Movies

A Rainha Diaba

Clássico brasileiro dos anos 1970 sobre a marginalização dos grupos sociais feminino e queer durante a ditadura militar volta às telas restaurado em 4K

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Divulgação

Em 1974, Antônio Carlos da Fontoura estreou A Rainha Diaba, filme que se tornou um dos clássicos da década. Em 2023, quase meio século depois, o filme volta às telas do cinema mundial com uma digitalização em 4K que reapresenta a personagem icônica de Milton Gonçalves a um público, possivelmente, muito mais afim de sua expressão. Segundo Fontoura, que acompanhou todo o processo de restauração, o longa-metragem está “muito mais bonito do que na época”.

Depois de estrear em Berlim e viajar por Tóquio e outras capitais do mundo, a Rainha Diaba (Brasil, 1974) aterrissou em Curitiba para duas exibições especiais no 12° Olhar de Cinema. Uma história de ganância e crueldade sobre a personagem que dá nome à obra (vivida por Milton Gonçalves) e uma trama de seus subordinados para derrubá-la do trono, o filme imbui o mundo do crime com uma forte expressão de gênero e sociabilidade tipicamente brasileiras.

São quatro as personagens principais, interpretadas por um elenco consagrado. Junto a Milton Gonçalves, Nelson Xavier faz o antagonista Catitu, que utiliza o moleque Berreco (Stepan Nercessian) como peão da trama que busca destituir a Rainha. Por sua vez, Berreco se relaciona com Iza (Odete Lara) e destila nela os machismos típicos dos anos 1970. Este é um filme que demonstra a marginalização dos grupos sociais femininos e queer no Brasil do regime militar, e o conflito entre estes e o status quo impera a narrativa.

O Brasil que se apresenta não é maquiado: é sujo, violento e, ao mesmo tempo, munido de cor, textura e vivacidade únicas de nossa capital tropical, o Rio de Janeiro. É num contexto de marginalidade puramente brasileiro que se constrói uma trama digna da Nova Hollywood, que havia nascido há pouco na terra do Tio Sam. No entanto, engana-se quem espera uma abordagem que preza pela crueza e verossimilhança.

Fontoura constrói um mundo mitológico a revolver a Diaba, composta por distintas personagens, cada uma com sua cor própria, maneirismos e personalidade, que pinta um retrato encantado de uma realidade tão violenta. Em seu centro, a atuação fenomenal de Milton Gonçalves, que modula sua voz para pontuar cada sentença com sua voz doce de Rainha ou grave e rouca de Diaba. A dualidade da personagem, inclusive, faz dela uma das mais memoráveis do cinema brasileiro. Aos amigos do Twitter, desesperados em busca de histórias de “gays trambiqueiras”, sua procura chegou ao fim.

Mais que um clássico a se revisitar, A Rainha Diaba aceita a luz contemporânea para pintar seus retratos de uma época em que a diferença era muito mais marginalizada e não por isso menos presente em nossa sociedade. Antes de mais nada, é uma joia do cinema setentista do Brasil, com uma memorável direção que envolve a narrativa de momentos de violência, é certo, mas também por episódios que merecem nossa mais pura admiração. O olhar de Fontoura nos deu um presente. É uma dádiva que o público de 2023 possa recebê-lo novamente.

Music

O Som do Silêncio

Drama fora do comum mostra como o baterista de uma banda rock tenta recriar sua vida após perder a capacidade auditiva

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Amazon Prime/Divulgação

O que fazer quando tudo que se ouve é o silêncio? Em O Som do Silêncio (Sound of Metal, EUA, 2020 – Amazon Prime) esse é o súbito destino de Ruben (Riz Ahmed), um músico e ex-adicto. Sentindo-se traído por seu corpo e incompreendido por quem ama procura ajuda de um grupo de surdos para aprender a viver sua nova vida. A direção perfeccionista de Darius Marder e a excelente atuação de Ahmed não deixam dúvidas de que esse é um dos melhores filmes da temporada.

Sound of Metal é um filme feito de sons e da ausência deles. A edição e mixagem de som são exemplares. É uma imersão em um mundo desconhecido. As mudanças de tonalidade e volume são esquisitos no começo, mas essenciais para o entendimento e o desenvolvimento da trama. Ruben é baterista de uma banda de punk metal, formada também pela sua namorada vocalista e guitarrista Lou (Olivia Cooke). A música e a sonoridade fazem parte de seu cotidiano, mas após a perda auditiva ele conta com a ajuda de novos amigos e o mentor Joe (Paul Raci) para se adaptar à nova vida. 

