Eu conheci a música de Robbie Robertson antes de conhecer a obra do grupo que ele ajudou a fundar e que se tornou um dos mais importantes da história do rock, Band. Uma distorção temporal, por certo, mas aconteceu assim. Quando Robbie lançou seu primeiro álbum solo em 1987, a canção “Fallen Angel” se tornou uma das minhas mais queridas assim que a ouvi. Lembro de ler uma resenha na antiga revista Bizz e, a partir dela, comprar o disco e colocar Band como uma das prioridades para o meu plano de expansão sonora, que envolvia comprar um aparelho tocador de CDs. Era 1988/1989.
Por mais que o álbum de 1987, homônimo, fosse sensacional, com participações de Bono e Peter Gabriel além da produção de Daniel Lanois, a grande contribuição de Robbie foi, de fato, com a Band. Assim como a maioria do grupo, ele era canadense, mas o tempo faria da BANDA o conjunto de músicos mais capazes de traduzir o espírito da música estadunidense por excelência, vinculada ao folk, calcada no blues, descobrindo e mesclando uma carga de significados no novo membro desta família de ritmos, o rock. Foram esses caras, além de Robbie, Garth Hudson, Levon Helm, Richard Manuel e Rick Danko, que acompanharam Bob Dylan quando este resolveu eletrificar seu som. Estavam com ele no palco quando algum idiota o chamou de Judas por conta disso. Começaram como Hawks e, por conta da importância de quem acompanhavam, se tornaram a BANDA. Ou BAND.
Mas não se restringiram a músicos coadjuvantes. Em 1968 lançavam um dos álbuns mais importantes da história da música pop, Music From The Big Pink, cuja primeira faixa é a antológica “The Weight”. No ano seguinte vieram com o que considero seu melhor álbum, The Band, com a capa trazendo uma foto da banda que poderia ser de 1869. Em seu interior, canções que sintetizavam esta visão da América como melting pot musical e, a partir disso, cultural. Encerraram sua carreira cedo, em 1976, com um show de despedida que trazia convidados como Van Morrison, Joni Mitchell, Staple Singers e, claro, o próprio Bob Dylan. O concerto virou disco que virou filme, The Last Waltz, servindo como porta de entrada de um jovem cineasta na linguagem dos filmes biográficos sobre música. Seu nome? Martin Scorsese.
Por conta de tantas contribuições e tantas participações, Robbie Robertson, meio que a “cara” da Band, era seu integrante mais conhecido. Agora, dentre os cinco originais, apenas o organista Garth Hudson permanece por aqui. Na verdade, isso nem tanto importa, o legado desses sujeitos já está assegurado em todo lugar em que a música seja levada a sério. Robbie, que faleceu aos 80 anos em 9 de agosto último, permaneceu ativo até os últimos dias. Seu último trabalho é a trilha sonora de Assassinos da Lua das Flores, o novo filme de Martin Scorsese que estreia nesta semana nos cinemas (leia aqui a resenha do Mondo Bacana para este longa-metragem). Que descanse em paz. Obrigado, Robbie.
Cinebiografia de Gal Costa acerta com o desabrochar da tímida cantora em furacão dos palcos no período de antes, durante e depois da Tropicália
Texto por Abonico Smith
Fotos: Paris Filmes/Divulgação
A notícia da morte de Gal Maria da Graça Costa Penna Burgos, na manhã de 9 de novembro de 2022, aos 75 anos de idade, não pegou quase todo mundo de surpresa como também causou profunda consternação em quem é fã da música popular brasileira. Afinal, um ataque fulminante do coração (causa mortis que não fora anunciada publicamente pela viúva e sócia, embora confirmada depois pela divulgação de um atestado médico) calava a maior voz feminina que já cantou por aqui. Estava saindo do forno uma cinebiografia sobre ela. Dirigido por Dandara Ferreira e Lo Politti (que também assina o roteiro), o filme acabou tendo sua estreia marcada para este ano. Infelizmente, Gal Costa não teve tempo de assistir à obra, embora tenha dado sinal verde para a escolha da protagonista que iria revivê-la.
