Music

História do Rock: Synth Pop 81 – Parte 3

Oito clássicos do mágico ano que, há exatas quatro décadas, consolidava os sintetizadores como o principal instrumento da música pop britânica

Soft Cell

Texto por Abonico Smith

Fotos: Divulgação/Reprodução

Nos dois textos anteriores desta matéria especial você acompanhou a trajetória de sucesso do synth pop no comecinho dos anos 1980, em especial a sua temporada de 1981, quando o gênero ganhou popularidade no Reino Unido e também nos mercados fonográficos da Europa e dos Estados Unidos. Leu também sobre a gestação do mesmo em meados da década de 1970 e todos os seus conceitos tecnológicos – que também envolviam altas doses de paixão pela literatura e pelo cinema, especialmente quanto às distopias e histórias de ficção científica.

Para esta terceira parte, o Mondo Bacana preparou uma lista de oito faixas seminais daquele que foi ano de ouro, decisivo para a consolidação do sucesso mundial synth pop.

ULTRAVOX – VIENNA 

Faixa-título do quarto álbum da anda, lançado em 1980, esta foi a opção para o lançamento do terceiro single extraído do disco, já nos primeiros dias de janeiro do ano seguinte. Sob o comando do mítico produtor germânico Conny Plank (um dos nomes que conceberam o krautrock ao trabalhar com bandas como Neu! e Kraftwerk em meados da década anterior), o grupo inglês encontrava-se em fase de reinvenção. Estreava novo vocalista (Midge Ure, que viera do contemporâneo Visage), nova sonoridade (antes havia flertes com o art rock, o glam e o pós-punk) e estabelecia um novo processo coletivo de criação de divisão de renda, que fora exatamente o motivo da discórdia que culminou com a saída do frontman original John Foxx para a sua carreira solo). No estúdio de gravação, o tecladista e violinista Billy Currie propôs a criação de uma música que pudesse proporcionar o encontro dos sintetizadores e percussões eletrônicas com o virtuosismo clássico. Então, nada melhor do que batizá-la com o nome do berço da música erudita europeia e ilustrar o caso de amor de seus versos com algumas referências. O clipe, dirigido pelo australiano Russell Mulcahy (que cinco anos depois viria a assinar o longa-metragem Highlander: O Guerreiro Imortal) foi gravado parte em Londres (na maioria as cenas internas) e parte na capital austríaca (as cenas externas, em apenas uma madrugada e uma manhã de muito frio). O trecho do cemitério envolve a visita ao túmulo de Carl Schweighofer, fabricante que abasteceu com pianos boa parte de Viena durante toda a segunda metade do século 19. Outra grande referencia do clipe é O Terceiro Homem (1949), obra-prima do cinema britânico que trazia Orson Welles no elenco, uma história de crime e suspense e a mistura de traços do cinema noir com o expressionismo alemão. A balada tornou-se a música de maior sucesso da carreira do grupo e foi executada pelo quarteto em sua aparição no estádio de Wembley durante o Live Aid de Londres, em julho de 1985.

DEPECHE MODE – DREAMING OF ME

A galinha dos ovos de ouro descoberta pelo produtor Daniel Miller logo começou a dar bons rendimentos para seu selo Mute. Mal saiu em fevereiro de 1981 e o compacto de estreia deste quarteto, formado na cidade metropolitana de Basildon por quatro esbeltos garotos entre 19 e 21 anos, caiu nas graças dos adolescentes (e pós-adolescentes) britânicos, dando início a um culto fervoroso do Depeche Mode que se espalhou por outros continentes e permanece inabalável até hoje, quarenta anos depois. Pudera. Extremamente pegajosa, gruda no cérebro tal qual chiclete, tanto com o riff quanto a melodia do refrão. Impossível não começar a ouvir e sair dançando logo na sequência. O autor da faixa, Vince Clarke, assinava todas as composições da banda até o fim daquele ano. Obsessivo por deter todo o controle criativo, não só o autoral mas também da instrumentação dos arranjos, ele entrou em conflito com os outros integrantes, especialmente Martin Gore, que também queria começar a incluir suas criações no repertório. Clarke acabou deixando a banda logo. Foi em novembro, um mês depois do lançamento de Speak & Spell, o primeiro álbum do quarteto. Substituído por Alan Wilder (que permaneceria com o quarto elemento até 1995), Vince não tardaria a reencontrar o sucesso com outros projetos como o Yazoo, dupla formada com a cantora Alison Moyet, também residente de Basildon, e o Erasure, uma nova dupla, criada junto ao vocalista Andy Bell.

