais atestam que mais de 50 mil pessoas (sendo 2 mil só de alunos vindos de todos os lados do Brasil e também do exterior) fizeram parte da Oficina.

O Mondo Bacana esteve presente em sete dos concertos realizados no Teatro Guaíra e conta um pouquinho de como foi cada uma destas noites especiais.

Orquestra à Base de Cordas + Fernanda Takai e Sons Nikkei

Dentre os múltiplos projetos tocados ao mesmo tempo pela cantora e compositora do Pato Fu está o Sons Nikkei, grupo formado por músicos de Curitiba com o objetivo de pesquisar, tocar e espalhar a música de origem japonesa, seja ela do passado ou presente. Além dela e de João Egashira (cabeça da formação e diretor de toda a Oficina), estão outros músicos da capital paranaense. Flauta, shamisen e taikô são instrumentos que, ao se somarem às cordas ocidentais da Orquestra à Base de Cordas do Conservatório de MPB de Curitiba, compuseram um belo mix entre sonoridades orientais e um pequeno resumo da carreira da cantora. No repertório de canções gravadas por Fernanda, destaque para a estreia solo onde homenageava Nara Leão (“Ta-Hi”; “Trevo de Quatro Folhas”) e o disco mais recente (“Love Song”, parceria bilíngua do marido John Ulhoa com a ex-vocalista do Pizzicato Five Mari Nomiya; “Não Esqueça”, um afetuoso recado de pai para filha deixado por Nico Nicolaiewsky, músico gaúcho do duo Tangos & Tangédias) e um inusitado gran finale com a primeira reprodução já feita fora do Pato Fu de “Made In Japan”, prova de que isso não somente é possível como também a troca de timbragens eletrônicas por algo bem mais acústico. Na volta para o bis, a grande homenagem à pedra fundamental da música brasileira contemporânea, o marco zero fonográfico da bossa chamado “Chega de Saudade”. (AS)

Set list: “Oblivion”, “Ta-hi”, “O Ritmo da Chuva”, “Trevo de Quatro Folhas”, “Não Esqueça”, “A Paz”, “Arashi No Osoroshisa”, “Estúdio Nº 1/Melodia Sentimental/O Trenzinho do Caipira”, “The Path of the Wind/Summer”, “Tsugaru Yosare Bushi”, “Miagete Goran Yoru no Hoshi wo”, “Love Song”, “Menino Bonito”, “Odeon” e “Made In Japan”. Bis: “Chega de Saudade”.

João Egashira + Fernanda Takai

Orquestra à Base de Sopros + Zélia Duncan + Estrela Leminski + Téo Ruiz

Dentre as várias atividades exercidas por Paulo Leminski as mais celebradas são de poeta e escritor. Só que ele também deu valorosa colaboração para a música paranaense e curitibana. Instrumentista autodidata e letrista parceiro de muita gente boa, da cidade e de outros estados, que tocava pela capital paranaense nos anos 1970 e 1980, ele teve canções gravadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Ney Matogrosso, A Cor do Som, Guilherme Arantes, Itamar Assumpção, Zelia Duncan, Arnaldo Antunes e tantos outros nomes de peso da MPB. Por isso seu nome foi o grande homenageado desta 41ª edição da Oficina de Música. Um dos concertos realizados em memória de Paulo e suas obras recebeu no palco do Guairão no sábado 27 de janeiro a Orquestra à Base de Sopro do Conservatório de MPB local mais uma trinca especial de intérpretes: Estrela Leminski, seu parceiro de vida e melodias Téo Ruiz e mais Zélia Duncan. Revezando combinações ao microfone, a trinca mandou transformada em melodias toda a elegância verborrágica do pai de Estrela, como na trinca “Dor Elegante”, “Verdura” e “Sinais de Haikais”, programada ainda para a metade inicial. Esta, por sua vez, revelou-se uma boa mestre de cerimônias, com pequenas intervenções sem deixar o humor de lado (“Ainda penso em fazer uma tatuagem, talvez na testa, com ‘Verdura não foi feita pelo Caetano Veloso’ escrito”, mandou, referindo-se ao intérprete que eternizou a canção). Zélia, segundo Estrela “a pessoa que mais gravou músicas do Paulo”, ainda aproveitou a gentileza de uma brecha na homenagem para cantar duas outras não leminskianas de seu repertório (“Arnaldo Antunes não teria escrito os versos se ‘Alma’ se Leminski não houvesse existido”, disparou, sabiamente). E a noite que começou com dois momentos instrumentais da Orquestra à Base  de Sopros do Conservatório de MPB de Curitiba (duas obras assinadas pelo também paranaense Waltel Blanco, sendo uma chamada… “Estrela”) acabou com outras duas pérolas do homenageado: “Promessas Demais” (canção de abertura de uma novela da Globo na voz de Ney) e “Baile do Meu Coração” (sucesso de Moraes em seu auge pós-Novos Baianos). (AS)

