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Jardim dos Desejos

Paul Schrader encerra sua trilogia de homens atormentados pelo passado com outra história ligada ao submundo de drogas e violência

Texto por Abonico Smith

Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Quando se fala naquela geração do cinema contracultural dos anos 1960 e 1970, que salvou Hollywood da bancarrota e da destruição criativa, costumam ser citados com frequência autores como Dennis Hopper, Francis Ford Coppola, Peter Bogdanovich, Robert Altman, Steven Spielberg, George Lucas e Martin Scorsese. Entretanto, pouca gente se lembra de Paul Schrader. Roteirista e diretor, ele fez obras-primas como Taxi Driver (1975) e Touro Indomável (1980) – ambos na primeira função apenas – mais Hardcore: No Submundo do Sexo (1979) e Gigolô Americano (1980) – jogando dos dois lados. Poucos anos depois, também assinou o roteiro de outra pérola dirigida por Martin Scorsese, A Última Tentação de Cristo (1988).

Nos últimos anos, Schrader tem se mostrado um nome bastante ativo no cinema, concebendo um título após o outro, em curtíssimo intervalo de tempo. Em 2017, ele iniciou uma espécie de trilogia com protagonistas atormentados pelo passado e que possuem a chance de recomeçar a vida em meio à sordidez que os seres humanos insistem em varrer para debaixo do tapete. Em Fé Corrompida (2017), um ex-capelão militar vivido por Ethan Hawke, fica emocionalmente abalado depois da morte do filho em serviço nas forças armas e encontra numa igreja protestante de Nova York uma oportunidade de refazer seus caminhos espirituais. O Contador de Cartas (2021) traz o protagonista vivido por Oscar Isaac, também militar e jogador de cartas, que procura redenção de blefes e truques sujos de outrora treinando um jovem e tentando mantê-lo no caminho certo para vencer um importante torneio de pôquer em Las Vegas.

Na semana passada, Schrader teve seu mais recente longa-metragem, Oh Canadá, exibido no Festival de Cannes. É uma história que retrata, de uma certa maneira, sua experiência de quase morte após os efeitos da covid longa sofridos pelo cineasta nos últimos anos. Paul não morreu, mas quase deixou como criação derradeira o encerramento da tal trilogia, um filme lançado nos cinemas lá fora há dois anos e que só agora chega ao Brasil em circuito nacional.

Jardim dos Desejos (Master Gardener, EUA, 2022 – Pandora Filmes) é centrado na vida recente de Narvel Roth (Joel Edgerton), um horticultor de excelência cujo trabalho dia após dia é cuidar do terreno de uma grande propriedade. Além das questões estéticas, sua patroa empenha-se em fazer de sua Gracewood um sinônimo de referência no universo das plantas e flores. Por isso, Narvel dirige com rigidez uma equipe de jardineiros para que tudo saia a gosto da viúva rica e solitária Norma Haverhill (Sigourney Weaver), que não poupa palavras ríspidas e agressivas quando quer mostrar seu descontentamento com alguma coisa.

A aparente calmaria e normalidade do dia a dia da propriedade muda de uma hora para a outra com a chegada da sobrinha-neta de Norma, que, na ausência da irmã, quer mantê-la por perto após a trágica morte precoceda mãe dela. Descendente de negros e habitante de um gueto barra-pesada dominado pelo tráfico de drogas, Maya (Quintessa Swindell) tem como missão ser uma aprendiz de Narv. Para afastá-la de outra possível tragédia, agora envolvendo a própria jovem, a milionária se propõe a bancar um salario mínimo e motorista para trazê-la e leva-la de volta do trabalho. Entretanto, a motivação de Haverhill encontra uma contrabalança com a questão social e familiar, não escondendo um tanto de aversão em relação à garota por conta de seu histórico familiar, sua pele e o vício.

Em ritmo lento, o diretor e roteirista começa a fazer analogias entre conceitos da jardinagem e os caminhos que a vida faz tudo tomar neste mundo, inclusive as pessoas. Pouco a pouco, o espectador se vê mergulhado nas questões pessoais que afligem a trica de personagens principais. Narv, na verdade, é uma segunda identidade assumida por um antigo membro de uma gangue neonazista. Ao esconder as tatuagens que escancaram as lembranças de um passado repugnante, o mestre-jardineiro se vê combalido em enfrentar o que era e conviver com o novo futuro pela frente, com Maya em seu caminho.

Schrader é um exímio criador de personagens e tramas ligadas ao submundo e envolvendo típicos tipos brancos estadunidenses, como todos sabemos desde os clássicos dirigidos por ele e por Scorsese na segunda metade da década de 1970. Então, a beleza e a exaltada perfeição do jardim botânico particular vão se desgastando e dando lugar a uma tensão constante, capaz de redefinir atos e posturas de Narv, Norma e Maya, levando-os ao risco de sofrer reveses e até mesmo perderem suas vidas. O leve drama inicial passa a ser bastante sombrio, crivado por balas e confrontos de todos os tipos. Vingança e redenção são as duas palavras que mandam na segunda metade.