HEAVEN 17 – (WE DON’T NEED THIS) FASCIST GROOVE THANG

Assim que abandonou o barco do Human League, banda que havia colocado os primeiros pilares, o tecladista e produtor Martyn Ware não demorou a “dar o troco” no vocalista Philip Oakey. Levou consigo outro membro-fundador, o também tecladista Ian Craig Marsh, convocou o amigo de adolescência e agora disponível Glenn Gregory (também fotógrafo, a quem já havia recorrido, sem sucesso, antes de convidar Oakey para o HL) e já colocou o Heaven 17 em ação. O nome do novo projeto veio de uma banda fictícia criada pelo escritor Anthony Burgess para o romance distópico Laranja Mecânica. As letras eram baseadas em crônicas sociopolíticas e o conceito sonoro incluía o uso maciço de drum machines e sintetizadores. O primeiro resultado disso foi este singlelançado e março, um petardo esquerdista frente à suposta “alienação” de Oakey e seu desinteresse em versos politizados frente à adoção da celebração do glamour, do estilo e da vida noturna. Com uma batida construída na LinnDrum (que logo viria a se tornar um dos modelos mais populares de bateria eletrônica nos anos 1980), forte linha de baixo e uma complexa textura de barulhos e sons vinda dos sintetizadores, esta música era um grande libelo contra o recente crescimento do neoliberalismo nos dois polos do eixo anglo-americano (leia-se os recentes governos da primeira ministra Margaret Thatcher e do presidente Ronald Reagan – que até é citado nominalmente na voz de Gregory). Ware, Marsh e Gregory chamam tudo isso de “onda fascista”, metemo dedo na cara do preconceito e do racismo e chegam a tecer comparação com a popularidade de Hitler e o recente reflexo do nazismo alemão na terra arrasada da felicidade europeia. Tudo isso com um poderoso groove embalado pelo linguajar usado pelos negros americanos dos guetos dos grandes centros urbanos nos anos 1970 (iniciado pelo personagem de cinema Dolemite e que acabou moldando muita letra de funk e rap desde então). Recentemente, por causa de um Estados Unidos (des)governado pelo ainda mais extremista Donald Trump, “(We Don’t Need This) Fascist Groove Thang” foi resgatada pelo LCD Soundsystem, que a colocou em seu repertório de shows e a gravou no álbum ao vivo Electric Lady Sessions, lançado no início de 2019.

SOFT CELL – TAINTED LOVE

Era uma vez um obscuro lado b de um compacto lançado em maio de 1965 pela cantora americana Gloria Jones. A canção, completamente inspirada no som da Motown (fast tempo, sopros, base harmônica traçada pela guitarra, backing vocals femininos), não fez qualquer sucesso na época. Um DJ dos bailes de northern soul adquiriu o disco durante uma viagem aos EUA em 1973, quando Jones já havia cruzado o Atlântico e se encontrava profissional (como backing vocal) e romanticamente (namorada e futura mãe do filho de Marc Bolan) com o glam do T-Rex. Foi o que bastou para a faixa pegar fogo nas pistas do norte da Inglaterra e se transformar em grande hit. Quando o Soft Cell falhou em seu primeiro disco e a dupla de Leeds só tinha mais uma oportunidade para provar sua competência perante à distribuidora que atuava com o selo independente Some Bizarre, cujo dono também era o empresário da dupla, a cabeça instrumental da formação, Dave Ball, lembrou-se de “Tainted Love” nos bailinhos que frequentava na adolescência. Junto ao vocalista Marc Almond – que sempre teve paixão irrestrita pela música de cabaré e dividia com Ball uma certa queda por David Bowie da fase Berlim – a escolha provou ser uma opção certeira O andamento foi desacelerado, a batida ganhou um certo swing jazzy (mesmo sendo feita com padseletrônicos) e, em julho de 1981, retornou pronta e embaladinha para reconquistar as pistas. E tornou-se um furacão Transformou-se em hit do verão, alcançando os primeiros lugares das paradas em diversos países, não só do continente europeu. Nos Estados Unidos, permaneceu 43 semanas consecutivas na Billboard. Além de ganhar uma nova versão estendida para as pistas de dança (com nove minutos de duração e emendada com “Where Did Our Love Go?”, clássico do girl group da Motown Supremes, também dos anos 1960), tornou-se a mola propulsora do álbum de estreia da dupla. Non-Stop Erotic Cabaret chegou às lojas no final de novembro, emplacando outras duas faixas no Reino Unido (“Bedsitter” e “Say Hello, Wave Goodbye”), mas sem repetir a performance avassaladora no exterior. 

