Movies

Anatomia de uma Queda

O abismo entre verdade objetiva e percepção subjetiva é brilhantemente tratado sem espetacularização neste longa francês

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Diamond Films/Divulgação

O vencedor da Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes, chegou ao Brasil e ao circuito internacional acumulando premiações e elogios. Destaque nas principais corridas do Oscar deste ano, que ocorrerá agora em março, Anatomia de uma Queda (Anatomie d’une Chute, França, 2023 – Diamond Films) conquista seu público ancorando-se a uma simples questão (que não promete resolver ao rolar dos créditos): ela matou ou não?

Isto porque a trama trata das circunstâncias da morte de Samuel (Samuel Theis), professor universitário e escritor frustrado cuja queda da janela do ático dá nome ao filme. Sua esposa, a bem-sucedida escritora Sandra (Sandra Hüller), é a única suspeita, mas alega que o marido teria tirado a própria vida. Defronte a um promotor inescrupuloso (Antoine Reinartz), ao júri e ao seu próprio filho Daniel (Milo Machado-Graner), ela vê sua vida escarafunchada e invadida em uma tentativa desesperada de livrar-se da acusação.

A suspeita não é infundada. A relação entre Sandra e Samuel sofrera muito nos últimos anos, afogada em culpa, rancor e frustração devido ao acidente que deixou Daniel permanentemente cego. Aqui, como em muitos relacionamentos, os campos pessoal e profissional se confundem: as discussões do casal variavam da falta de proporcionalidade dos afazeres domésticos ao “roubo” de uma ideia literária de Samuel por parte de sua companheira.

Todos esses pontos não ficam sem nó em um roteiro muito bem tecido por Justine Triet, que também assina a direção do filme, e Arthur Harari. Triet nos lança de cara no meio deste conflito conjugal na primeira e uma das melhores cenas do longa-metragem. Sandra recebe uma jovem entrevistadora e sua casa e, sem nem aparecer na tela, Samuel invade a conversa das duas com sua música ensurdecedora. Sua presença, assim como nessa perturbadora e ansiosa sequência, é sentida em todo o filme, primeiro como sombra e depois como fantasma. Por isso, seus poucos minutos (sempre flashbacks) são profundamente impactantes.

A protagonista Sandra Huller, por outro lado, carrega consigo o peso de ancorar a duração do filme e está presente em quase todas as cenas. Sua personagem, dividida entre o luto e a busca por uma defesa, é profundamente humana. Em meio à inquisição de sua vida, a difícil tarefa de assistir sua vida inteira resumida diante de um júri. Suas fraquezas amplificadas, suas qualidades dispensadas como notas de rodapé.

Esta é, talvez, a principal questão que Triet nos coloca ao longo de Anatomia de uma Queda. A queda é, claro, o ponto focal objetivo do caso. Por detrás dela, o exame completamente subjetivo das possíveis motivações de um assassinato ou um suicídio. Instaura-se o embate profundo de narrativas: uma disposta a condenar Sandra por seu passado, outra a sentenciar Samuel à desistência do próprio futuro. Neste jogo de tênis, a verdade se torna tão distante que é inalcançável, pois o fato em si mesmo jamais será capaz de conciliar tamanhas contradições. Não à toa, o plano que melhor ilustra todo o caso é a majestosa confusão de Daniel, que vira a cabeça num pingue-pongue que responde a duas vozes fora da tela debatendo seu depoimento: o advogado e antigo amigo de sua mãe, Vincent (o competentíssimo Swann Arlaud), e o promotor de acusação.

Assim como Daniel, o espectador se vê em conflito, buscando encontrar verdade e falsidade em reconstruções retóricas que não são capazes de abarcar a complexidade de uma vida a dois. Triet é muito sagaz em operar, nas cenas do julgamento, uma mise-en-scène muito mais errática, com uma câmera na mão que pincela zooms e movimentos bruscos, encontrando a composição certa no andar da carruagem; e primeiros planos com baixíssima profundidade de campo – as personagens sempre em foco, o ambiente judicial sempre num enorme borrão.