Jardim dos Desejos não chega a ser uma obra-prima como aquelas assinadas por Paul Schrader no início de sua carreira. O formato utilizado para o desenvolvimento da trama é convencional, com o uso de fórmulas algumas vezes previsíveis e outras bem surradas no cinema de Hollywood. Mas também o desfecho da trilogia de homens atormentados pelo seu passado é uma obra não só digna e envolvente, capaz de prender a atenção, do início ao fim, de quem a assiste. Mesmo requerendo um pouco mais de surpresas ou criatividade de outrora do realizador.

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Coração de Neon

Filme independente acerta ao fugir da Curitiba para turistas e levar às grandes telas a vida e as ruas periféricas do Boqueirão

Texto por Abonico Smith

Foto: IHC/Divulgação

Estreia nesta quinta-feira nos cinemas de Curitiba e outras capitais brasileiras mais uma produção feita por profissionais da área que são e vivem na capital paranaense. Coração de Neon (Brasil, 2023 – International House of Cinema), entretanto, corre o risco de ser o mais curitibano de todos os filmes que, recentemente, estão colocando a cidade no mapa nacional.

Misturando elementos de drama, comédia e ação, o filme foi rodado em 2019. Correu alguns festivais, ganhando inclusive prêmios em alguns destinados a produções iniciantes, e ganhou diversas matérias em televisões, sites e rádios locais a respeito do fato. A expectativa em torno de sua estreia chega ao fim no dia de hoje, quando muita gente da cidade – especialmente quem mora ou já morou no Boqueirão – pode se ver, enfim, representado na grande telas das salas de projeção.

Mondo Bacana dá oito motivos para você não perder a oportunidade de assistir à obra. Que não fala só de e para quem está na capital paranaense. Consegue transpassar a localização geográfica e contar uma história universal, mas sem abrir mão de pinceladas bem curitibanas. O que ainda é raro de se ver no cinema independente nacional.

Novo polo de cinema

Curitiba , claro ainda está distante do volume de produções de outras cidades brasileiras fora do eixo Rio-São Paulo, como Porto Alegre, Recife ou Brasília, claro. Mas já se começa a perceber uma movimentação mais frequente de produções feitas para cinema, streaming e internet por aqui. Realizadores como Aly Muritiba, Paulo Biscaia Filho, Gil Baroni, Ana Johann, Heloisa Passos, Willy e Werner Schumann volta e meia aparecem com alguma (boa) novidade. Muritiba, inclusive, chegou a quase disputar o Oscar por duas vezes. Agora é a vez do trabalho de estreia em longa-metragem de Lucas Estevan Soares chegar às salas de projeção. Para uma grande cidade que possui boas opçòes de graduação e pós em cinema, é fundamental que se crie um mercado constante de trabalho para profissionais da área

Faz-tudo

Lucas Estevan Soares é quase onipresente na ficha técnica de Coração de Neón. Ele não é apenas o diretor do filme. Assina também produção executiva, roteiro, montagem e trilha sonora, cantando e compondo várias das músicas feitas para esta produção. Não bastasse se virar feito o Multi-Homem dos Impossíveis do desenho animado de Hanna-Barbera, ele ainda é o protagonista da história. Rapaz de versatilidade e talentos distintos.

Cinema de guerrilha

Não foi só Lucas a função de coringa neste filme. Por trás das câmeras, houve um trabalho hercúleo de apenas doze pessoas envolvidas no set de filmagem, o que exigiu acúmulo de funções técnicas. Isso fez com que Lucas cunhasse para a obra o status de “cinema de guerrilha”. Orçamento baixo (R$ 1,6 milhão, segundo o autor), bem verdade, mas diante das condições econômicas do país nos últimos quatro anos (leia-se o período em que houve desgoverno em Brasília e um intencional corte de apoio às artes) foi feito o possível para conseguir a verba necessária para a produção e a pós-produção. Sem falar no fato de que nenhuma grana de captação de qualquer lei de incentivo foi usada aqui. Mas o que poderia se tornar um grande empecilho, na verdade, tornou-se trunfo para Coração de Neonbrilhar na tela imbuído num total espírito punk. Do it yourself no talo, concebido com o que se tinha na mão, muitas vezes recorrendo ao uso da criatividade para driblar a adversidade.