>> Clique aqui para ler os oito motivos que fizeram de Gal Costa um nome de suma importância para a história da música popular brasileira
Nesta quinta-feira, enfim, chega aos cinemas de todo país Meu Nome é Gal (Brasil, 2023 – Paris Filmes), o segundo projeto das diretoras envolvendo a cantora. Dandara e Lo já haviam lançado, há alguns anos, a série documental de quatro episódios O Nome Dela é Gal, exibida no streaming da Amazon Prime. Portanto, realizar em uma obra dramatúrgica retratando um determinado período da vida da baiana foi algo extremamente confortável à dupla, que ainda optou por se restringir à época mais interessante para trabalhar dramaturgicamente: o início de carreira dela. Mais precisamente o período que compreende a saída de Salvador para tentar a sorte na carreira no Rio de Janeiro (1966) até o reconhecimento em larga escala de seu talento (1971). A Gal Costa dos 19 aos 24 anos, desabrochando para a vida adulta enquanto tenta se desvencilhar de toda a timidez inerente à sua personalidade. Sophie Charlotte interpreta Gal do momento em que chega ao Rio em um ônibus vindo de Salvador ao show arrebatador Fa-Tal, cuja temporada no Teatro Tereza Raquel, bem sucedida, disputada e bastante comentada no boca a boca e pela imprensa, garantiu-lhe em definitivo a coroa de musa do desbunde depois da fama de musa das dunas do barato, berço da contracultura carioca no começo dos anos 1970, incrustado na praia de Ipanema de um Rio de Janeiro ainda bastante afetado pela severa repressão social, política e cultural da ditadura do regime militar iniciada logo após o AI-5.
Optando por uma narrativa convencional (só há o uso de dois rápidos flashbacks de quando ainda estava na infância treinando o poder vocal), as diretoras driblam a linearidade com uma fidedigna reconstrução da época em cenários e figurinos e uma impressionante caracterização dos atores. Curiosamente, Sophie é a única que não se parece fisicamente com a sua personagem – o que não deixa de ser um ganho para a atriz, já que ela também canta as músicas e sua voz também está longe de se assemelhar com a de Gal, principalmente na hora de soltar os agudos. Isso a deixa mais livre para incorporar outros ganhos na interpretação, como o jeito doce e comedido no cotidiano. Aliás, o fato da personagem estar sempre lutando para colocar seus demônios para fora e livrar-se das amarras (da mãe, da cidade natal, das performances cênicas e vocais do começo da carreira e até mesmo do guia Caetano, depois dele ser preso e ir para o exílio em Londres) acaba se tornando o maior trunfo do longa-metragem. O desabrochar de uma jovem contida em um grande furacão é a mais bela mensagem deixada nas entrelinhas das cenas e diálogos.
>>Clique aqui para ler 50 curiosidades sobre o disco-movimento Tropicália ou Panis Et Circensis, lançado em 1968
E ao contrário da relação entre Gal e Sophie, o resto da turma majoritariamente tropicalista, entretanto, está assombrosamente parecido. Rodrigo Lelis não é só Caetano cuspido e escarrado: em muitas das cenas ele baixa o temperamento irrequieto, desbocado e pirracento do anjo da guarda musical da protagonista. Dan Ferreira aparece um pouco menos como Gilberto Gil mas também está igual. George Sauma faz um histriônico Waly Salomão. Dedé Gadelha, esposa de Veloso e melhor amiga de Gal, é outro nome com fiel reconstituição física, por Camila Mardila. Tem ainda Tom Zé, Rogério Duprat (feito pelo sobrinho, o músico e maestro Ruriá Duprat), Rogério Duarte, Maria Bethânia (encarnada pela própria diretora Dandara), Rita Lee e os irmãos Baptista, Torquato Neto, Jards Macalé e até Edu Lobo, que era da turma mais defensora e conservadora da MPB mas convivia com o pessoal no Solar da Fossa ali em meados dos anos 1960. Por sua vez e como já era de se esperar, Luis Lobianco dá um show de humor vivendo o empresário Guilherme Araújo, que criou o nome artístico de Gal, incorporado ao batismo oficial em 2013.
O fato dos atores (Charlotte, Lelis, Ferreira) soltarem a voz durante as canções também evidencia um ótimo trabalho de captação e desenho de som. Os instrumentos são tocados ali mesmo em cena, inclusive na hora dos palcos e estúdios. Por isso, canções como “Baby” e “Divino, Maravilhoso” tornam-se mais brilhantes com o acompanhamento de banda. Para uma cinebiografia que se propõe a retratar um período especial de criação musical tal fator torna-se um belo trunfo para tocar ainda mais fundo do coração tanto dos velhos fãs como dos mais jovens e futuros iniciados que estão ali assistindo a tudo da poltrona do cinema.