CABARET VOLTARE – SPREAD THE VIRUS 

Olhe ao seu redor. Está tudo uma paranoia só. O mundo anda confuso, correndo em direções desencontradas. Todos batem cabeça. Choque e confronto ocorrem por toda parte. Ninguém se entende. Cores são subentendidas como códigos de conduta, mesmo sem a intenção de sê-los. Um vírus está sendo propagado de modo incontrolável. Novas seitas evangélicas se beneficiam da tecnologia e usam todos os meios de comunicação populares disponíveis para também espalhar a sua receita de controle e doutrinação mental e espiritual. Alguma semelhança com os dias atuais? Pois bem, estas são as temáticas de Red Mecca, o terceiro álbum do então trio Cabaret Voltaire, gravado em maio de 1981 e lançado quatro meses depois. Fruto de um choque cultural ocorrido dois anos antes, quando o grupo fez uma pequena turnê pelos Estados Unidos, o disco, bastante tenso, previa o caos que estamos vivendo quatro décadas depois durante as perturbadoras colagens sonoras de ritmos, ruídos, vozes, cordas sampleadas, loops de fitas magnéticas e sonoridades desconexas de guitarras, sintetizadores analógicos, percussões e até um clarinete.  A marca da maldade humana está presente nas oito faixas deste que é considerado um dos maiores discos de música industrial de todos os tempos. A última destas faixas, “Spread The Virus” coroa o clímax do perfeito equilíbrio entre experiências e entrismo construído por uma banda verdadeiramente against the machine – não as máquinas instrumentais, mas sim o sistema que procura oprimir o ser humano de todo e qualquer jeito.

OMD – MAID OF ORLEANS (THE WALTZ JOAN OF ARC)

Discípulos fervorosos do Kraftwerk embora também nunca tenham disfarçado o gosto pela sonoridade das mandas do merseybeat dos anos 1960, Andy McCluskey (baixo, vocais) e Paul Humphreys (teclados, vocais) tiveram a sorte de emplacar um hit logo no primeiro compacto, “Electricity”, lançado em 1979. No ano seguinte, já tinham repertório e poder de fogo suficiente para lançar os dois primeiros álbuns da carreira. Mas foi somente com o terceiro, em 1981, que chegaram ao status de obra-prima. Conceitual desde o primeiro dia de gravação, Architecture + Morality revelou no mês de novembro uma banda madura e capaz de explorar, conscientemente, seus limites junto aos sintetizadores. Com a célula criativa centrada na dupla,  o álbum foi um grande risco justamente por não se parecer em nada com o que o Orchestral Manouevers In The Dark já havia feito desde então. Com algumas longas peças instrumentais construídas sobre estudos sobre ruídos e texturas sonoras, o disco também prima por trazer o mellotron para música pop, já que o instrumento, até então, era mais conhecido pelo uso por bandas psicodélicas (Pink Floyd, Beatles em “Strawberry Fields Forever”, Rolling Stones ainda com Brian Jones) e progressivas (King Crimson, Yes, Genesis, Rush), respectivamente nos anos 1960 e 1970. Uma das faixas era “Maid Of Orleans (The Waltz Joan Of Arc)”, uma poderosa balada em compasso 6/8 (daí a referencia à valsa no título) em homenagem a Joana D’Arc. O lindo clipe, sob a assinatura do então ascendente diretor Steve Barron, revela um delírio da banda com a padroeira francesa, que vai crescendo junto ao arranjo envolvente de riff grudento e à batida marcial na caixa da bateria. Esta não é a única composição dedicada a Joana D’Arc. Abrindo o lado B, logo antes dabalada citada acima, há “Joan Of Arc”, escrita por McCluskey no fim de maio, no mesmo dia em que se celebrava 550 anos da morte dela. Ambas foram lançadas em single no Reino Unido naquele ano. “Souvenir”, do mesmo álbum, também foi. Juntos, os três discos superaram a marca de oito milhões de cópias vendidas. Já o álbum acabou incensado pela crítica e eleito um dos melhores da temporada por várias publicações. Gente como Moby e Tum Burgess (Charlatans) considera até hoje Archutecture + Morality como uma das principais influências de sua vida musical.