Set list: “Anjos e Vampiros”, “Estrela”, “Dor Elegante”, “Verdura”, “Sinais de Haikais”, “Milágrimas”, “A Você, Amigo”, “Se Houver Céu”, “Luzes”, “Vou Gritar Seu Nome”, “Alma”, “Promessas Demais” e “Baile no Meu Coração. Bis: “Dor Elegante”.

Estrela Leminski + Zélia Duncan + Téo Ruiz

Relespública + Edgard Scandurra

O trio curitibano nunca escondeu que sua influência máxima no rock nacional sempre foi o Ira! Então, a oportunidade de voltar ao palco do Guairão durante a programação de concertos da Oficina de Música também foi a grande chance de rever o grande mestre em cima do palco. Scandurra aceitou e se uniu aos discípulos como o grande convidado daquela noite de 29 de janeiro, uma segunda-feira. No repertório, a grande surpresa: um grande desfile de lados B da carreira do guitarrista (seja com sua clássica banda ou em sua carreira solo discográfica) que, de uma maneira ou de outra, marcam um momento especial de sua vida naqueles anos da metade final da década de 1980. Claro que houve também espaço para um punhado de hits radiofônicos compostos por Edgard e registrados pela voz de Nasi. Na parte autoral que cabia a Moon, Ricardo Bastos e Fabio Elias, um começo matador com os grandes sucessos da Reles emendados logo de cara e sem dar tempo para a plateia respirar (“Dê Uma Chance Pro Amor”, “Nunca Mais”, “Garoa e Solidão”) e algumas canções de performance dividida com o paulistano que tenham a sua mão (“A Fumaça é Melhor que o Ar”, por exemplo, foi lançada em disco apenas pela Reles) ou predileção (“Sol em Estocolmo”, de Fábio, volta e meia é citada por ele como uma faixa que gostaria de gravar) ou participação em disco da Reles (“James Brown”). O set ainda reservou espaço para duas canções sixties do Who, reverência máxima de todos os quatro velhos mods. No fim de tudo, uma apresentação uma tanto quanto contida em jogo de cena, mas esbanjando sentimento em forma de técnica disposta em cada um dos instrumentos. Tanto que o encerramento se deu ao som da instrumental “Rumble”, lançada em 1958 por um dos primeiros heróis da guitarra no rock (Link Wray, considerado o pai dos power chords e do uso de distorção nas seis cordas). Uma curiosidade: nesta noite quem também brilhou foi a tradutora de libras no canto esquerdo do palco. Kerolyn Costa, que também trabalhou como coordenadora de uma equipe de 12 profissionais que esteve presente em mais de 40 apresentações, também era fã assumida da reles e do Ira!. Protagonizou um show à parte ao não economizar na atuação de caras, bocas e gestos para interpretar visualmente os versos cantados ao microfone. (AS)