Por falar em velhos fãs, é certo que acompanhar na tela uma história já bastante conhecida e da qual já se sabe quase tudo deixa Meu Nome é Gal um pouco menos impactante. Contudo, este detalhe não tira os méritos do filme que, se não deseja ser ousado nem mostrar coisas novas ou ainda misteriosas sobre Gal Costa, é tão respeitoso com o objeto da biografia que eleva este fascínio ao status de elemento principal de uma nova documentação histórica sobre a cantora, desta vez por meio da dramaturgia. Aqui é só a ascensão. Os períodos de queda na carreira passam longe desta biografia. E, falando a verdade, não fazem qualquer falta.
Executivo do mercado fonográfico que lançou Donna Summer, Kiss, George Clinton e Village People ganha cinebiografia assinada pelo filho
Texto por Abonico Smith
Foto: Paris Filmes/Divulgação
O nome de Neil Bogart é de suma importância para a história da música pop dos anos 1970. À frente de sua gravadora independente, a Casablanca Records, ele descobriu vários grandes talentos, bancou as gravações de grandes artistas e obteve grandes cifras em vendagens de discos, ainda em uma época em que o vinil era bastante consumido ao redor do planeta. Grandes cifras, não. Astronômicas. Milionárias.
Só para ter uma ideia do poder de sua empresa, foi a Casablanca – criada em 1973 – quem lançou no mercado os nomes de Donna Summer e Village People, dois dos grandes baluartes da disco music. Também foi a Casablanca o berço do Kiss, banda mascarada que caiu no gosto dos adolescentes geração após geração e que redefiniu os rumos do rock pesado antes mesmo do termo heavy metal ser estabilizado entre os seguidores fieis dos shows realizados em grandes estádios e arenas. Quer mais exemplos? Foi Bogart quem fez deslanchar a carreira de George Clinton, o doidão à frente dos combos funk Parliament e Funkadelic (ou simplesmente P-Funk), cujos concertos e canções reuniam uma grande mistura de viagem, celebração e grooves irresistíveis. O selo também foi casa de trabalhos de Cher, Lipps Inc, Bill Withers, Gladys Night, Ron Isley e a trilha sonora do filme O Expresso da Meia-Noite. Tudo isso ainda lá nos primeiros anos de atividade, sob o comando de Neil, que já havia trabalhado anteriormente em outros selos menores e feito de artistas como Curtis Mayfield e Sam The Sham & The Pharaohs outros sucessos. Quando a Casablanca surgiu, as grandes corporações estavam começando a engatinhar no mercado fonográfico e, injetando muita grana, abocanhando as pequenas empresas que se destacavam nas lojas e nas playlists radiofônicas.
Por tudo isso é inegável que Neil Bogart é um profissional do ramo do entretenimento que sempre mereceu ganhar biografias. Não somente em livros, mas também no cinema. A Era de Ouro (Spinning Gold, EUA, 2023 – Paris Filmes) chegou às salas de cinema para preencher a segunda lacuna. Histórias saborosas de bastidores dão um prato cheio para preencher a trajetória de luta e persistência de Bogart, que veio de uma família working class judia de Nova York e, apaixonado ao extremo por arranjos, melodias e harmonias, conseguiu o sucesso (leia-se qualidade + reconhecimento + fortuna) ao batalhar perrengue após perrengue por sua própria gravadora. Por isso, o apelo de um filme como este torna-se irresistível para quem gravita ao redor do terreno musical por paixão ou profissão.
Só que A Era de Ouro tem um grande porém. Quem assina o combo de direção, roteiro e produção executiva é Timothy Scott Bogart. O filho mais velho de Neil. Já a trilha sonora é desenvolvida por Evan Kidd Bogart. O filho mais novo de Neil. E logo após a cena derradeira vem uma dedicatória direta na tela (“para você, pai”). Passadas mais de duas horas, percebe-se o grande empenho da dupla em honrar o trabalho e o legado de Bogart por meio da mais sincera e apaixonada homenagem ao pai que eles pouco tiveram tempo de conhecer (o executivo faleceu aos 39 anos de idade, em 1982, de câncer e linfoma, pouco tempo depois de vender na íntegra os direitos da Casablanca para a major PolyGram – que hoje pertence ao grupo Universal Music). Tanto que o protagonista é, do início ao fim, o narrador de sua própria história de vida.