NEW ORDER – EVERYTHING’S GONE GREEN

Transição foi a palavra que melhor definiu a temporada inicial do New Order. Quando Ian Curtis matou-se em 18 de maio de 1980, às vésperas de embarcar para a primeira turnê marcada pelos Estados Unidos, a carreira do Joy Division estava em uma bela curva ascendente, com Closer, o segundo álbum da banda, prestes a chegar às lojas, assim como aquele que viria se transformou no grande hit do quarteto, o single “Love Will Tear Us Apart”. Das cinzas do Joy Division, os três membros que restaram construíram o New Order, adicionando uma tecladista oficialmente e passando a adotar, sob o comando do agora vocalista Bernard Sumner, um direcionamento mais frequente rumo aos sintetizadores (que já começavam a aparecer com mais frequência nos arranjos das últimas gravações do JD) e drum machines. O trabalho em estúdio continuou junto à gravadora Factory e ao produtor Martin Hannett, o que permitiu um desenvolvimento identitário durante as gravações, inclusive começando por um single extraído do repertório final do JD (“Ceremony” teve a sua primeira execução ao vivo no último show com Ian Curtis). Juntados os cacos, o ano de 1981 foi bastante prolífico em resultados. Rendeu três singles e um álbum de estreia (Movement, com oito faixas não incluídas nestes compactos). O último deles, “Everything’s Gone Green”, lançado em dezembro, já deixava claro o caminho que o quarteto iria percorrer nos dois próximos anos. Resultado de um processo turbulento de gravação por conta do desgaste provocado pela metodologia nada ortodoxa no estúdio utilizada por Hannett (que nunca mais voltaria a trabalhar com a banda), a faixa começa turbinada pelo casamento de bateria eletrônica com o baixo de Peter Hook cumprindo as missões de traçar melodia e harmonia. Depois de versos ainda assombrados pela tragédia ocorrida com Curtis (como “It seems like I’ve been here before” e “Won’t you show me, please show the way” são repetidos de modo assustador), chega o êxtase promovido pela pajelança de percussões manuais em cima do loop rítmico. A gênese dos vindouros big hits “Temptation” e “Blue Monday” está todinha lá.

HUMAN LEAGUE – DON’T YOU WANT ME

Não bastasse a temporada magnífica do synth pop durante todo o ano, em dezembro veio o tiro de misericórdia. Quarto single do álbum Dare (e o primeiro a chegar às lojas depois do disco já ter sido lançado), “Don’t You Want Me” alcançou o topo das paradas britânicas na semana do Natal e vendeu mais de um milhão e meio de cópias. O êxito acabou se repetindo do outro lado do oceano. Impulsionada pelo belíssimo videoclipe, veiculado à exaustão pela MTV americana nos meses seguintes, a faixa ganhou também as rádios FM do país e chegou ao primeiro lugar da Billboard em julho do ano seguinte, onde permaneceu por três semanas, e a uma indicação ao Grammy de artista revelação em 1983. O sucesso massivo coroou a queda de braço vencida pelo vocalista Philip Oakey com o tecladista, líder e fundador da banda Martyn Ware. Insatisfeito com o caminho turbulento do grupo até então, que nos discos anteriores havia apostado em uma sonoridade mais experimental e menos acessível e, por conta disso, havia fracassado em vendas e feito turnês nem tão bem sucedidas assim, Oakey se propôs a arcar com todos os compromissos e dívidas acumuladas junto à gravadora. Ware fez suas malas e deixou a banda, que pôde se direcionar a um caminho mais pop com seus sintetizadores, agora adicionando nos vocais de apoio duas adolescentes que sequem tinham terminado o colégio. A aposta de Oakey logo se confirmou no primeiro single, lançado em abril, chamado “The Sound Of The Crowd”. O novo Human League vinha embalado para as pistas de dança com muito estilo no visual, letras sobre nightlife dos grandes centros urbanos no talo (bebidas, festas, relacionamentos) e chega ao ápice em “Don’t You Want Me”, a última faixa do lado B e o quarto dos singles lançados pela banda naquele ano. A letra retrata uma DR de um casal no melhor esquema “ele disse, ela disse”. Primeiro vem a posição masculina, dotada de toda pompa machista, discursando que ela não deve deixa-lo porque foi ele o responsável pela realização profissional da moça. Depois vem a voz dela, rebatendo o blá blá blá possessivo, dizendo que chegaria a todo e qualquer lugar, independentemente de qualquer homem por trás. O clipe dirigido por Steve Barron em película cinematográfica de 35mm para a faixa reflete o glamour do novo HL. A narrativa do vídeo funciona como um making of de um longa-metragem de crime e suspense, no qual a atriz principal é a vocalista Susan Ann Sully e o diretor, Oakey. Entre as influências declaradas da obra estão A Noite Americana (de 1973, do francês François Truffaut), Nasce Uma Estrela (a versão de 1954, do diretor George Cukor, com Judy Garland) e, claro, o recente clipe de “Vienna”, do Ultravox. Vale lembrar também que, por causa deste trabalho com o Human League, Barron foi escolhido por Michael Jackson para dirigir “Billie Jean” em 1983, e também assinou trabalhos de OMD (“Maid Of Orleans”), Toto (“Africa”, “Rosanna”), Simple Minds (“Promised You a Miracle”), Tears For Fears (“Pale Shelter”), Rod Stewart ( “Baby Jane”), Madonna ( “Burning Up”), David Bowie (“Underground”) e Paul McCartney (“Pretty Little Head”). Suas obras mais conhecidas – e que também revolucionaram o mundo dos vídeos musicais – são ambas de 1985: “Take On Me” (A-ha) e “Money For Nothing” (Dire Straits).