Set list: “Dê Uma Chance Pro Amor”, “Nunca Mais”, “Garoa e Solidão”, “Minha Menina/Oraçao de um Suicida”, “Minha Mente Ainda é a Mesma”, “Sol em Estocolmo”, “James Brown”, “Capaz de Tudo”, ‘Saída”, “Casa de Papel”, “A Fumaça é Melhor que o Ar”, “O Girassol”, “Manhãs de Domingo”, ”So Sad About Us”. “Our Love Was”. “Abraços e Brigas”, “Ninguém Entende um Mod”, “Envelheço na Cidade”, “Eu Quero Sempre Mais”, “Núcleo Base”. Bis: “Dias de Luta” e “Rumble”.

Edgard Scandurra + Relespública

Banda Lyra + Maria Alcina

Ela saiu da Zona da Mata de Minas Gerais há pouco mais de meio século para subverter a ordem da música brasileira. Desafiando limites de gênero e a elasticidade de ritmos musicais, sua carreira sofreu com a implacável censura do regime militar lá no início e nesses últimos anos, entretanto, vem renascendo com uma série de CDs e DVDs ao vivo e de estúdio lançados por selos independentes. Às vésperas de completar 75 anos de idade e ganhar um longa-metragem biográfico no cinema, ela chegou à Oficina de Música como convidada da Banda Lyra e acabou chacoalhando as estruturas do Guairão e fazendo, na noite de terça, 30 de janeiro, um dos concertos mais intensos desta edição. Flutuando com leveza entre samba, choro, tango, rock, MPB e até polca, revisitou faixas gravadas nos dois primeiros álbuns, a fase oitentista de letras de duplo sentido, relembrou o discurso sociopolítico afiado de Caetano Veloso e, claro, terminou levantando alucinadamente a plateia com uma dobradinha de louvação rubro-negra de um então chamado apenas Jorge Ben. (AS)

Set list: “Piazzolla no Choro”, “Bonfiglio à Casa Torna”, : Um Chorinho em Cochabamba”, “A Voz da Noite”, “Eu Sou Alcina”, “Tome Polca”, “Como Se Não Tivesse Acontecido Nada”, “Kid Cavaquinho”, Fora da Ordem”, “Tropicália”, “Romeu e Julieta”, “Alô Alô”, “Chica Chica Boom Chic”, “Bacurinha”, “Prenda o Tadeu”, “Kataflam”, “Camisa 10 da Gávea” e “Fio Maravilha”.

Maria Alcina

Jovem Dionísio

O quinteto que há dois anos tomou de assalto a internet com o megahit “Acorda Pedrinho” teve na Oficina de Música uma grande oportunidade de mostrar que não é apenas uma one-hit band. Jogando literalmente em casa, já que os músicos são de Curitiba, o grupo ainda teve a oportunidade de estrear no Guairão na noite de quarta 3 de janeiro e demonstrar toda a sua energia quando faz um show. O começo se deu com uma projeção de carga emocional, que mostrava a trajetória até aqui por meio de programas de TV e matérias jornalísticas. Depois, o telão usou e abusou de efeitos e filtros mais a própria iluminação do palco. As performances eram muito dançantes, instigando a ginga e o requebrado. Mas no canto esquerdo do mesmo palco estava montada uma salinha, com mesinha e sofá, para dar aquela quebrada e instaurar uma aura mais intimista com arranjos acústicos para “Aguei” (colab com a dupla Anavitória, que, para a decepção de muitos dos presentes, não estava na capital paranaense para fazer aquele feat tão esperado) e “Pontos de Exclamação” (canção responsável pela popularização do grupo, ainda em 2020, iniciada por um momento solo e de improviso do tecladista Ber Hey). Claro que o encerramento se deu com “Acorda, Pedrinho”, uma homenagem ao recém-falecido muso inspirador da letra. O Guairão, todo de pé, não hesitou: jogou-se na dança e cantou em uníssono. (DS)

Set list: “Amigos Até Certa Instância”, “Belnini”, “É Osso”, “Tu Tem Jeito de Quem Gosta”, “Invisível/Não Dá Mais”,  “Copacabana”, “Cê Me Viu Ontem/Pastel”, “Aguei”, “Não Posso Dizer Que Te Amo”, “Algum Ritmo”, “Romance Frito”, “Por Dentro e Por Fora”, “Risco”, “Pontos de Exclamação” e “Acorda, Pedrinho”.

