Química improvável na relação entre professor ranzinza e aluno rebelde é uma das mais gratas surpresas da temporada
Textos por Abonico Smith e Tais Zago
Foto: Universal Pictures/Divulgação
Títulos como O Clube dos Cinco, Conta Comigo e Sociedade dos Poetas Mortos estão até hoje nos corações e mentes de qualquer cinéfilo aficionado pelas produções do cinema pop americano da década de 1980. Além de exalar o frescor da juventude em suas histórias, estas obras abordam temas de suma importância para esta fase da vida como diversidade, tolerância, paciência, lealdade e, sobretudo, autoconhecimento. Mergulham fundo no âmago humano e por isso mesmo são celebradas até hoje por quem ainda prefere um cinema mais real e sem aquela enxurrada de CGI que rola nos blockbusters da atualidade.
Os Rejeitados (The Holdovers, EUA, 2023 – Universal Pictures) parece ter sido feito para bater lá no fundo dessa turma. Assinado por Alexander Payne, um cineasta que tem como características a economia de obras ao longo da carreira em prol de projetos mais profundos e menos comerciais, o filme vem provocando burburinho desde o seu lançamento no último festival de Toronto. Foi adquirido pela distribuidora Focus Features pela “bagatela” de trinta milhões de dólares e chega agora aos cinemas brasileiros acompanhado de altas expectativas para esta safra de premiações. No último domingo, Paul Giamatti e Da’Vine Joy Randolph ganharam o Globo de Ouro como ator de musical ou comédia e atriz coadjuvante e aparecem como apostas seguras para figurar entre os indicados ao próximo Oscar. Filme, direção, roteiro e ator coadjuvante (o estreante Dominic Sessa) também podem ser outras categorias beliscadas. Nada mau para uma produção extremamente autoral, de relativo baixo orçamento, sem grandes pretensões de bilheteria e que vai buscar no passado – tanto na trama quanto na estética – inspiração para comer pelas beiradas e se fixar como um dos grandes longas da temporada.
De um lado temos o veterano professor de História Paul Hunham. Ele vive sozinho, dentro do próprio internato onde leciona, incrustado em algum canto do norte dos EUA, onde não para de nevar no inverno. Não se casou, não tem muita paciência para conviver com outras pessoas além de suas obrigações profissionais. Leva tudo com rigidez extrema, a ferro e fogo, dentro e fora da sala de aula. Angaria a antipatia de seus alunos e não larga uma garrafa de uísque. Portanto, é o típico personagem mal humorado no qual Giamatti se encaixa perfeitamente para atuar.
Do outro, um aluno insuportável e rebelde ao extremo chamado Angus Tully. Ele também amarga um alto índice de rejeição, mas por sua própria família. Ignorado pela mãe – que não pensa duas vezes antes de “trocá-lo” pelo novo marido – ele acaba tendo de passar as semanas que antecedem Natal e Ano Novo na própria escola. Esta é a época na qual crianças e adolescentes ganham um período de intervalo das aulas para voltar às suas casas e rever os parentes mais próximos. A escola fica praticamente vazia por três semanas e Tully (Sessa) precisa se resignar a ficar por lá. Sem os colegas de turma para sacanear, com um professor linha-dura no seu encalço o dia todo, vigiando seu comportamento quase sempre inadequado.
No meio disso quem também passa o break de inverno em Barton é Mary Lamb, a cozinha-chefe do refeitório que alimenta diariamente docentes e alunos. Sua maior luta é superar o período de luto – seu filho, que estudava e morava com ela por lá, foi morto em guerra, durante o serviço militar. Além de Angus e Paul, seus únicos companheiros no local são o jardineiro (que também fica por lá), os cigarros e os populares programas de auditório exibidos pela televisão. Mary é o vértice do triângulo que mais expõe seus problemas pessoais e emocionais.