O longa subverte a lógica ao colocar o espectador para escutar sem entender boa parte dos diálogos no primeiro ato do filme. Quando Ruben chega à sua nova casa, ainda não sabe se comunicar por meio de libras, assim como a esmagadora maioria do público. Pela primeira vez, a minoria surda é a única que sabe o que se passa na tela. Essa é uma grande sacada do diretor para mostrar a grande deficiência de comunicação que a sociedade tem com aqueles que não escutam. Libras não são ensinadas nas escolas regulares. Como, então, socializar uma pessoa que não escuta? 

Riz Ahmed encarna o personagem de forma magistral. O ator (que também atua profissionalmente como rapper) consegue capturar a negação, a raiva e a aceitação da nova condição de Ruben de um jeito emocionante. Suas cenas com Joe são as melhores do filme. Nelas, além de acompanhar mais sobre a jornada do personagem principal, também é possível compreender mais a respeito da comunidade surda. “Surdez é uma cultura e não uma deficiência” afirmou Ahmed em uma entrevista promocional do longa.

O conceito de comunidade é um dos guias de Sound of Metal. Em sua nova casa, Ruben encontra conforto, amigos e experimenta um inédito senso de identidade e pertencimento. É justamente pautado nessa nova identidade que o músico deverá escolher como será seu futuro. Voltar ao passado ou seguir em frente?

Este acaba sendo um drama fora do comum. É o nascimento de um novo homem através de seus ouvidos. O som ao redor pouco importa: o xis da questão é o que Ruben sente. E, apesar das insistências de Joe em dizer que não há nada para consertar, será que ele ainda sente-se quebrado? Ou aprendeu a beleza da adversidade?  

>> O Som do Silêncio concorreu no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em seis categorias: filme, ator, ator coadjuvante, roteiro original, montagem e som

Movies

As Herdeiras

Longa sobre mudança de paradigmas na vida de protagonista sexagenária faz o Paraguai ter destaque no cinema sul-americano de gênero

lasherederas

Texto por Abonico R. Smith

Foto: Imovision/Divulgação

Destaque em vários festivais recentes – dentre eles os Berlim e Gramado, ganhando prêmios em ambos – o filme As Herdeiras (Las Herederas, Paraguai/ Alemanha/Uruguai/Noruega/Brasil/França, 2018 – Imovision) enfim joga luz sobre o cinema paraguaio, escondidinho aqui do lado (sobretudo para quem mora no Paraná) mas ainda pouco conhecido e divulgado no próprio território sul-americano. E quem quiser se iniciar por aqui não terá do que se arrepender.

Escrito e dirigido por Marcelo Martinassi, As Herdeiras é mais uma obra recente do cinema latino a confirmar a tendência de um forte cinema de gênero. A história trata acerca da mudança de comportamento de Chela (Ana Brun), uma pintora herdeira de uma rica família e hoje em decadência financeira e entregue completamente à depressão. É antissocial ao extremo – chegando até a ser agressiva verbalmente – e torra indiscriminadamente a fortuna deixada pela família em mobiliário, quadros e utensílios de casa para manter um estilo de vida não mais compatível, como a manutenção de uma empregada doméstica e a mais completa despreocupação com a inexistência de uma fonte de renda fixa mensal. Para completar, está casada há décadas com uma outra mulher de temperamento bem diferente do dela. Que quer sair, gosta de cantar, encontrar as amigas, fuma à beça e não pensa duas vezes antes de cometer pequenos atos financeiros ilícitos.

A mudança radical na vida de Chela começa quando Chiqui (Margarita Irun) passa uns meses forçados na prisão para cumprir pena de sonegação de impostos. Sem a companheira, ela se vê forçada a afastar a depressão e o baixo astral e embarcar em um cotidiano de sociabilidade, fazendo bico como motorista particular em seu próprio carro e aturando as outras mulheres que carrega como passageiras.

Até que a mão do destino se encarrega de Chela conhecer Angy (Ana Ivanova), uma atraente mulher de quase metade de sua idade, que a faz abrir os olhos e conhecer novas realidades. Então, um mundo de descobertas cai no colo da protagonista, o que a faz rever conceitos, opiniões e atitudes. Algo do tipo road movie espiritual, com uma jornada interior tocante permitindo o deslocamento – tanto geográfico quanto na alma – e um passado recente nebuloso (a fotografia bastante sombria ainda ajuda na primeira metade do filme) para um bravo mundo novo de interesses, sentimentos e sensações (sob a luz do sol).

E é justamente isso que faz valer todo o filme. Com bastante sensibilidade, Martinassi constrói mais uma forte protagonista feminina (tendo como apoio duas coadjuvantes com não menos força) para esta década de ouro do cinema de gênero da América do Sul.