Music

New Order – ao vivo

Quinteto formado a partir das cinzas do Joy Division mostra, em Curitiba, como a música pop pode ser transformada em obra de arte

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Texto por Abonico R. Smith

Fotos de André Mantra (CenaLowFi)

Você já foi a algum museu para realmente apreciar alguma obra de arte exposta ali? Se a resposta for positiva, deve saber bem disso. Você se perde por um bom tempo parado diante do quadro e se esquece dos ponteiros do relógio. Olha aqui, ali, acolá. Analisa sinais deixados pelo artista: luz e sombra, cores, simbologia, perspectiva, composição de elementos, construção das linhas, forma das pinceladas. Reconhece traços, faz analogias, arma sinapses cerebrais. Volta a olhar com mais atenção para algum detalhe específico. Faz dos pequeninos prazeres diante da obra de arte algo que nunca mais será esquecido para o resto da vida.

Presenciar um show do New Order é como estar diante de uma obra de arte. Pode durar o tempo que for que você nem se dá conta de quanto ficou ali e ainda acha que tudo isso poderia ter durado ainda mais. É uma experiência sensorial que mexe tanto com seus olhos quanto os ouvidos. E vai além: ainda faz chacoalhar todo o seu corpo, quando os graves e batidas bate e reverberam nele. Fica impossível resistir parado ali na frente de Bernard Sumner (guitarra, teclados e voz), Gillian Gilbert (teclados), Stephen Morris (bateria, pads e programações) mais os novos asseclas Tom Chapman (baixo) e Phil Cunnigham (guitarra, teclados e pads). Afinal, o grupo criado em Manchester no comecinho dos anos 1980, a partir das cinzas do Joy Division, consegue a mágica perfeita para reproduzir, ao vivo, o ponto exato de fusão entre o rock com guitarras e a dance music eletrônica.

O que se viu em Curitiba na noite do último domingo 2 de dezembro – fechando uma miniturnê brasileira que já havia passado por São Paulo e Uberlândia (MG) – foi justamente isso. Por pouco mais de duas horas, o hoje quinteto promoveu no palco da Live uma demonstração de como elevar a sempre banalizável música pop ao status de obra de arte. Com um extenso repertório que passava a limpo seus dez álbuns lançados entre 1981 e 2005, o New Order mostrou o quanto uma banda pode não apenas envelhecer com dignidade como também ainda ser capaz de provocar o corpo alheio, causando-lhe movimentos involuntários e arrepios. Sem falar nos versos, quase sempre curtos e de temática cotidiana, que fazem as vezes dos elementos pictóricos impressionistas no conjunto do trabalho da banda.

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A turnê Performance 2018 é um show de sons e imagens. Cada música é acompanhada por um videoclipe específico, que provoca interação gráfica com a canção executada. O gosto pelo complemento visual, por sinal, sempre acompanhou a trajetória da banda. As capas de seus álbuns e singles no período do selo indie Factory eram obras-primas criadas pelo designer Peter Saville, que era um dos sócios da empreitada ao lado do lendário jornalista, entrepeneur e maluco de carteirinha Tony Wilson. Os novos vídeos se alternam entre filmagens históricas (como os registros de uma Berlim Ocidental pobre, rebelde e ainda dividida pelo Muro, que aparecem como pano de fundo para a belíssima “Singularity”), hipnóticas brincadeiras com grafismos (“Plastic”; “Vaishing Point”; “Blue Monday) ou experimentações plásticas (o salto de trampolim que abre o show enquanto os músicos entram no palco; a fictícia banda Killers montada para o clipe oficial de “Crystal” e acabou por batizar o grupo formado em Las Vegas por Brandon Flowers e seus amigos). Já na área das programações eletrônicas, grandes sucessos como “Bizarre Love Triangle”, “The Perfect Kiss” e “Blue Monday” aparecem ligeiramente modificados, mas ainda assim perfeitamente reconhecíveis para a plateia se esbaldar de cantar junto e dançar enquanto se sente parte integrante do Haçienda, clube noturno que levava o rock às pistas de dança em Manchester nos anos 1980 e 1990.

Bernard Summer, já sexagenário, chutou em definitivo para longe toda aquela timidez de outrora. Comanda hoje o quinteto como um verdadeiro bandleader. Interage discretamente com a plateia mas marca presença como o centro das atenções até mesmo quando não canta ao microfone. Sua performance de tiozinho descolado dançando desajeitadamente na festa de casamento como se não houvesse amanhã até ganha um charme a mais. O fato de ter trazido os amigos Cunningham e Chapman (com quem tocara no Bad Lieutenant, formado entre 2008 e 2011, no período de hiato das atividades do New Order, lhe deu mais segurança e confiança para se jogar na função de vocalista. Os dois integrantes mais recentes, por sua vez, são irrepreensíveis ao formar o complemento ideal dos instrumentos de corda. Tom até faz a galera não sentir qualquer falta do histórico Peter Hook, criador de linhas de contrabaixo fantásticas para a banda.

Não bastasse ter uma fantástica carreira para montar o set list, o New Order retorna para o bis para brindar seus fãs já inebriados por tanta beleza. Para finalizar a noite, a banda ainda manda um conjunto de três canções clássicas do Joy Division. “Love Will Tear Us Apart” fecha a festa com clima mais “felizinho” que a gravação original (com direito a declarações de amor à banda de Ian Curtis no telão). “Decades”, a última faixa do álbum Closer, a antecipa com algumas fotos impactantes do falecido vocalista e seu olhar penetrante.

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Mas o que castiga mesmo o coração é o comeback com “Atomsphere”. Tudo bem que o fiapo de voz de Sumner fica bem distante de toda a densidade do vozeirão barítono de Curtis, mas isso não é empecilho para que a canção – enriquecida pela exibição do emocionante e póstumo clipe original dirigido pelo fotógrafo “oficial” da banda, o holandês Anton Corbijn – seja arrebatadora e ainda continue provocando aquele frio que anda por toda a espinha. Definitivamente naquele 18 de maio de 1980 o frontman do Joy Division não foi embora e muito menos se afastou da vida em silêncio. Não só ele está aí até hoje, mexendo e provocando sentimentos e sensações às pessoas, como também deixou como legado – um deles de modo indireto – duas bandas de rock que são obras de arte a serem apreciadas pela humanidade para todo o sempre.

Set list: “Singularity”, “Regret”, “Age Of Consent”, “Restless”, “Crystal”, “Academic”, “Your Silent Face”, “Tutti Frutti”, “Subculture”, “Bizarre Love Triangle”, “Vanishing Point”, “Waiting For The Sirens’ Call”, “Plastic”, “The Perfect Kiss”, “True Faith”, “Blue Monday” e “Temptation”. Bis: “Atmosphere”, “Decades” e “Love Will Tear Us Apart”.