Mas, no choque de narrativas, nem o fato é tão relevante que esgota a divergência. Em dado momento, a acusação parte da obra ficcional de Sandra para imprimir nela uma personalidade cruel, fria. Lendo um de seus best-sellers ao júri, o promotor antagonista acende um debate de fundo que faz sucesso na crítica contemporânea: a personagem literária de Sandra é um espelho da escritora? Melhor colocando: é possível separar autora e obra? Triet parece assumir que sim, pois a dissimulação da acusação não nos deixa dúvidas quanto à índole de seus representantes. Assim como Sandra não é o áudio de uma única briga, gravada em segredo por seu marido, como poderia ser uma personagem que ela mesma anuncia ficcional, não obstante a similar situação em que ambas se encontram?

Anatomia de uma Queda é um drama de peso, cuja recepção traduz muito bem a importância. O abismo entre verdade objetiva e percepção subjetiva é brilhantemente tratado sem espetacularização, mas com a perfeita ciência de seu peso. O olhar atento da diretora para mãe e filho enlutados, passando por um trauma sem tamanho, não precisa de certezas para construir algumas das personagens mais impactantes do cinema recente. Se nunca teremos acesso ao fato concreto, só nos basta o sentimento.

Movies

O Último Dia de Yitzhak Rabin

Filme sobre o assassinato do premiê e prêmio nobel da paz Yitzhak Rabin é lançado no Brasil por causa do conflito atual que envolve Israel e Palestina

Texto por Abonico Smith

Foto: Synapse/Divulgação

Para muitos, um injustificável e desmedido massacre genocida contra civis (maioria de mulheres e crianças) provocado por escusos interesses econômicos e políticos. Para outros, apenas exercício do direito de uma nação de se defender perante o risco de mais alguma ação carregada de terrorismo. Não importa de que lado da perspectiva do muro você esteja, uma coisa é certa: está sendo bombardeado pelos nomes de Israel e Palestina há quase um mês na pauta dos noticiários aqui, ali e acolá. No Brasil não poderia ser diferente, seja o veículo jornalístico pertencente à mídia tradicional ou bravas iniciativas independentes carregadas de um viés sociopolítico que foge de interesses comerciais que mandam e desmandam no território do mainstream. O fato é que quando o premiê israelense Benjamin Netanyahu declarou guerra ao Hamas surgiu uma grande oportunidade para se corrigir uma injustiça cinematográfica por aqui. Então, com oito anos de atraso, enfim, é lançado o filme O Último Dia de Yitzhak Rabin (Rabin: The Last Day, Israel/França, 2015 – Synapse), dirigido por Amos Gitaï e com roteiro assinado em conjunto com Marie-José Sanselme, também sua parceira em outras obras mais recentes do mais famoso cineasta daquele país.

O interesse de Gitaï é vasculhar pistas que podem vir a esclarecer alguns pontos nebulosos por trás do assassinato do então primeiro-ministro, ocorrido em 4 de novembro de 1995 (há exatos 28 anos) de uma praça pública de Tel Aviv, após uma grande manifestação pela paz. No ano anterior, Rabin fora agraciado com o Prêmio Nobel da Paz ao lado do presidente de Israel Shimon Peres e do líder da Organização pela Liberdade da Palestina Yasser Arafat. Os governos israelense e palestino selaram em setembro de 1993 uma série de acordos mediados pelo norte-americano Bill Clinton visando à abertura das negociações sobre os territórios ocupados, a retirada de tropas de Israel do sul do Líbano, o status da cidade “dividida” de Jerusalém e, o mais importante, o fim dos conflitos bélicos entre todos os lados rivais daquela região. As atitudes e decisões de Yitzhak (vale lembrar que ele e Shimon pertenciam ao partido ligado a questões trabalhistas) começaram a incomodar muitos judeus radicais sionistas de seu país, especialmente o pessoal da extrema-direita congregado no partido chamado Likud, na época comandado por… Benjamin Netanyahu, que estava por trás uma maciça campanha de manipulação da opinião pública contra Rabin, envolvendo a incitação de ódio e violência contra ele.

Gitaï, que sempre procurou imprimir em seus longas-metragens uma pequena representação da sociedade israelense, mistura linguagens para desvendar os segredos e mistérios por trás dos três tiros à queima-roupa disparados por um jovem estudante universitário naquele dia na Praça da Paz. Coloca atores vivendo personagens reais, encenando diálogos e situações que possam levar os espectadores (sobretudo gente como nós, brasileiros comuns, que há décadas praticamente só ouvimos falar os nomes dos partidos e dos políticos nos noticiários de jornais, revistas, rádios e televisões) a ligarem os pontos. Entretanto também não abre mão de misturar altas doses documentais, utilizando imagens externas de acontecimentos garimpadas em arquivos e acervos, inclusive o seu próprio – já que Amos andava acompanhando alguns atos públicos de Rabin e inclusive estava filmando no momento do assassinato do premiê.

