Music

A-ha – ao vivo

Abismo na relação entre os três músicos deixa o show dedicado ao álbum de estreia morno e aquém da devoção dos fãs brasileiros

Textos por Abonico Smith (Curitiba) e Fabio Soares (São Paulo)

Foto: Abonico Smith

Se existe uma plena certeza no mundo da música pop ela se encontra na implacabilidade do tempo. Para o bem e para o mal. No primeiro caso, ele corrige injustiças e acaba vir a determinar que um disco ou artista que porventura tenha passado meio em branco no passado seja descoberto e passe a se tornar algo bem influente para as gerações posteriores. Tom Zé e, mais recentemente, Kate Bush são bons exemplos disso. No segundo, o tempo age para desgastar a química inicial que deu certo e encantou muita gente lá no inicio. Acontece quase sempre com bandas. Quando há duas ou mais pessoas envolvidas na mesma carreira, é bem provável que no decorrer dos anos comecem a aparecer conflitos de interesse, mudanças de percepções e divergências de vontades. Fora da música, é como se distanciar daquelas amizades de infância e adolescência que sempre habitaram a nossa memória. Você pode lembrar as pessoas com carinho só que a dureza da vida adulta e a transformação das personalidades faz tudo esfriar de um jeito que voltar atrás e continuar aquela proximidade de outrora é tão impossível quanto parar os ponteiros do relógio.

Com o A-ha foi exatamente isso o que ocorreu. Com quase quarenta anos de trajetória nas costas, o trio norueguês conquistou o sucesso com um punhado de músicas gravadas nos primeiros quatro álbuns, espalhados no intervalo de meia década (entre 1985 e 1990). De lá para cá vieram mais alguns discos, muitas brigas e desavenças internas, duas separações acompanhadas por projetos solo e o retorno à manutenção da marca por meio de viagens pelo mundo. A última delas, que somou passagens por seis cidades brasileiras e sete apresentações ao vivo, foi determinante para que se revelasse em cima do palco toda a distância que hoje existe entre Morten Harket (vocais), Magne Furuholmen (teclados e violão) e Pal Waaktaar-Savoy (guitarras e violão). Em Curitiba, escala final da turnê que comemorava os 35 anos do álbum de estreia Hunting High And Low (na verdade, a vinda ao nosso país estava marcada para o segundo semestre de 2020, mas dois adiamentos aconteceram por conta da extensão da pandemia da covid-19), fico mais do que evidente esse abismo todo entre os três. O documentário A-ha: The Movie, lançado agora nos cinemas europeus e exibido em junho pelo festival In-Edit Brasil, já entregava que os camarins são separados e os três raramente aparecem na mesma cena durante entrevistas e flagrantes de imagens de bastidores. Na capital paranaense, ele mal se falavam ou olhavam em cima do palco montado atrás de um dos gols da Arena da Baixada. Também não se abraçaram. Nem no encerramento, durante o agradecimento ao público, o que costuma ser algo corriqueiro quando se trata de um grupo de rock.

Juntar os três em uma mesma fotografia não era algo tão fácil em virtude da logística montada no estádio do Athlético Paranaense. De qualquer maneira, a melhor saída para ilustrar este texto seria não cometer injustiça com qualquer um dos músicos. Deixar um ou dois deles fora de cena se equivaleria a não reconhecer que o A-ha só sobrevive hoje pela unidade que se forma quando todas as peças musicais do quebra-cabeças norueguês se juntam. Afinal, a qualidade e o peso das letras, melodias, riffs e arranjos são igualmente distribuídos aos três. Morten, Mags e Pal sabem que são fortes juntos, mesmo que por anos precisem se tolerar amistosamente para manter a engrenagem chamada A-ha em ação. Tudo isto significa a sobrevivência no mercado musical, apesar de não haver muita renovação de plateia – o que se viu na arquibancada da Arena foi um maciço desfile de fãs acima dos 40 anos de idade.