Ser um empreendimento chapa-branca não cancela, de maneira nenhuma, a biopic. Só que faz dela uma oportunidade perdida para se avançar mais nas mazelas, idiossincrasias e atitudes polêmicas de Bogart ao dirigir a Casablanca. Uma ou outra coisa aparece levemente pincelada durante o roteiro, claro. Só que muito dali poderia sido melhor desmembrado e mostrado durante a narrativa. Timothy perde um bom tempo glorificando o pai e lustrando uma face altamente positiva dele. Não que ela não exista ou não tenha de estar presente, só que é muito tempo perdido mesmo. Tanto que o filme vai se tornando longo e maçante. Poderia muito bem estar dividido e ter virado uma boa minissérie de dois ou três capítulos, inclusive. Pelo menos daria ao espectador a oportunidade de respirar e descansar um pouco da história, ao invés de ficar ali na poltrona do cinema sentado por mais de 140 minutos. Até mesmo as caracterizações musicais (Wiz Khalifa como Clinton, Tayla Parx como Summer, Sam Nelson Harris e Casey Parker como Paul Stanley e Gene Simmons, Jason Derulo como Isley, Ledisi como Knight, Pink Sweat$ como Withers) poderiam ser melhor e mais exploradas se a biografia ganhasse outro formato. No cinema tudo acaba ficando breve e reduzido, apesar da grandiosidade na telona ser o ponto positivo nesta questão.
Apesar da extensão e da suavidade, A Era de Ouro é uma cinebiografia altamente indicada para iniciantes nos assuntos anos 1970 e música pop. A história da Casablanca Records e de seu fundador Neil Bogart (atente para a relação dos nomes, que têm a ver com a paixão extrema de Neil pelo clássico filme estrelado por Humphrey Bogart) vale ser conhecida e revista, de qualquer maneira.
Cinebiografia do “pai da bomba atômica” traz três horas de grandiloquência e desafios autorais com a assinatura de Christopher Nolan
Texto por Abonico Smith
Foto: Universal Pictures/Divulgação
A biografia de Julius Robert Oppenheimer é uma das mais interessantes do último século. Nova-iorquino descendente de uma abastada família de origem germânica e judia, cresceu com os estudos bancados em uma conceituada escola particular chamada Ethical Cultural Society, algo bastante incomum para uma criança naquele início dos 1900. Logo manifestou interesse por áreas diversas, chegando a se formar em Matemática, Ciências e Literaturas Grega e Francesa.
Apreciador também das artes, seu negócio mesmo era estudar. Com afinco e muita dedicação. Terminou em 1925 a faculdade de Química em Harvard e logo se mudou para o Reino Unido. Como seu negócio não era ficar manuseando os equipamentos de um laboratório, partiu, na sequência, para fazer doutorado em Física na Alemanha. Pelo menos ali, o ambiente era de sua preferência: estar em contato com físicos renomados e mergulhar de cabeça nas mais trabalhadas e complicadas questões teóricas da área. Enquanto investigava processos em partículas subatômicas, já como professor de física repatriado aos Estados Unidos, começou a se envolver em assuntos políticos que o preocupavam: a ascensão do fascismo na Europa, em especial o nazismo na terra natal de seu pai. Passou, inclusive, a financiar organizações contra a extrema-direita após herdar a fortuna da família e flertou brevemente com o partido comunista, o qual abandonou também após se decepcionar com o desdém da ditadura stalinista em relação à ciência. Até que, advertido por Albert Einstein e Leo Szilard sobre a ameaça de Hitler ter em mãos o pioneirismo de ter uma bomba atômica, passou a pesquisar como ter o urânio 235 a partir do mineral natural e foi contratado pelo governo norte-americano, em 1942, para chefiar o Projeto Manhattan e comandar uma equipe de cientistas para obter, em um megalaboratório secreto, a energia nuclear a fim de ser incluída em operações militares. Era contra o uso de toda e qualquer arma química como instrumento de guerra, inclusive chamava a indústria armamentista de trabalho demoníaco. Após o sucesso do grande teste realizado em 1945 no deserto de Los Alamos, no Novo México, demitiu-se da direção do projeto. Semanas depois, viu o mundo se aterrorizar com os dois cogumelos que dizimaram as regiões das cidades de Hiroshima e Nagasaki, escolhidas para serem o alvo de uma nação japonesa que ainda não havia se rendido na Segunda Guerra Mundial. Oppie – como era carinhosamente chamado – não só entrou para a História (contra a sua vontade e interesse) como “o pai da bomba atômica” como ainda caiu em desgraça em seu país, através de mentiras e manipulações políticas movidas pelo conservadorismo maccarthista que o levaram a julgamentos e destruíram sua reputação pública e a trajetória profissional.