O ritmo lento, a duração extensa (2h36) e a narrativa nada linear do roteiro podem cansar um pouco quem não está muito acostumado a padrões cinematográficos não hollywoodianos ou também não tem lá muito interesse em questões históricas que podem fazer compreender um tanto melhor muito do que anda acontecendo nos dias atuais em Faixa de Gaza, Cisjordânia, Israel e seus arredores não palestinos. Por outro lado, quem se interessar por ver o trabalho “investigativo” do cineasta tem uma excelente oportunidade de perceber que tanto do lado de lá do planeta como do lado de cá muito do modus operandi da right wing não é tão diferente assim. Só que Israel sempre foi um Estado de orientação muito mais bélica do que o Brasil.

Music

Boogarins + Oruã – ao vivo

No palco do Circo Voador, a experiência sensorial promovida por duas bandas que fogem do lugar-comum da música

Boogarins

Texto e fotos por Luciano Vitor

Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. O Circo Voador, palco de centenas de shows, centenas de bandas, centenas de horas (na minha humilde contagem, o que talvez esteja muito errado e é bem possível!), no último dia 21 de maio serviu de encontro para duas bandas que nasceram no erro da música. Mas por que “erro”? Porque a grande massa enxerga a música como algo objetivo, reto, sem muitas surpresas. Algo que beire ali um minuto e meio (ou dois ou três minutos no caso do pop), com letras terríveis, sonoridade pasteurizada e refém de aplicativos de dancinhas e afins. Justamente por isso Oruã (do Rio de Janeiro) e Boogarins (de Goiânia) são bandas que fogem do lugar comum. Suas apresentações são experiências não apenas sonoras, mas sensoriais.

Depois de mais de duas décadas pisei novamente no templo musical da Lapa, bairro central do Rio de Janeiro. O último show ao qual eu havia assistido ali tinha sido do Buddy Guy (EUA) com o Baseado em Blues (RJ). Salvo engano, muitíssimo antes da nova estrutura do Circo Voador. Outros tempos, outra era. Entretanto, se a estrutura mudou, a essência talvez não. A ideia continua a mesma: um palco, uma lona de circo, com entradas espaçosas e piso superior para quem não quem quer ficar em pé. Na área externa, banquinhas com material das bandas, material independente de cinema, locais para comprar bebidas, alimentos e afins. É nostálgico pisar no Circo Voador tanto tempo depois.

Já havia escrito a respeito do Oruã há alguns anos, mas com uma formação bem diferente do que pude presenciar ali no Circo. O grupo carioca gravita em torno de uma ideia que, na minha humilde opinião, traz a música para um sistema coletivo, onde uma banda pode e deve ter vários colaboradores, várias formações, vários direcionamentos e, principalmente, diversos significados e significâncias. Por isso enxergá-lo não apenas como um grupo musical, mas como algo para ter diversos direcionamentos diferentes com instrumentistas diferentes.

Se alguns anos atrás consegui ver o Oruã com quatro músicos no palco, na formação clássica de uma banda de rock na sua acepção mais conhecida (baixo, bateria, guitarra e vocal), desta vez no Circo Voador estava algo muito mais grandioso: duas baterias, maracas, guitarra, baixo, programação e teclados, dois vocais e muita vontade de agradecer o público presente com uma apresentação ímpar. Karin, Lê Almeida, Daniel, Bigú, Cascaes, Joab e Russo encheram o Circo com música sinuosa, torta mesmo, de uma maneira que as próprias incongruências cariocas divididas por dezenas de bairros se encontrassem ali, diante de uma plateia cheia de caras e aspectos diferentes. Foi um puta show!

Oruã representa algo muito mais à frente que os dials tradicionais podem suportar. Entre tantas mesmices, eu oro (e aqui vem o famoso trocadilho) para que um dia possamos ver uma música torta, com dissonâncias e a assinatura do quarteto-barra- septeto servindo como trilha sonora de uma das séries dos streamings mundiais da vida.

Oruã

Agora, sobre o Boogarins. Não lembro qual foi a última banda que se manteve tanto tempo dentro do mainstream do universo independente. Na realidade, este ingrato pódio é volúvel demais. Não se consegue acompanhar a evolução que o indie avançou de maneira única dentro do cenário. E o Boogarins conseguiu isso, com constância e muito trabalho.