Jovem Dionísio

Classe de Banda Sinfônica

Uma noite de pura nostalgia (para adultos) e magia (para crianças). Foi assim a apresentação da noite de 2 de fevereiro. Sob a regência do maestro e professor Marcelo Jardim, quase 100 jovens talentos participantes dos cursos de Regência e de Prática de Banda se apresentaram para um Guairão lotado. No repertório, clássicos das animações vintage do cinema (sobretudo da Disney, incluindo Branca de Neve), até produções mais recentes do mesmo estúdio (A Bela e a Fera, O Rei Leão, O Corcunda de Notre Dame, Aladdin, Fantasia 2000 e Frozen). Também fizeram parte do programa algumas das chamadas Silly Symphonies (que compuseram uma série de 75 curtas-metragens em animação produzidos por Walt Disney entre 1929 e 1939), obras da Pixar e temas clássicos da TV (Simpsons, Flintstones). Claro que não poderia faltar também “A Pantera Cor-de-Rosa (composição esta que é atribuída a Herny Mancini, mas que teve um bom dedo do paranaense Waltel Branco, na época assistente do americano), popularizada nos anos 1960 pelas aberturas da franquia de filmes protagonizados pelo Inspetor Clouseau. Antes de iniciar o concerto, o maestro Marcelo Jardim destacou a relevância das animações. “Os desenhos tiveram uma grande importância para a qualidade sonora do cinema”, afirmou. Depois, onze alunos conduziram a orquestra, revezando-se na regência com Jardim, que também participou do concerto. A média de idade dos músicos impressionava, com jovens talentos de apenas 20 e poucos anos demonstrando a qualidade e o potencial da formação musical proporcionada pela Oficina de Música de Curitiba. E na penúltima música, “Os Pinheiros de Roma”, a plateia foi surpreendida com músicos posicionados nos balcões, fazendo com o som da orquestra ecoar literalmente por todo o teatro. (JM)

Set List: “Cartoons Overture”, “Disney Fantasy”, “Os Flintstones”, “A Pantera Cor-de-Rosa”, “Os Simpsons”,”A Bela e a Fera”, “Aladdin”, “Os Sinos de Notre Dame”, “O Rei Leão”, “O Pássaro de Fogo”, “Desenhos da Pixar”, “Os Pinheiros de Roma” e “Frozen”.