Uma figura tão controversa e famosa só poderia ter sua biopic com a assinatura de outro nome do cinema com credenciais iguais: o diretor, roteirista e produtor Christopher Nolan. Eis que Oppenheimer (Reino Unido/EUA, 2023 – Universal Pictures) chega às telas com toda a grandiloquência possível. Primeiro, é uma biografia de três horas de duração, feita com tecnologia para ser exibida em telas IMAX (inclusive com a primazia de exibir, estilosamente, várias cenas em preto e branco). Depois, a data escolhida para o lançamento: em pleno verão lá de cima, período reservado para as estreias de blockbusters populares (como,por exemplo, Barbie, com quem luta pelas bilheterias neste fim de semana de estreia). Tem também o elenco recheadíssimo de estrelas: Cillian Murphy (o protagonista, em magistral atuação), Emily Blunt (a esposa), Florence Pugh (a amante), Robert Downey Jr (o antagonista), Kenneth Branagh, Matt Damon, Gary Oldman, Josh Hartnett, Matthew Modine, Benny Safdie, Rami Malek, Casey Affleck, Olivia Thrilby, Jason Clarke, James D’Arcy e outros mais em pontas ou papéis secundários.
Claro que a cinematografia de Hoyte van Hoytema (parceiro de Nolan em vários outros filmes) é um luxo só. Não só em toda a sequência que culmina no momento de maior dramaticidade, o teste bem sucedido da megaexplosão em Los Alamos. Os muitos closes em Oppie e mais a fusão entre os delírios, os pensamentos e a realidade vivida por ele também reforçam a tensão que sempre o rondou por vários anos (o antes e o depois da “fama”). O desenho de som também impressiona – e ainda prega uma grande peça na hora H da tal explosão. Outro bom trunfo do longa é todo o vai-vem da narrativa criada pelo próprio Nolan, que adianta e antecede no tempo o tempo todo, desorientando o espectador quanto a causas e consequências durante a trajetória do cientista.
Aliás, as três horas de duração também se tornam um grande truque imposto pelo cineasta ardiloso para o público. Uma sucessão de personagens aparecem e desaparecem da tela, muitos dados e conceitos teóricos (que vão de física e química a política e ética) embaralham a mente. Torna-se um grande desafio ficar imerso na poltrona do cinema por todo este tempo, ainda mais se a pessoa não tem muito conhecimento prévio da Segunda Guerra Mundial ou mesmo paciência para uma trama mais reflexiva e sem muitos efeitos visuais criados por CGI (o que é bem comum nos blockbusters apresentados em Imax e algo ausente em uma obra do diretor). Não será comum ver gente saindo do cinema reclamando que muito deste tempo poderia um pouco reduzido. Por isso mesmo, Barbie larga com amplo favoritismo na somatória das bilheterias do mundo todo.
Desta forma, Nolan continua sendo Nolan com toda pompa possível. Oferece mais um filme difícil, perfeccionista e impactante. E mais: ao recontar a história de Oppenheimer, brinca de mergulhar no passado para mexer com as entrelinhas do presente. Não será muito difícil fazer conexões mentais com fatos e pessoas do nosso tempo recente.
Oito motivos para não perder um dos dez concertos da turnê de 40 anos de carreira, que trará de volta os sete integrantes da formação clássica
Texto por Abonico Smith
Foto: Bob Wolfenson/Divulgação
Já dizia o velho provérbio: onde há fumaça, há fogo. Depois de algumas pistas deixadas na internet que colocaram os fãs alvoroçados sobre a possível realização de um antigo sonho, eis que tudo vem à tona oficialmente e agora como verdade: sim, os Titãs voltarão a reunir em um mesmo palco a sua formação clássica, com o retorno de quatro integrantes que deixaram a banda ao longo dos últimos trinta anos. Vale lembrar ainda que haverá, nesses shows, uma homenagem ao oitavo membro da trupe, Marcelo Fromer, falecido em 2001.