O quarteto goiano ganhou a ribalta há dez anos, com o estouro de “Lucifernandis”. Depois disso, foi mundo afora! Após mais uma turnê na Europa, o Boogarins desceu no Rio de Janeiro e logo após um simples acorde hipnotizou a plateia. E esse show foi a imersão quase tradicional na psicodelia da banda. Acordes longos, entrega total no palco, faixas quase que instantaneamente reconhecidas pelo enorme público e um domínio absurdo de palco. A cozinha rítmica é algo de surreal. Erro zero, músicas estendidas na sua execução e um quarteto que se conhece pelo olhar. O bônus da noite foi a presença de Bonifrate, musico do Rio de Janeiro que deu uma sábia contribuição à dinâmica do grupo. Foi uma interação precisa como toda a apresentação.

Por fim, o Circo Voador presenciou uma noite incrível, com duas bandas que não precisam mais de apresentações. Precisam penas invadirem de vez o mainstream do indie mundial (como o caso do Oruã) para não saírem de vez de lá!

Set List Oruã: “Dinorá”, “Real Grandeza”, “Outros Santos”, “Miragem”, “Cravina Flor”, “Ramais”, “Cavalo Branco”, “Caboclo”, “Escola”, “Obrei Orei”, “Osíris”/“Essência Bruta” e “Maldição”.Set List Boogarins: “Derramado”, “Sombra ou Dúvida”, “Te Quero Longe”, “Passeio”, “Sai de Cima”, “Cães do Ódio”, “Correndo em Fúria”, “Dislexia ou Transe”, “Inocência”, “Onda Negra”, “Benzin”, “San Lorenzo”, “LVCO 2”, “Noite Bright” e “Foi Mal”. Bis: “Erre”, “600 Dias (ou Mantra dos 20 anos)”, “Lucifernandis” e “Auchma”.

Music

New Order – ao vivo

Quinteto formado a partir das cinzas do Joy Division mostra, em Curitiba, como a música pop pode ser transformada em obra de arte

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Texto por Abonico R. Smith

Fotos de André Mantra (CenaLowFi)

Você já foi a algum museu para realmente apreciar alguma obra de arte exposta ali? Se a resposta for positiva, deve saber bem disso. Você se perde por um bom tempo parado diante do quadro e se esquece dos ponteiros do relógio. Olha aqui, ali, acolá. Analisa sinais deixados pelo artista: luz e sombra, cores, simbologia, perspectiva, composição de elementos, construção das linhas, forma das pinceladas. Reconhece traços, faz analogias, arma sinapses cerebrais. Volta a olhar com mais atenção para algum detalhe específico. Faz dos pequeninos prazeres diante da obra de arte algo que nunca mais será esquecido para o resto da vida.

Presenciar um show do New Order é como estar diante de uma obra de arte. Pode durar o tempo que for que você nem se dá conta de quanto ficou ali e ainda acha que tudo isso poderia ter durado ainda mais. É uma experiência sensorial que mexe tanto com seus olhos quanto os ouvidos. E vai além: ainda faz chacoalhar todo o seu corpo, quando os graves e batidas bate e reverberam nele. Fica impossível resistir parado ali na frente de Bernard Sumner (guitarra, teclados e voz), Gillian Gilbert (teclados), Stephen Morris (bateria, pads e programações) mais os novos asseclas Tom Chapman (baixo) e Phil Cunnigham (guitarra, teclados e pads). Afinal, o grupo criado em Manchester no comecinho dos anos 1980, a partir das cinzas do Joy Division, consegue a mágica perfeita para reproduzir, ao vivo, o ponto exato de fusão entre o rock com guitarras e a dance music eletrônica.

O que se viu em Curitiba na noite do último domingo 2 de dezembro – fechando uma miniturnê brasileira que já havia passado por São Paulo e Uberlândia (MG) – foi justamente isso. Por pouco mais de duas horas, o hoje quinteto promoveu no palco da Live uma demonstração de como elevar a sempre banalizável música pop ao status de obra de arte. Com um extenso repertório que passava a limpo seus dez álbuns lançados entre 1981 e 2005, o New Order mostrou o quanto uma banda pode não apenas envelhecer com dignidade como também ainda ser capaz de provocar o corpo alheio, causando-lhe movimentos involuntários e arrepios. Sem falar nos versos, quase sempre curtos e de temática cotidiana, que fazem as vezes dos elementos pictóricos impressionistas no conjunto do trabalho da banda.