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New Order – ao vivo

Quinteto formado a partir das cinzas do Joy Division mostra, em Curitiba, como a música pop pode ser transformada em obra de arte

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Texto por Abonico R. Smith

Fotos de André Mantra (CenaLowFi)

Você já foi a algum museu para realmente apreciar alguma obra de arte exposta ali? Se a resposta for positiva, deve saber bem disso. Você se perde por um bom tempo parado diante do quadro e se esquece dos ponteiros do relógio. Olha aqui, ali, acolá. Analisa sinais deixados pelo artista: luz e sombra, cores, simbologia, perspectiva, composição de elementos, construção das linhas, forma das pinceladas. Reconhece traços, faz analogias, arma sinapses cerebrais. Volta a olhar com mais atenção para algum detalhe específico. Faz dos pequeninos prazeres diante da obra de arte algo que nunca mais será esquecido para o resto da vida.

Presenciar um show do New Order é como estar diante de uma obra de arte. Pode durar o tempo que for que você nem se dá conta de quanto ficou ali e ainda acha que tudo isso poderia ter durado ainda mais. É uma experiência sensorial que mexe tanto com seus olhos quanto os ouvidos. E vai além: ainda faz chacoalhar todo o seu corpo, quando os graves e batidas bate e reverberam nele. Fica impossível resistir parado ali na frente de Bernard Sumner (guitarra, teclados e voz), Gillian Gilbert (teclados), Stephen Morris (bateria, pads e programações) mais os novos asseclas Tom Chapman (baixo) e Phil Cunnigham (guitarra, teclados e pads). Afinal, o grupo criado em Manchester no comecinho dos anos 1980, a partir das cinzas do Joy Division, consegue a mágica perfeita para reproduzir, ao vivo, o ponto exato de fusão entre o rock com guitarras e a dance music eletrônica.

O que se viu em Curitiba na noite do último domingo 2 de dezembro – fechando uma miniturnê brasileira que já havia passado por São Paulo e Uberlândia (MG) – foi justamente isso. Por pouco mais de duas horas, o hoje quinteto promoveu no palco da Live uma demonstração de como elevar a sempre banalizável música pop ao status de obra de arte. Com um extenso repertório que passava a limpo seus dez álbuns lançados entre 1981 e 2005, o New Order mostrou o quanto uma banda pode não apenas envelhecer com dignidade como também ainda ser capaz de provocar o corpo alheio, causando-lhe movimentos involuntários e arrepios. Sem falar nos versos, quase sempre curtos e de temática cotidiana, que fazem as vezes dos elementos pictóricos impressionistas no conjunto do trabalho da banda.

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A turnê Performance 2018 é um show de sons e imagens. Cada música é acompanhada por um videoclipe específico, que provoca interação gráfica com a canção executada. O gosto pelo complemento visual, por sinal, sempre acompanhou a trajetória da banda. As capas de seus álbuns e singles no período do selo indie Factory eram obras-primas criadas pelo designer Peter Saville, que era um dos sócios da empreitada ao lado do lendário jornalista, entrepeneur e maluco de carteirinha Tony Wilson. Os novos vídeos se alternam entre filmagens históricas (como os registros de uma Berlim Ocidental pobre, rebelde e ainda dividida pelo Muro, que aparecem como pano de fundo para a belíssima “Singularity”), hipnóticas brincadeiras com grafismos (“Plastic”; “Vaishing Point”; “Blue Monday) ou experimentações plásticas (o salto de trampolim que abre o show enquanto os músicos entram no palco; a fictícia banda Killers montada para o clipe oficial de “Crystal” e acabou por batizar o grupo formado em Las Vegas por Brandon Flowers e seus amigos). Já na área das programações eletrônicas, grandes sucessos como “Bizarre Love Triangle”, “The Perfect Kiss” e “Blue Monday” aparecem ligeiramente modificados, mas ainda assim perfeitamente reconhecíveis para a plateia se esbaldar de cantar junto e dançar enquanto se sente parte integrante do Haçienda, clube noturno que levava o rock às pistas de dança em Manchester nos anos 1980 e 1990.