Muito além do olhar do turista

Qual é a imagem que a capital paranaense transmite a quem não vive nela? Curitiba é encarada além de suas fronteiras como uma cidade exemplar, que contrasta com muitas outras regiões e localidades do país. Certo? Não. Jardim Botânico, Ópera de Arame e outros pontos turísticos podem ser muito belos aos olhos de quem vem de fora e anda pelo ônibus verde double decker, mas a cidade não é só isso. Vai bem além e, por isso, mostra-se uma decisão acertadíssima de Soares mostrar o que está na periferia. Para começar, a história se passa toda no bairro do Boqueirão, onde tudo também foi filmado e de onde vieram as origens familiares de Lucas Estevan Soares – muito do que se vê vem de parte da história da própria vida dele. Neste long estão as casas simples de famílias de classe média da região, a torcida organizada e para lá de fanática pelo futebol amador, as furiosas brigas desses torcedores em estações-tubo e terminais de ônibus, as mensagens de amor transmitidas por chamativos carros coloridos, o garoto sonhador que gosta de rock e tem cabelos compridos, o pai empreendedor, a guria casada que leva uma pacata vida de dona de casa, o vendedor de algodão doce que caminha tranquilamente pela rua do bairro e ainda o carro dos sonhos (de comer, claro).

Trilha sonora

Se o filme fala sobre o Boqueirão, claro que não poderia faltar rap nele. E dos bons. O canto falado dos MCs não estampa somente a frente de algumas das camisetas mais bacanas do figurino utilizado por Dinho, o coadjuvante que ancora as ações do protagonista Fernando. Tem também duas faixas incluídas na trilha sonora que dão peso e um charme todo especial a momentos-chaves da trama. Uma delas vem embalada pelas vozes dos irmãos gêmeos PA & PH. A outra é trazida pela libertação feminina cantada em versos e rimas pela brasiliense Belladona. A cantora pode não ser de Curitiba, mas sua canção “Coração de Neon” não apenas se encaixou como uma luva na narrativa como também acabou dando nome ao filme. Ela inclusive veio ao Boqueirão para rodar o videoclipe para a música sob a direção de Soares (que também participa das imagens como ator e ainda empresta o carro carinhosamente chamado de Boquelove em várias cenas). Como já disse Karol Conká – que, por sinal, também veio do Boqueirão, é do gueto ao luxo, do luxo ao gueto.

Violência contra a mulher

Arte é entretenimento mas também pode cumprir uma função bem maior quando possível. Deve servir para questionar e transformar o mundo ao redor. Coração de Neon acerta em cheio ao incluir como cerne de sua trama um dos eventos infelizmente ainda muito corriqueiros na sociedade brasileira: a violência contra a mulher. A cada dia o noticiário da vida real conta a história de muitos feminicídios. Na ficção curitibana, o companheiro ultraviolento, armado e sem o mínimo de equilíbrio emocional no trato com outras pessoas (especialmente se forem do gênero feminino) está presente levando a tensão necessária para várias sequências mostradas em tela. Lógico que a trama gira ao redor de seus atos, que ainda são engrossados por um coro de machismo e misoginia que corrobora com a triste situação. 

Elenco com caras novas

Este não é apenas o filme de estreia de Lucas Estevan Soares. Quase todo o elenco também faz sua primeira participação cinematográfica. São atores vindos do palco curitibano, que sempre foi muito feliz em revelar grandes nomes para a dramaturgia nacional. Se na última década a cidade exportou para as produções de TV, cinema e teatro do eixo Rio-São Paulo, a renovação de bons nomes vem sendo feita para que uma nova geração de qualidade não deixe passar em branco a condição de celeiro que a capital paranaense sempre teve. Tanto que todo ano um grande festival movimenta intensamente os palcos daqui por duas semanas cheias. No caso de Coração de Neon, deve-se prestar atenção aos nomes de Ana de Ferro (que interpreta Andressa, a jovem agredida pelo companheiro com quem divide a casa), Wenry Bueno (o guarda noturno que rivaliza com o trio de personagens centrais da história) e Wawa Black (Dinho, o amigo de fé e irmão camarada de Fernando). Mesmo atuando em poucas cenas, Paulo Matos (Lau, o pai de Fernando e criador do carro que leva as mensagens de amor pelas ruas do Boqueirão) também se destaca.

Iconografia curitibana

Quando se fala em Curitiba é impossível não pensar no Oil Man visto só de sunga pelas ruas mesmo no frio extremo do inverno. Ou no super-herói Gralha. Ou então na capivara, bicho comum nas redondezas do Parque Barigui que se tornou o animal-símbolo da cidade. Agora esta galeria iconográfica ganhou mais um integrante: o antigo corcel azul customizado por Lau e Fernando, carinhosamente chamado por este último como Boquelove. Tanto que Lucas agora leva o automóvel para onde pode, sempre no intuito de chamar a atenção para o filme em eventos pela cidade.