Classe de Banda Sinfônica

Orquestras da Oficina de Cordas e Sopros + Criolo

Emocionante é pouco para descrever o show de encerramento dos cursos da Oficina de Música. Teve até estudante que participou das orquestras no palco se debulhando em lágrimas ao final da apresentação. Também pudera. Com Kleber Cavalcante Gomes não poderia ser diferente. De fala baixinha e mansa, bom humor extremo e um carisma dos píncaros, Criolo acertou quando, logo no início, declarou que aquele seria um show para ser vivido intensamente e ter cada segundo aproveitado ao máximo. “A batida do coração desse povo vai ajudar na cadência”, disparou lá pelo meio, antes da execução de um dos clássicos mais bonitos do samba, “As Rosas Não Falam’. Por falar nisso, o rapper, que nos últimos anos vem se dedicando a interpretar esse outro gênero em seus concertos, sentou-se à frente e ao centro de alunos escolhidos e regidos pelos maestros João Egashira (cordas) e Paulo Aragão (sopros) para comandar um repertório de excelência no território do samba. Clara Nunes, Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Cartola, Pixinguinha, Adoniran Barbosa, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa e Demônios da Garoa estavam entre os autores e intérpretes homenageados no decorrer do set list. A parte das execuções instrumentais, quando Criolo não estava no palco, abriu espaço também para choro e polca, com obras de Jacob do Bandolim (que ressignificou o instrumento de origem europeia que lhe deu parte do nome artístico), Radamés Gnatalli e Ernserto Nazareth. O convidado especial da noite ainda foi agraciado com arranjos especiais para duas de canções autorais e também não conseguiu a emoção por conta disso. No fim da apresentação, um medley com três dos maiores hits do bairro paulistano do Bixiga levantou todo mundo da cadeira e transformou aquele restinho de Oficina em uma grande celebração em uníssono. Mas ainda era pouco: na volta para o bis, um matador gran finale com “Carinhoso” mostrou que certa estava a saxofonista hermana que tentava enxugar as lágrimas a todo instante. Foi não só de arrepiar a interpretação de Criolo. Foi também de fazer chorar. (AS)

Set list: “Pra Naná”, “Canto das Três Raças”, “Menino Mimado”, ”Barracão”, “Palpite Infeliz”, “Vibrações”, “Remexendo”, “Ameno Resedá”, “Agoniza Mas Não Morre”, “Folhas Secas”, “As Rosas Não Falam”, “Dilúvio de Solidão” e “Saudosa Maloca/Tiro ao Álvaro/Trem das Onze”. Bis: “Carinhoso”.

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Criolo convida Nelson Sargento – ao vivo

Celebração, protesto e muita reverência marcam a fria noite em que a Ópera de Arame se transforma na casa do samba em Curitiba

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Texto por Abonico R. Smith

Foto de iaskara

Um show de Criolo é sempre mais do que um show. Mesmo quando ele se desnuda do lado rapper e engata um repertório de samba. Mesmo quando ele faz um downsizing na banda de apoio e sobe ao palco acompanhado de apenas três músicos (cavaco, percussão e violão de sete cordas). Mesmo quando ele convida um dos maiores nomes da música brasileira e faz uma solene reverência a ele, inclusive reservando metade do set list para ouvi-lo cantar alguns dos grandes clássicos compostos por ele e amigos de rodas de décadas e décadas atrás.

E foi tudo isso o que aconteceu na Ópera de Arame no último dia 14 de outubro. De volta a Curitiba para uma versão pocket da turnê do mais recente disco, Espiral de Ilusão, Criolo chamou Nelson Sargento para dividir o palco e fazer de uma noite fria e chuvosa na capital paranaense uma calorosa noite de celebração, resistência e protesto. O público lá presente sabe muito bem que Criolo é o seu pastor e, com ele, nada lhes faltará. Sua fala é sempre mansa. O tom da voz, baixo e calmo. De sua boca saem palavras de conforto, carinho e amor, nunca de guerra, violência ou ódio. Mesmo quando o momento é de apreensão ou desespero.

Para uma plateia majoritariamente composta pela turma do #EleNão e que sabia de cor todas as letras dele, o artista estava mais do que em casa. “La Vem Você” foi o abre-alas para uma grande sequência de uníssonos entoando versos que parecem simples e quererem dizer uma coisa, mas que se você analisar bem notará que servem como uma boa metáfora para as duras entrelinhas da vida. Servem como exemplo disso a faixa-título do álbum (“Como você dorme com isso? Com você dorme tranquilo?”), “Boca Fofa” (“Boca fofa é uma tendência assim tão global/ Quando um nào tem verdade boca fofa é fenomenal”), “Hora da Decisão” (“O tempo fechou na favela/ É fera engolindo fera/ Quem não tem proceder já era/ Quero ver uem vai ter coragem/ Ou peito pra interferir/ Se a falange do mal tá pronta/ E a paz teve que sair”) e, claro, “Menino Mimado” ( “Eu não quero viver assim, mastigar desilusão/ Este abismo social requer atençãoo/ Foco, força efé, já falou meu irmão/ Meninos mimados não podem reger a nação”. Como ponte entre uma canção e outra, muita troca de energia entre plateia e artista mais preces a respeito de fé, crianças, professores e guerra. No final, uma canção mais antiga, “Fermento Pra Massa”, sobre greve do transporte coletivo e o reflexo caótico que um movimento como este provoca na grande metrópole.