Bernard Summer, já sexagenário, chutou em definitivo para longe toda aquela timidez de outrora. Comanda hoje o quinteto como um verdadeiro bandleader. Interage discretamente com a plateia mas marca presença como o centro das atenções até mesmo quando não canta ao microfone. Sua performance de tiozinho descolado dançando desajeitadamente na festa de casamento como se não houvesse amanhã até ganha um charme a mais. O fato de ter trazido os amigos Cunningham e Chapman (com quem tocara no Bad Lieutenant, formado entre 2008 e 2011, no período de hiato das atividades do New Order, lhe deu mais segurança e confiança para se jogar na função de vocalista. Os dois integrantes mais recentes, por sua vez, são irrepreensíveis ao formar o complemento ideal dos instrumentos de corda. Tom até faz a galera não sentir qualquer falta do histórico Peter Hook, criador de linhas de contrabaixo fantásticas para a banda.

Não bastasse ter uma fantástica carreira para montar o set list, o New Order retorna para o bis para brindar seus fãs já inebriados por tanta beleza. Para finalizar a noite, a banda ainda manda um conjunto de três canções clássicas do Joy Division. “Love Will Tear Us Apart” fecha a festa com clima mais “felizinho” que a gravação original (com direito a declarações de amor à banda de Ian Curtis no telão). “Decades”, a última faixa do álbum Closer, a antecipa com algumas fotos impactantes do falecido vocalista e seu olhar penetrante.

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Mas o que castiga mesmo o coração é o comeback com “Atomsphere”. Tudo bem que o fiapo de voz de Sumner fica bem distante de toda a densidade do vozeirão barítono de Curtis, mas isso não é empecilho para que a canção – enriquecida pela exibição do emocionante e póstumo clipe original dirigido pelo fotógrafo “oficial” da banda, o holandês Anton Corbijn – seja arrebatadora e ainda continue provocando aquele frio que anda por toda a espinha. Definitivamente naquele 18 de maio de 1980 o frontman do Joy Division não foi embora e muito menos se afastou da vida em silêncio. Não só ele está aí até hoje, mexendo e provocando sentimentos e sensações às pessoas, como também deixou como legado – um deles de modo indireto – duas bandas de rock que são obras de arte a serem apreciadas pela humanidade para todo o sempre.

Set list: “Singularity”, “Regret”, “Age Of Consent”, “Restless”, “Crystal”, “Academic”, “Your Silent Face”, “Tutti Frutti”, “Subculture”, “Bizarre Love Triangle”, “Vanishing Point”, “Waiting For The Sirens’ Call”, “Plastic”, “The Perfect Kiss”, “True Faith”, “Blue Monday” e “Temptation”. Bis: “Atmosphere”, “Decades” e “Love Will Tear Us Apart”.

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New Order

Oito motivos para não perder o show do histórico grupo que nasceu nas cinzas do não menos histórico Joy Division

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Texto por Abonico R. Smith

Foto: Divulgação

Vai ter New Order de novo no Brasil agora neste fim de 2018. Só que desta vez não será em um grande festival ou em locais abertos para plateias grandiosas. A banda que ajudou a colocar a cidade de Manchester no primeiro escalão do rock mundial logo no comecinho dos anos 1980 vem ao país para fazer três apresentações. A primeira será no Espaço das Américas, em São Paulo, no dia 28 de novembro (mais informações aqui). Depois, o quinteto parte para duas cidades onde jamais tocaram antes. No dia 30, será a vez da arena Sabiazinho, em Uberlândia, na região do Triângulo Mineiro (mais informações aqui). A última escala brasileira se dará na Live Curitiba em 2 de dezembro (mais informações aqui)

Por isso, o Mondo Bacana preparou uma relação de oito motivos para você não perder o show que fará você dançar como nunca dançou sem deixar de olhar para um quinteto de músicos tocando os seus instrumentos, que incluem guitarras e um contrabaixo nada usual no meio de sintetizadores e percussões eletrônicas.