Ter deixado alguns hits de fora do set list para poder abrigar em seu miolo o repertório integral de Hunting High And Low pode ter desagradado muita gente que estava por lá na expectativa de ouvir uma live version de “You Are The One”, “Stay On These Roads” ou “Touchy!”, por exemplo. O fato de muitas faixas mais obscuras do primeiro álbum, por melhores que sejam em estúdio, não ganharem o brilho necessário quando executadas ao vivo também não foi tão relevante assim. Só que o que mais pesou muito no cômputo final para o saldo de quase duas horas de um show morno, muito morno, foi mesmo a falta de química entre os três integrantes. As principais canções são boas e incendeiam qualquer público de qualquer faixa etária. Os três são excelentes músicos, cada qual em seu instrumento predominante – o já sessentão Morten, sobretudo, não deixa nada a dever no alcance de oitavas mais agudas pelo qual se tornou famoso desde “Take On Me”, apesar de todo mundo saber que o avanço da idade acaba impondo certas dificuldades e limitações vocais a qualquer pessoa que canta. Só que precisão técnica e profissionalismo extremo não fazem engrenar um show de rock em sua totalidade. Rock é e sempre foi pegada, energia, pulsação, dinâmica, ímpeto, víscera, explosão. O resto ainda pode ser música das boas, claro, mas não coloca fogo em um show de rock tal qual o concebemos desde os anos 1950. 

Essa apresentação do A-ha na Arena da Baixada, na noite de 25 de julho, estava mais para um concerto de câmara de música pop. No palco, uma miniorquestra de seis integrantes. Havia três músicos de apoio, também vindos da Noruega, de exímio talento nos sintetizadores, contrabaixo e bateria. E havia os outros três, os astros principais da noite, procurando ser tão precisos quanto um relógio (mesmo com pequenos deslizes e erros de notas durante justamente o gran finale com “Take On Me”) em respeito aos fãs e ao atraso de dois anos na vinda ao nosso país. Só que um relógio funciona com uma engrenagem mecânica. Sem sentimentos, sem emoções, sem arroubos. Tique-taque depois de outro tique-taque, tão somente. Do início ao fim era perceptível que havia muito mais brilho no olho em quem estava pelas arquibancadas inferior e superior – embora valha ressaltar todo o esforço do tecladista Mags ao se apresentar naquela noite depois de ter passado horas de apuro na cidade por causa de um violento piriri.

Em virtude de tamanha devoção do público brasileiro, o A-ha costuma volta e meia tocar aqui no país. Tomara que sobrevivam internamente às turras até a próxima oportunidade de voltarem para cá e se acertem em todas as suas diferenças. Com o repertório e a técnica que eles têm (e são dois elementos que fazem falta a muitas bandas por aí mundo afora), as chances de Morten, Mags e Pal protagonizarem uma noite bem mais quente e devolverem à altura toda a energia que sai de casa para ir vê-los em uma segunda-feira à noite. Ficaria não apenas mais justo no fim das contas, mas também mais propício para o que se entende por um show de rock. (AS)

***

Nos primeiros minutos do documentário A-ha: The Movie, o entrevistador dirige um questionamento simples e objetivo ao tecladista Magne Furuholmen.

– Ainda tem vontade de gravar material inédito com a banda?

– Não!

– Não?

– Não.

– Por quê?

– Porque, a esta altura do campeonato, seria uma máquina de moer cérebros e não quero passar por este processo novamente.

Anos após a declaração acima, a previsão de Magne não se concretizou por um único motivo: o tecladista não suporta o vocalista Morten Harket , tampouco o guitarrista Pal Waaktaar-Savoy. Mas negócios são negócios e quando há cifras milionárias envolvidas, abre-se uma exceção.

O A-ha já pisou em solo brasileiro por umas 635 vezes. Chegou inclusive a se apresentar na Festa do Peão de Barretos, no ano de 2002. Tantas vezes, porém, não fez diminuir a idolatria que o público brasileiro sente pelo trio. Muito pelo contrário. E foi com este espírito de “karaokê de terça à noite” que um público aficcionado e carente de shows (a simples execução de “Everybody Wants To Rule The World”, do Tears For Fears, fez parte da plateia entoar sua melodia a plenos pulmões antes da banda norueguesa vir ao palco) dirigiu-se no último 19 de julho ao antigo Espaço das Américas, em São Paulo, que atualmente empresta seu nome a um renomado plano de saúde.

