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Black Mirror: Bandersnatch

A possibilidade do espectador comandar os rumos da trama é justamente o que enfraquece o longa da cultuada série britânica

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Texto por Abonico R. Smith

Foto: Netflix/Divulgação

Você pagaria ingresso para entrar no Louvre e pintar o famoso e enigmático sorriso de Mona Lisa em um quadrado branco colocado no rosto dela especialmente para conectar você a Leonardo da Vinci? Ou, então, imagine que, ao inscrever a sua música “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” no Festival Internacional da Canção de 1968, o cantor e compositor Geraldo Vandré apresentasse somente o refrão completo e a melodia das estrofes, deixando para que completassem a letra as pessoas que estavam na plateia daquele superlotado ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro.

São apenas dois exemplos, bem tosos aliás. Mas podem representar muitas reflexões acerca da “grande novidade” que o recém-lançado longa-metragem Black Mirror: Bandersnatch (EUA/Reino Unido, 2018 – Netflix) propõe. Com duração que pode variar até noventa minutos, o filme permite que você seja o roteirista principal da produção e decida os rumos que o protagonista Stefan Butler (Fionn Whitehead, uma das revelações do jovem elenco de Dunkirk) vai tomando no decorrer da história, que mostra o que acontece a ele durante as semanas em que precisa desenvolver um novo jogo, baseado em um livro interativo, para a empresa mais hypada do mundo dos consoles.

A premissa é feita sob encomenda para a massa que embarca na onda do rótulo geek que assola a cultura pop da década. A trama se passa no ano de 1984, em pleno auge dos games 8-bits. A trilha sonora traz pérolas da época como Thompson Twins e Frankie Goes To Hollywood. A nostalgia da década que insiste em nunca terminar impera na ambiência é proposital. Serve como trunfo para pescar os guardiães do manto sagrado das séries e filmes desses tempos de streaming, a grande maioria formada por aqueles que nunca ou muito pouco viveram daquele tempo do qual sentem eternas saudades. E se você pode justamente escolher assistir a todos os capítulos seguidamente, maratonando uma série durante horas, por que não, justamente, interferir naquilo que você está vendo e ter a sensação de ter o controle do jogo nas mãos?

Este é o grande atrativo de Bandersnatch, o primeiro longa-metragem lançado sob a bandeira da série britânica Black Mirror. Projeto encampado pela Netflix – que há duas temporadas é a distribuidora mundial da série – e desenvolvido secretamente durante dois longos anos, o filme oferece cinco finais diferentes e, para se chegar até eles, um trilhão de combinações possíveis para a escolha dos percursos. Uau! Que máximo! O futuro finalmente chegou ao cinema que está ao alcance de suas mãos! A chance de nunca mais ver o mesmo filme repetidamente.

#SQN… Quem realmente achar tudo isso só vai estar assinando o atestado de bobo manipulado por mais uma gigantesca indústria corporativa do ramo do entretenimento. O que a Netflix quer é justamente dar esta falsa impressão de que você se sente conectado à história apresentada e realmente manipula o destino do pobre Stefan, que entra nesta paranoia de não ser mais capaz de controlar suas ações e seu destino para nunca mais sair dela. E mais: chega-se ao ponto de serem feitas piadas que transformam a própria Netflix em um personagem da história ou estarem espalhados easter eggs que remetem a todos os episódios das quatro temporadas anteriores do seriado. “Mas isso é muito Black Mirror!”, muitos certamente pensarão do outro lado – o da realidade – da tela do computador, do celular ou da TV.

Aí perde-se justamente o maior prazer de uma obra de arte. É justamente a passividade do consumidor que permite o encanto, a admiração, a reflexão. Com a existência da interatividade, o autor pode não deixar de ser por completo o autor, mas com certeza o espectador passa a não mais sê-lo para assinar a coautoria. Neste traslado perde-se todo o poder de deixar-se surpreender pela recepção integral do que o autor teria desejado dizer com tudo aquilo.  O seu livre-arbítrio de escolher que caminhos tomar, sejas por quais razões forem,  destroem todo o fascínio provocativo pela narrativa. O cinema deixa de ser cinema e transforma-se numa mera brincadeira de videogame.

Talvez seja mesmo este um caminho irreversível que resulta da cultura de convergência das mídias, tão venerado pelas novas gerações pouquíssimo afeitas a manter as tradições mais velhas. Mas enquanto o mundo não muda de forma tão radical assim é bom não ir se enganando: não é a vida que está virando Black Mirror, mas, sim, é a velha matrix que continua no poder, desta vez  querendo fazer com que, agora, você acredite deter o controle do jogo.