Joy Division

Às vésperas de embarcar com a banda para os Estados Unidos, o vocalista e letrista Ian Curtis, 23 anos, enforcou-se em sua casa nos arredores da cidade de Manchester, no dia 18 de maio de 1980. Desta maneira trágica, encerrava-se assim a promissora carreira de uma banda que estava começando a ser hypada pela imprensa musical britânica e ficando conhecida também fora do Reino Unido. Vale lembrar que o maior sucesso gravado pelo Joy Division não havia sequer saído em disco. A faixa “Love Will Tear Us Apart” chegou às lojas como um single no subsequente mês de junho e não foi incluída no álbum Closer, o segundo da breve carreira, lançado em julho. Por muito tempo o New Order não se rendeu à ideia de incluir a canção no set list de seus shows. Felizmente, de uns anos para cá, a banda reviu seus conceitos e hoje a masterpiece de Ian Curtis é um dos pontos altos do final de cada apresentação. Na atual turnê, o bis ainda costuma ser composto por outras músicas do Joy Division, como “Atmosphere”, “She’s Lost Control”, Disorder” e “Decades”.

Rock para dançar

Lá no comecinho dos anos 1980, quando os sintetizadores pareciam reinar absolutos nas novas tendências da música pop britânica, os três remanescentes do Joy Divison (o guitarrista e agora vocalista Bernad Sumner, o baixista Peter Hook e o baterista Stephen Morris) adicionam a então namorada e futura esposa de Morris Gillian Gilbert nos teclados, para estabelecer uma nova ordem sonora: a junção de batidas eletrônicas feitas para dançar com riffs, linhas e acordes de guitarras. Por cima de tudo, algumas pequenas cantadas. Foi o que bastou para que o New Order antevisse a união do rock com a dance musicque viria a se tornar extremamente popular no final da mesma década entre os jovens britânicos. Programações, baterias e percussões eletrônicas, muitos sintetizadores de um lado. Do outro, as afiadas guitarras de Sumner e as potentes linhas melódicas traçadas nas casas mais agudas do baixo de Hook.

Peter Saville

As capas elaboradas por Peter Saville para os discos do New Order lançados pelo selo independente Factory são verdadeiras obras de arte. “Ali tive uma liberdade sem precedentes no designde comunicação. Nós viviamos um ideal, sem nos basear em negócios para cada ação. Foi um fenômeno”, comentou o designer, que também era um dos sócios do jornalista e maluco de carteirinha Tony Wilson no selo. Para o álbum de estreia Movement (1981), a inspiração veio de um pôster do futurista italiano Fortunato Depero, brincando com várias cores de acordo com cada formato e mercado do lançamento. Em Power, Corruption & Lies (1983), a opção foi pela reprodução da natureza-morta pintada pelo renascentista francês Henri Fantin-Latour, hoje pertencente ao acervo do museu da National Gallery, de Londres. Para Low-Life (1985), projetou um capa dupla, com o retrato de um integrante em cada uma das quatro capas. Na frente, junto ao título, vinha o baterista Stephen Morris. Posteriormente, em versões em CD, é permitido a você trocar e escolher o seu membro preferido junto ao nome da obra. As primeiras edições de Brotherhood (1986) traziam a foto de uma folha de liga de titânio e zinco e ainda uma capa metálica para se guardar o disco. Já para a capa de Technique (1989) Saville alugou de um antiquário a estátua de um querubim para se colocar em um jardim. “É uma imagem muito bacana, que se ajustou ao momento anterior ao último crash financeiro e ao novo hedonismo movido a drogas envolvido na cena musical”, segundo o britânico. “É também meu primeiro trabalho irônico: todas as capas anteriores eram de algum modo idealistas e utópicas. Eu tive essa ideia de que arte e design poderiam tornar o mundo um lugar melhor. Que mesmo os pontos de ônibus poderiam ser melhores. De certa forma, também é bem neo-Warhol.”