Desta vez, porém, a proposta era diferente. Com o pretexto de “comemorar” os trinta e cinco anos de lançamento do début Hunting High And Low (de 1985), a banda executou na íntegra seu álbum de estreia. Boa idéia? Talvez. Funcionou ao vivo? Não. Com uma modorrenta quadra de canções incidentais (incluindo a inédita (e fraquíssima) “Forest For The Trees, que será parte integrante de True North, novo album do trio a ser lançado agora em outubro, somente após quase meia hora de apresentação Hunting High And Low é revisitado com “Train Of Thought”. A categoria dos músicos permanece ilibada após quase quatro décadas de carreira, incluindo o alcance vocal de Harket, atingindo inimagináveis falsetes às vésperas de completar 63 anos de idade. 

Claro que a devoção da plateia brasileira é um auxílio luxuoso que não pode ser desprezado. Coube ao público cantar os versos da faixa-título do álbum, executada inicialmente em formato semi-acústico. Já na tríade “The Blue Sky”, “Living a Boy’s Adventure Tale” e “The Sun Always Shines On TV”, as onipresentes texturas de sintetizadores de Magne fazem a “cama sonora” funcionar. O público, completamente entregue, pouco importou-se com Pal isolar-se na extremidade direita do palco como um funcionário de cartório, em plena sexta-feira, rezando para o ponteiro do relógio chegar às cinco da tarde.

Após a execução da íntegra do primeiro álbum, coube a “Cry Wolf” e a espetacular “I’ve Been Losing You” prepararem a atmosfera para um bis curto, direto e com gosto de fim de feira. “Take On Me” é a “With Or Without You” do A-ha. Clássico obrigatório mesmo que seus integrantes queiram execrá-la.

Fim da apresentação. luzes acesas e uma certeza: Hunting High And Low segue como um dos mais importantes discos de estréia dos últimos 40 anos. Só que mas executá-lo na íntegra em um único show torna a apresentação burocrática e modorrenta, transformando o trio numa espécie de Imperatriz Leopoldinense da música pop, com desfiles extremamente técnicos para vencer campeonatos porém, longe (mas muito longe mesmo) de empolgar uma arquibancada. (FS)

Set list: “Sycamore Leaves”, “The Swing Of Things”, “Crying In The Rain”, “Forest For The Trees”* ou “You Have What It Takes”*, “Train Of Thought”, “Hunting High And Low”, “The Blue Sky”, “Living a Boy’s Adventure Tale”, “The Sun Always Shines On TV”, “And You Tell Me”, “Love Is The Reason”, “I Dream Myself Alive”, “Here I Stand And Face The Rain”, “The Blood That Moves The Body”, “We’re Looking For Whales”, “Cry Wolf”, “I’ve Been Losing You” e “The Living Daylights”. Bis: “Take On Me”.

* As duas músicas se revezaram nesta posição durante esta turnê pelo Brasil

Movies

Falling – Ainda Há Tempo

Viggo Mortensen estreia na direção com uma tocante história baseada em sua própria experiência com a demência em família

Texto por Abonico Smith

Foto: Califórnia Filmes/Divulgação

Ver um filme pode ser uma experiência catártica, sobretudo se a história for um grande drama. Muitas vezes, por se identificar bastante com quem o protagoniza, sua história, seu sofrimento e seus percalços, espectadores descarregam tudo em lágrimas ou gatilhos interiores acessados. Só que fazer um filme também pode significar a mesma coisa. Viggo Mortensen que o diga com seu Falling – Ainda Há Tempo (Falling, Reino Unido/Canadá/Estados Unidos, 2020 – Califórmia Filmes), no qual assina direção, roteiro mais boa parte da trilha sonora, além de interpretar um dos dois protagonistas.

Boa parte da história começou a ser escrita logo após o funeral de sua mãe. Ela, assim como também o pai de Viggo, passou alguns anos sofrendo de demência. Algumas das histórias sobre a doença e o convívio entre a/o paciente e os familiares que a/o cuidam, ouvidas pelo ator naquele momento, não saíram mais de sua cabeça até sua estreia como diretor se concretizar para ser exibida nas grandes telas.