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A turnê Performance 2018 é um show de sons e imagens. Cada música é acompanhada por um videoclipe específico, que provoca interação gráfica com a canção executada. O gosto pelo complemento visual, por sinal, sempre acompanhou a trajetória da banda. As capas de seus álbuns e singles no período do selo indie Factory eram obras-primas criadas pelo designer Peter Saville, que era um dos sócios da empreitada ao lado do lendário jornalista, entrepeneur e maluco de carteirinha Tony Wilson. Os novos vídeos se alternam entre filmagens históricas (como os registros de uma Berlim Ocidental pobre, rebelde e ainda dividida pelo Muro, que aparecem como pano de fundo para a belíssima “Singularity”), hipnóticas brincadeiras com grafismos (“Plastic”; “Vaishing Point”; “Blue Monday) ou experimentações plásticas (o salto de trampolim que abre o show enquanto os músicos entram no palco; a fictícia banda Killers montada para o clipe oficial de “Crystal” e acabou por batizar o grupo formado em Las Vegas por Brandon Flowers e seus amigos). Já na área das programações eletrônicas, grandes sucessos como “Bizarre Love Triangle”, “The Perfect Kiss” e “Blue Monday” aparecem ligeiramente modificados, mas ainda assim perfeitamente reconhecíveis para a plateia se esbaldar de cantar junto e dançar enquanto se sente parte integrante do Haçienda, clube noturno que levava o rock às pistas de dança em Manchester nos anos 1980 e 1990.

Bernard Summer, já sexagenário, chutou em definitivo para longe toda aquela timidez de outrora. Comanda hoje o quinteto como um verdadeiro bandleader. Interage discretamente com a plateia mas marca presença como o centro das atenções até mesmo quando não canta ao microfone. Sua performance de tiozinho descolado dançando desajeitadamente na festa de casamento como se não houvesse amanhã até ganha um charme a mais. O fato de ter trazido os amigos Cunningham e Chapman (com quem tocara no Bad Lieutenant, formado entre 2008 e 2011, no período de hiato das atividades do New Order, lhe deu mais segurança e confiança para se jogar na função de vocalista. Os dois integrantes mais recentes, por sua vez, são irrepreensíveis ao formar o complemento ideal dos instrumentos de corda. Tom até faz a galera não sentir qualquer falta do histórico Peter Hook, criador de linhas de contrabaixo fantásticas para a banda.

Não bastasse ter uma fantástica carreira para montar o set list, o New Order retorna para o bis para brindar seus fãs já inebriados por tanta beleza. Para finalizar a noite, a banda ainda manda um conjunto de três canções clássicas do Joy Division. “Love Will Tear Us Apart” fecha a festa com clima mais “felizinho” que a gravação original (com direito a declarações de amor à banda de Ian Curtis no telão). “Decades”, a última faixa do álbum Closer, a antecipa com algumas fotos impactantes do falecido vocalista e seu olhar penetrante.

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Mas o que castiga mesmo o coração é o comeback com “Atomsphere”. Tudo bem que o fiapo de voz de Sumner fica bem distante de toda a densidade do vozeirão barítono de Curtis, mas isso não é empecilho para que a canção – enriquecida pela exibição do emocionante e póstumo clipe original dirigido pelo fotógrafo “oficial” da banda, o holandês Anton Corbijn – seja arrebatadora e ainda continue provocando aquele frio que anda por toda a espinha. Definitivamente naquele 18 de maio de 1980 o frontman do Joy Division não foi embora e muito menos se afastou da vida em silêncio. Não só ele está aí até hoje, mexendo e provocando sentimentos e sensações às pessoas, como também deixou como legado – um deles de modo indireto – duas bandas de rock que são obras de arte a serem apreciadas pela humanidade para todo o sempre.

Set list: “Singularity”, “Regret”, “Age Of Consent”, “Restless”, “Crystal”, “Academic”, “Your Silent Face”, “Tutti Frutti”, “Subculture”, “Bizarre Love Triangle”, “Vanishing Point”, “Waiting For The Sirens’ Call”, “Plastic”, “The Perfect Kiss”, “True Faith”, “Blue Monday” e “Temptation”. Bis: “Atmosphere”, “Decades” e “Love Will Tear Us Apart”.