“Blue Monday”

Talvez as gerações mais novas, que cresceram acostumadas à compactação sonora do formato MP3 e à facilidade de disseminação dos mesmos através da internet, não tenham tanta noção assim do que possa ter significado este recorde estabelecido entre 1983 e 1984 pelo New Order e nunca mais quebrado. Lançado na versão vinil doze polegadas (o mesmo tamanho de um long play), o single atingiu a marca, somente no mercado britânico, de 1,16 milhão de exemplares físicos comercializados, tornando-se o mais vendido (em vinil) da História do mercado fonográfico. Marca esta impensável para um simples compacto de uma música voltada às pistas de dança, por sinal. A capa deste single também foi uma brilhante ideia de Saville: a reprodução do visual de um daqueles primeiros disquetões utilizados em computadores até o comecinho dos anos 1990.

Assim no palco como nos estúdios

Com exceção de “Bizarre Love Triangle”, que transforma a plateia de cada show em pista de dança de clube noturno mas apela em demasia para as batidas pré-gravadas, todo o resto da sonoridade é reproduzido com extrema fidelidade às gravações originais, o que torna a banda ainda mais potente quando ela sobe em um palco. Vale lembrar que o New Order é um quinteto desde 2001, com a adição de Phil Cunningham, que se divide entre sintetizadores, guitarras e percussões eletrônicas. Também é compensada a ausência de Peter Hook, que brigou com Sumner em 2007 e desde então se dedica a excursionar com uma banda própria tocando ao vivo os clássicos do Joy Division e do New Order e escrever livros sobre o seu passado nas duas bandas. Adicionado em 2011, o novo baixista Tom Chapman dá conta do recado tanto nos clássicos como nos arranjos no álbum que gravou junto à banda (Music Complete, de 2015).

Títulos de pinturas impressionistas

Você já reparou que o nome de várias músicas do New Order sequer são citados em suas respectivas letras? Além de  “Ceremony”, canção resgatada do repertório do Joy Division e com letra desenhada por Ian Curtis, podem ser incluídas nessa lista “Bizarre Love Triangle” (onde sequer a palavra “love” é mencionada), “Love Vigilantes” (novamente sem a presença do vocábulo “love”), “Temptation”, “True Faith”, “Blue Monday”, “Your Silent Face”, “Everything’s Gone Green” e “Thieves Like Us”. A ligação do New Order com as artes plásticas e gráficas não se resume somente às capas de seus discos: títulos como estes parecem nomes de pinturas impressionistas que seriam dignas de estar em exposição nas paredes do Musée d’Orsay, em Paris.

“Bizarre Love Triangle”

São apenas duas estrofes e um refrão (com direito a interlúdio instrumental antecipando a explosão do primeiro refrão, algo que poucas bandas ousariam arriscar a colocar em qualquer arranjo), depois mais outras duas estrofes e o mesmo refrão repetido. A estrutura da composição – criada em cima de três únicos acordes – é de uma simplicidade só. Porém, como menos é mais, não há como deixar de admitir a beleza de toda a canção. Primeiro porque os versos, bastante imagéticos, tratam de maneira breve e direta todo um estado de confusão mental com dum pezinho no romantismo e o outro na religiosidade. A canção nunca chegou a escalar altos degraus no hit parade britânico quando foi lançada em 1986 e relançada em 1994, mas volta e meia rende boas releituras. As mais conhecidas dos brasileiros são a cara bossa nova dada pelo projeto francês Nouvelle Vague e a transformação em balada voz-e-violão assinada pelo quarteto australiano Frente!, cujo clipe chegou a ter boa veiculação na MTV tupiniquim. Mas Scarlett Johansson já a regravou e Brandon Fowers a tocou ao piano em alguns shows do Killers. Black Eyed Peas, Nada Surf e Echosmith foram outros que arriscaram fazer um cover da música. Até para o mandarim “Bizarre Love Triangle” já foi vertida.

“The Perfect Kiss”

A música é  irresistível, mas o videoclipe feito em 1985 pelo cineasta Jonathan Demme (que anos depois ganharia o Oscar com O Silêncio dos Inocentes) consegue ser ainda mais icônico. Ele flagrou a banda fazendo uma performance desta música ao vivo em um estúdio de ensaio. É tudo e cabo a rabo, em pouco mais de nove minutos. Quatro câmeras focalizam as compenetradas expressões faciais dos quatro integrantes. Outras pegam detalhes pontuais, como o solo mequetrefe de Sumner na guitarra, a poderosa e agudíssima linha de baixo de Hook, as texturas de Gilbert nos teclados (que vão de acordes a inusitados sons de buzinas, freadas e batidas de automóveis). Bem… E quanto a Morris? O baterista só aparece no vídeo nos closes de seu rosto. Foi o que restou a Demme quando este soube, de última hora, que toca a bateria era previamente toda programada.