E Viggo consegue transmitir delicadeza mesmo em tempos difíceis entre uma relação mantida às turras entre pai e filho. Na verdade, o pai Willis nunca mudou o jeito bronco de ser. Fazendeiro do norte do estado de Nova York, satisfaz-se em ser desagradável a todos ao redor somente pelo fato de ser desagradável, de contrariar pedidos e expectativas alheias, desde que seus dois filhos (John e Sarah nasceram). Não aceita as transformações sociais trazidas com o tempo, torce o nariz para a homossexualidade do filho (e também para o seu casamento de anos com o pai de sua enteada), tem rejeição pelo fato de Barack Obama ter sido o primeiro presidente preto eleito pelos Estados Unidos para governar a Casa Branca e não pensa duas vezes antes de provocar confusões com verborragias e atitudes. Ao mesmo tempo, Willis não entende que, por causa do avanço da demência, precisa ser (pacientemente) cuidado pelo primogênito John. Não quer mudar-se para a “progressista” Califórnia por ali ser “uma terra de bichas”. Não aceita a morte da dedicada e pacata Gwen (a mãe dos meninos) ao passo que tem alucinações sexuais com a segunda esposa Jill, aparecendo sempre em sua mente como uma voluptuosa ruiva seminua mesmo em meio de uma nevasca ao ar livre. Por tudo isso, o veterano Lance Henriksen (cujo currículo traz filmaços históricos como Um Dia de Cão O Exterminador do Futuro) entrega uma performance intensa e monstruosa como o indomável octogenário.

O vai e vem do passado, aliás, é um trunfo constante da narrativa e vai ajudando o espectador a montar o quebra-cabeça da conturbada relação entre pai e filho. Desde pequeno, John (Mortensen, que a princípio relutava em atuar em seu próprio filme) é criado por Willis a ser um típico exemplar de macho como ele. O menino – que aparece em distintas fases de sua infância e adolescência – já aprende, bem cedo, que as situações devem ser dribladas com pacifismo, condescendência e, sobretudo, muita, muita paciência. O que poderia se tornar uma armadilha para a trama, porém, revela-se um ganho para Viggo. Não somente esses flashbacks se misturam como lembranças abruptas de uma parte quanto de outra, como também pequenos sinais externos às cenas de ontem e hoje vão sendo delicadamente distribuídos ao espectador para que ele faça a sinapse e descubra de quem é aquele lampejo naquela hora do aqui e agora.

Quando chega ao final, o “novato” diretor também revela outros dois pontos altos de seu filme. Primeiro é a engraçada (se é que durante todo o drama intenso poderia, de fato, haver espaço para algo com um ligeiro toque de humor) participação especial de David Cronenberg. O cultuado cineasta – dono de uma obra marcada pelo horror corporal – aqui é um mero médico que vai realizar o temido (pelo machão Willis, claro) exame de próstata. Por fim, quando começam a subir os créditos, Viggo mostra ao mundo a aposta nas multi-istrumentistas irmãs postiças que formam o Skating Polly, uma fofíssima dupla (trio se contar a participação do irmão de uma delas na bateria e na guitarra) formada por elas em 2009, então aos 9 e 14 anos de idade, e que conta com (já) cinco álbuns de carreira e apadrinhamento de grandes ícones do rock alternativo americano, como Exene Cervenka (vocalista da lendária punk X e primeira esposa de Mortense), Flaming Lips, Babes In Toyland, Band Of Horses, Veruca Salt, Deerhof, Mike Watt e Garbage. A canção “A Little Too Late” não só gruda de imediato na cabeça como é uma incrível força lírica e melódica que anda faltando por aí nas programações das rádios, playlists de internet e escalações de grandes festivais.

Ao realizar todas as etapas de Falling – Ainda Há Tempo, o ator, roteirista, músico e diretor Viggo Mortensen também parece ter exorcizado toda a dor passada durante seus dramas familiares – tanto que dedica o filme a seus dois irmãos mais novos, com quem dividira a turbulência enfrentada duas vezes contra a demência. Por ser um projeto autoral/pessoal em demasia, acaba se tornando uma peça verdadeira de arte e ainda imprime maior veracidade àqueles espectadores que porventura possam vir a se identificar com o sofrimento vivido por John e Sarah desde o nascimento até a meia-idade. Exibido publicamente pela primeira vez no festival de Sundance em 2020, o longa-metragem chega agora aos cinemas brasileiros, com um certo atraso provocado por causa da pandemia da covid-19. Aos mais desavisados, pode até ser algo chocante de se ver e duro de se acompanhar. Entretanto, não deixa de ser uma obra de extrema sensibilidade e que passa bem longe de tender ao tom melodramático.