Não é definitivo nem duradouro este reencontro, claro. Isso será parte de uma turnê que celebra os 40 anos de trajetória deste grande ícone do rock brasileiro. O evento ganhou o nome de Encontro – Todos ao Mesmo Tempo Agora. Ao todo serão dez datas entre abril e junho de 2023. As cidades que receberão o show especial serão, pela ordem, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Florianópolis, Porto Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza, Brasília, Curitiba, São Paulo. A pré-venda dos ingressos começa hoje para quem fez cadastro no site oficial da tour. A venda para os outros compradores tem início no próximo dia 22. Informações sobre preços, locais e cadastro você tem ao clicar aqui. Mais para a frente, ainda haverá a disponibilização de particularidades aos fãs, como peças oficiais de merchandising, NFT e até um grupo de Telegram.
Por tudo isso, o Mondo Bacana elenca oito motivos para você não perder de jeito nenhum uma destas dez apresentações dos agora todos 60+. E não titubeie se você nunca teve a sorte de ver a banda “inteira” de uma só vez – já o autor deste texto foi agraciado por esta oportunidade várias vezes pela TV e in loco entre os anos de 1984 e 1992. Esta poderá ser a última reunião dos sete músicos que escreveram o nome dos Titãs na história o rock nacional.
Pós-punk Rio-São Paulo
O começo da década de 1980 foi de uma efervescência mágica nas praias cariocas e nos inferninhos subterrâneos das ruas da cidade de São Paulo. Eram os anos em que a ditadura militar se esfacelava e se arrastava moribunda no Brasil e, talvez por isso mesmo, toda uma cultura jovem se formava nos grandes centros urbanos. Ainda plenamente insatisfeitos com o cotidiano e sua consequente relação com a sociedade tupiniquim que ainda não parecia querer lhes dar muita atenção, esses jovens procuravam falar, gritar, espernear. No Rio de Janeiro, a verborragia e atitude criativa dos vinte e poucos anos se estendia das praias à lona do Circo Voador e às ondas da rádio Fluminense FM, que botava no ar toscas gravações de fitas cassete de novas bandas e cantores (Blitz, Kid Abelha, Paralamas do Sucesso, Lobão, Sangue da Cidade), ainda longe de qualquer espaço no mainstream artístico nacional. Já em São Paulo, a coisa acontecia no circuito de boates alternativas como Napalm, Rose Bom Bom, Madame Satã e Carbono 14. A estética traduzia para o português muito do que acontecia no eixo anglo-americano em sonoridades, figurinos e penteados. Enquanto esse underground fervilhava de representatividade nos quadrinhos e tiras de jornal criados por cartunistas como Glauco, Laerte e sobretudo Angeli, bandas como Titãs, Gang 90 e Absurdettes, Ira!, Magazine, Mercenárias, Fellini, Akira S e as Garotas que Erraram, Patife Band, Voluntários da Pátria, Inocentes, Violeta de Outono e Ultraje a Rigor (mais agregados que volta e meia vinham de Brasília, como Plebe Rude, Legião Urbana e Capital Inicial) começavam todo um culto e burburinho ao redor de apresentações ao vivo e gravações em cassete da turma. Lojas como a Baratos Afins, cultuado ponto de encontro de apaixonados por música e colecionadores de discos que circulavam pelas grande galerias do centro paulistano, viravam selos e passavam a transformar, aos poucos, essa cena em realidade fonográfica. Comunicadores como Kid Vinil e Serginho Groisman (mais programas musicaisda TV Cultura e constantes matérias dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo) promoviam também todo um oba-oba em torno desses artistas e sonoridades ainda estranhas para os ouvidos da grande massa.
Performance de palco
Os Titãs começaram com nove pessoas, aglutinando gente que vinha de trabalhos anteriores, como a Banda Performática do artista plástico Aguilar, o Trio Mamão e a banda de ritmos caribenhos Sossega Leão. Quando assinaram contrato com a gravadora Warner e passaram a se apresentar em programas de emissoras de TV paulistas (Cultura, SBT Band) em 1984, fecharam a formação em oito. Era, ainda assim, muita gente para dividir um mesmo palco. Alguns praticavam revezamento de instrumentos. Os dois guitarristas (Marcelo Fromer e Tony Bellotto) e o baixista (Nando Reis, na maior parte do repertório) inventavam coreografias sincronizadas para este subgrupo. Já os três backing vocals de cada música (Branco Mello, Arnaldo Antunes e uma terceira posição que trazia às vezes Nando, Paulo Miklos e Sergio Britto) chamavam a atenção com coreografias esquisitas e individualizadas: Branco se esbaldava no pogo, Arnaldo encantava pelos passos robóticos, Paulo já chamava a atenção pelas caretas e gestos que reforçavam sua aura de esquisito. A esbórnia em cena era tamanha que trazia todo um novo significado para aquela leitura rock’n’rollcult de canções de alma brega (“Sonífera Ilha”, “Toda Cor”). Também havia traços de ska e do reggae jamaicano (“Querem Meu Sangue”, “Marvin”) e um pequeno eco de poesia marginal/tropicalista (“Go Back”).
