Curta-metragem de David Lynch aposta em estética noir e história baseada um surreal interrogatório de um macaco suspeito de assassinato
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Netflix/Divulgação
Em uma estação de trem, um detetive interroga Jack, um macaco suspeito de assassinato. Esta, simples assim, é a trama do curta-metragem de David Lynch que estreou há três anos, mas só há pouco chegou ao catálogo da Netflix.
O icônico diretor surrealista, de obras como Twin Peaks, Veludo Azul e Eraserhead, explora a simplicidade da trama com poucos planos, recheados de diálogos. Vale lembrar que é praticamente impossível assistir algo de Lynch sem uma interpretação bastante subjetiva, tal como o processo do diretor. É até mais difícil escrever sobre sem cair na própria interpretação. Em What Did Jack Do? (EUA, 2017 – Netflix) a questão é ainda mais delicada.
Os pouquíssimos planos são fotografados por Scott Ressler com estética noir, abusando das sombras e seu alto contraste com os realces das imagens. No entanto, a obra, como é comum na filmografia de seu diretor, roteirista e protagonista, traz constante estranhamento. O primeiro motivo para tal, dentre vários, é o cenário teatral, anguloso e desconfortante, com clara influência no expressionismo alemão. Logo que os diálogos se iniciam, mais um estranhamento: a boca de Jack é humana, e se move como tal, numa colagem que flerta com a websérie Laranja Irritante. Assim, com as cartas na mesa, Lynch inicia o ponto principal, a própria estrutura dos diálogos.
O Detetive e Jack vão e voltam em metáforas, figuras de linguagem e ocasionais sentenças diretas. O jogo é claro: aquele quer incriminar este, que foge de toda e qualquer pergunta. Num mundo onde macacos, orangotangos, galinhas e os mais diversos animais têm acesso à linguagem e cultura dos humanos, Lynch é capaz de criar um texto escuso, cheio de ambiguidades e diversidade de interpretações possíveis. E é nesse jogo de imagens, construídas por essa conotação da linguagem e pela reconstrução de eventos que o detetive almeja (uma estratégia comum de interrogatório), que o curta-metragem entretém, fazendo o tempo voar tão rápido que seus dezessete minutos de duração parecem passar em cinco, dez minutos.
No entanto, para quem espera uma obra-prima de Lynch, ápice de sua experimentação ou algo do gênero, convém abaixar as expectativas. What Did Jack Do? é divertido, mas não passa muito disso. Pode-se dizer que, a fim de aliviar o soco de obras mais densas do autor, que este é um curta introdutório aos demais filmes que compõem a carreira dele. Em tempos de quarentena, é uma opção melhor que reassistir aquela série pela quingentésima vez, não?