Para a segunda parte foi reservada toda a majestade do samba clássico dos morros cariocas. Os gritos fervorosos de #EleNão puderam se emudecer para que entrassem emoção, choro e muita entrega. Até uma bandeira da Estação Primeira de Mangueira surgiu do meio da plateia e foi solenemente levada até Criolo, que a estendeu com as mãos por trás de seu convidado, sentado na cadeira de seu praticável sem perder o bom humor e a humildade de agradecer ao rapper paulistano pela oportunidade de estar em Curitiba por mais uma vez e pela experiência enriquecedora de cantarem juntos.

Estavam todos diante de Nelson Sargento, 94 anos de samba “de raiz” correndo pelas veias e pura sabedoria na hora de discursar (“faça exatamente o inverso do contrário”). E compor também, como é o caso de “Falso Amor Sincero” (“O nosso amor é tão bonito/ Ela finge que me ama e eu finjo que acredito/ O nosso falso amor é tão sincero/ Isso me faz bem feliz. Ela faz tudo que eu quero/ Eu faço tudo o que ela diz/ Aqueles que se amam de verdade/ Invejam a nossa felicidade”), “Agoniza Mas Não Morre” (“Samba, inocente, pé-no-chão/ A fidalguia do salão/ Te abraçou, te envolveu/ Mudaram toda a sua estrutura/ Te impuseram outra cultura/ E você nem percebeu”) e “Sinfonia Imortal” (“Quando o amor desafina/ As notas que predominam/ Saudade e desilusão/ Mas se o maestro é de fato/ Põe na pauta um pizzicato/ Resolve a situação/ O que eu desejo afinal/ É fazer das nossas vidas/ Uma sinfonia Imortal”).

Do parceiro e amigo Cartola – com quem dividiu a autoria de “Sinfonia Imortal”, mandou também “Alvorada no Morro” e as indispensáveis “As Rosas Não Falam” e “O Mundo é um Moinho”. De Nelson Cavaquinho, entoou a também não menos clássica “Folhas Secas”. E tudo, enfim, terminou com “A Voz do Morro”, de Zé Keti mas que pode ser emprestada para ser usada como biografia dos maiores bambas do samba carioca.

Nelson Sargento também é o samba, a voz do morro, o rei dos terreiros. Ele e seu discípulo Criolo fecharam o show com os versos, hoje bastante necessários, que finalizam esta canção (“Mais um samba, queremos samba/ Quem está pedindo é a voz do povo de um país/ Pelo samba, vamos cantando/ É pra melodia de um Brasil feliz”). Com os olhos marejados de lágrimas o público se despediu dos dois artistas. Criolo ainda retornou brevemente ao palco para bisar brevemente o recado de “Menino Mimado” e incendiar mais um coro de #EleNão. Pelo menos, naquela noite de domingo, todos os corações voltaram mais aquecidos e confortados para casa.

Set list: Parte 1: “La Vem Você”, “Boca Fofa”, “Dilúvio de Solidão”, “Menino Mimado”, “Filha do Maneco, “Espiral de Ilusão”, “Hora da Decisão”, “Nas Águas” e “Fermento Pra Massa”. Parte 2: “Falso Amor Sincero”, “Alvorada no Morro”, “Sinfonia Imortal”, “Agoniza Mas Não Morre”. “As Rosas Não Falam”, “O Mundo é um Moinho”, “Folhas Secas” e “A Voz do Morro”. Bis: “Menino Minado”.