Televisão
Mal o primeiro álbum, homônimo, abria espaço na mídia e trazia uma pequena popularidade aos Titãs, eles já entraram em estúdio para o segundo álbum, agora sob a produção de Lulu Santos, nome escolhido pelos próprios músicos para conseguir fugir da sonoridade pós-punk das bandas da época. E em menos de um ano depois da estreia, o álbum Televisão chegava às lojas revestindo a alma brega do início da banda com um pouco mais de agressividade nos arranjos e nos vocais. A faixa-título era um libelo contra a programação idiotizante das emissoras de TV da época e, ao mesmo tempo, tornou-se um trunfo sarcástico para eles próprios frequentarem programas de auditório da telinha (Hebe, Chacrinha, Bolinha, Raul Gil, Barros de Alencar) e esfregarem na cara dos espectadores toda aquela passividade sem muito questionamento ou inteligência à qual estavam expostos nas camás, sofás e poltronas de sua casa. Além deste grande hit, o disco proveu outros sucessos menores como “Insensível” e o hardcore “Massacre”. Curiosamente duas faixas deste repertório passaram completamente em branco nesta época e somente se transformaram em hits na década seguinte, depois que o grupo se rendeu à moda dos acústicos da MTV Brasil: “Pra Dizer Adeus” e “Não Vou Me Adaptar”.
Cabeça Dinossauro
Alguns indícios já vinham de Televisão, mas o grupo lançou em 1986 seu grande disco de explosão, visceralidade e revolta depois que dois integrantes (Tony e Arnaldo) foram presos em novembro de 1985, sob a acusação de porte e tráfico de heroína. Liminha, que já assinara a supervisão do disco anterior, agora tomou as rédeas da produção destas 13 faixas que traziam o Titãs se esbaldando feito pintos no lixo no território do punk rock. Em uma tacada só, detonavam instituições (“Igreja”, “Família”, “Polícia”). Previam as criaturas odiosas que sairiam dos esgotos décadas depois para tomar conta do noticiário e da política nacional (“Bichos Escrotos”). Vociferavam contra a elite (“Porrada”), as melodias bonitinhas (“AAUU”), a violência do capitalismo selvagem ( “Homem Primata”) e a do Estado contra seu povo (“Estado Violência”). E, segundo o exemplo da obra anterior, apontavam para um futuro próximo da banda na última faixa – “O Que” partia de uma poesia visual-concretista de Arnaldo para brincar com a sonoridade eletrônica que se acentuaria nos dois álbuns vindouros. Com o passar dos anos, Cabeça Dinossauro apenas confirmou sua condição de clássico, um dos maiores trabalhos do rock brasileiro em todos os tempos.
Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas
Em 1987, depois do avassalador sucesso do acesso de fúria de Cabeça Dinossauro, os Titãs – de novo sob a batuta de Liminha – passaram a flertar mais com a eletrônica e os grooves do funk. Ao mesmo tempo, carregava as letras de protestos contra a situação sócio-econômica de um país que prometia um futuro promissor ao deixar para trás a ditadura militar mas ainda rastejava para dar melhores condições a seu povo. Por isso, além da faixa-título, “Comida”, “Desordem”, “Lugar Nenhum”, “Armas Para Lutar”, “Mentiras” e “Nome aos Bois” definem o lado panfletário do discurso, que ainda traz reflexões sobre excessos pessoais (“Diversão”) e polarizações (“Corações e Mentes”). Em tempo: nesses últimos anos o carregamento de bichos escrotos que pipocou aos quatro cantos do Brasil e do mundo já faz urgente uma necessidade da banda fazer uma versão 2.0 de “Nome aos Bois”.
Õ Blésq Blõm
Prevendo o diálogo com as sonoridades regionais brasileiras que daria o tom ao rock nacional da década seguinte, os Titãs, lançaram outro clássico supremo de sua discografia em 1989, também produzido por Liminha. Assumindo cada vez mais a paixão pelas programações, “Miséria” abre o trabalho logo após a vinheta com um breve sample dos repentistas Mauro e Quitéria. A capa, uma colagem gráfica assinada por Arnaldo, voltava a levar a banda ao território punk. Faixas como “Flores”, “32 Dentes e “O Pulso” (uma lista que intercala doenças e situações doentias que servia, justamente como indica o título, para ratificar toda e qualquer forma de vida) ainda mantinham um pezinho do rock, mas outras como “Deus e o Diabo” e “O Camelo e o Dromedário” reafirmavam o crescimento de um novo Titãs, cada vez mais imerso em experimentações, sintetizadores e batidas eletrônicas. Em tempo: o título veio de uma expressão cantada pelo casal pernambucano em uma língua inexistente, que misturava sonoridades do português com as de outros idiomas. O que, esteticamente, combinava demais com o momento sonoro do octeto.
Muito além da banda
Já faz alguns anos que os Titãs hoje tem a formação reduzida a três integrantes originais (Sergio, Branco e Tony). Pouco a pouco, os demais foram deixando o grupo. Arnaldo foi o primeiro, em dezembro de 1992, a optar por seguir uma carreira solo na qual pudesse conciliar a música com projetos literários e de artes gráficas. Entre 1994 e 1995, durante um período de hibernação da banda para descanso das relações pessoais, alguns dos integrantes fundaram o selo alternativo Banguela ao lado dos saudosos produtores Carlos Eduardo Miranda e Vagner Garcia, revelando nomes como Raimundos, mundo livre s/a, Little Quail and the Mad Birds e Maskavo. Paulo e Nando, neste período, também se lançaram “solo em paralelo”. O baixista se separou de vez do coletivo em 2002, dando início a uma cultuada carreira de cantautor, inclusive regravando sucessos seus na voz de sua amiga recém-falecida Cassia Eller. Em 2010, o baterista Charles Gavin, que já tinha dado bons passos no ramo de pesquisador e produtor musical e estava sofrendo sintomas de pânico e depressão, não aguentou mais a vida na estrada e pendurou as baquetas titânicas. Seis anos depois, Paulo partiu de vez, agora para se equilibrar entre as facetas de cantor solo e ator no cinema e televisão. Os três que ficaram, entretanto, também fizeram bons trabalhos longe da marca Titãs. Sergio e Branco, naquela parada de meados dos 1990, criaram o grupo de pós-punk Kleiderman. O primeiro também chegou a lançar discos solo depois disso. O segundo apostou as fichas na criação de trilhas sonoras para peças teatrais e programas de TV. Já Tony abraçou outra grande paixão, a literatura. Já publicou 12 livros, sendo quatro do detetive Bellini (dois transformados em filme para o cinema). Sua mais recente obra, Dom, também se transformou em série de dramaturgia para o streaming, com roteiro também assinado pelo autor.
Marcelo Fromer
Aluno de violão de Luiz Tatit (professor, linguista e músico do grupo Rumo) na adolescência, apaixonado por gastronomia (publicou o livro Você Tem Fome de Quê? em 1999) e torcedor fervoroso do São Paulo (a loucura apor futebol levou-o ao posto de comentarista do canal esportivo SporTV durante a Copa do Mundo de 1998, frilas de cronista do jornal Folha de S. Paulo e uma biografia inacabada do ex-centroavante Casagrande), Fromer morreu aos 39 anos, no dia 13 de junho de 2001, após ser atropelado por um motoqueiro nos Jardins, em São Paulo. A banda, recém-contratada pelo selo Abril Music, braço fonográfico da Editora Abril que pouco durou no mercado mas teve atuação intensa e lançou discos de nomes como Los Hermanos, Ira!, Capital Inicial, CPM 22, Erasmo Carlos, Inocentes, Ultraje a Rigor, mundo livre s/a, Marina Lima, Rita Lee, Gal Costa, Alceu Valença e Marcelo Nova), estava prestes a começar a gravar as 16 faixas que sairiam no álbum A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana. Abalado pelo trágico acontecimento, o grupo chegou a cogitar encerrar suas atividades. Se isso realmente acontecesse, não sairiam mais clássicos para o repertório dos Titãs como “Epitáfio”, “Isso” e a música-título. Detalhe: este foi o último disco de estúdio do grupo produzido por Jack Endino (Nirvana Soundgarden, Mudhoney), que já havia feito com os brasileiros Titanomaquia (1993), Domingo (1995) e Volume Dois (1998).