Os três acabam criando elos emocionais improváveis, especialmente Tully e Hunham. Aos poucos, um vai descobrindo o outro e nutrindo sentimentos de pai e filho, como confiança e afeto. Ambos mostram, mesmo não querendo mostrar, ser altamente carentes disso, o que justifica a química quase imediata entre eles. A partir da metade final, quando Os Rejeitados se transforma em road movie e muitas das cenas se passam distantes de Barton, fica impossível para a dupla não manifestar novas descobertas e sensações (o que, por sinal, mais caracteriza um road movie: o deslocamento geográfico provocando deslocamentos internos). Se até então o espectador já está bastante envolvido com os dois, embarcar no melhor da viagem pisando no acelerador torna-se inevitável.
Este filme se passa nos últimos dias de 1970. Portanto, Payne tenta recriar a época da maneira mais fidedigna possível. Aproveita somente iluminação e locações reais (nada aqui fora reconstruído em estúdio) e usa a pós-produção para dar mais credibilidade à estética de seu filme. Filmou tudo por meio da câmera manual Alexa Mini, da Arri, e inseriu posteriormente a granulação e outras sujeiras visuais típicas do celuloide. Até mesmo antes da primeira cena o cineasta brinca com a estética retrô: inclui o mesmo selo de Rated R que carimbava muitos dos filmes daquela época. Utiliza também artistas do período, como o poeta e cantor britânico Labi Siffre e as bandas, respectivamente galesa e holandesa, Badfinger e Shocking Blue.
Sem muitos radicalismos na narrativa e tocando no coração de quem senta na poltrona para ver o filme, Os Rejeitados desponta como um possível “azarão” para faturar o prêmio máximo da noite promovida pela academia cinematográfica norte-americana. Por não desagradar a muita gente, não corre o risco de receber notas muito baixas no ranking designado como critério para o quesito “melhor filme”. Na soma final de todos os votantes, corre o risco de terminar na liderança. Mas, se não ganhar, pelo menos, marcará a temporada como uma de suas obras mais queridas. Justamente retornando ao tempo em que Hollywood se salvou da bancarrota sendo cada vez menos Hollywood e trocando superficialidade pela densidade. (AS)
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Em meados dos anos 70, Paul Hunham (Paul Giamatti), um professor solitário e isolado socialmente, acaba sendo forçado a passar o feriado de Natal no colégio interno onde leciona para jovens privilegiados nos arredores de Boston. Os jovens aos seus cuidados foram deixados de lado, voluntaria ou involuntariamente, por suas famílias durante as festas de final de ano.
Mas não se engane, não temos em Os Rejeitados (The Holdovers, EUA, 2023 – Universal Pictures) um O Clube dos Cinco (1985) setentista. Logo no começo das férias natalinas o pai de Jason Smith (Michael Provost), um dos cinco jovens “ilhados” na Escola, é acometido por um arrependimento abrupto e acaba “resgatando”, com seu helicóptero, quatro dos rapazes para uma luxuosa estação de esqui. Apenas um, Angus Tully (Dominic Sessa), acaba ficando para trás. Tragicamente ele não conseguiu fazer contato com a mãe para receber autorização para o passeio. Decepcionado, o jovem acaba ficando no colégio frio e vazio junto a seu odiado professor de história Paul, a cozinheira Mary Lamb (Da’Vine Joy Randolph) e outro funcionário da manutenção.
Aos poucos uma inusitada conexão começa a se formar entre Paul, Angus e Mary. A cozinheira estava passando o primeiro Natal sem o filho, também aluno da escola, que fora morto no Vietnam. Com o passar dos dias frios e escuros, o luto da mãe acaba se misturando ao luto e a raiva do jovem. Tully está afastado do pai e abandonado pela mãe após ela se casar novamente. Ao mesmo tempo, a misantropia e o distanciamento inicial de Paul vão dando lugar à empatia pelo aluno e seu drama pessoal. Dentro de suas limitações, os três passam a permitir que alguns prazeres e alegrias mundanas permeiem seu convívio e diminuam seus sofrimentos durante a época das festas.
O diretor Alexander Payne escolheu o tema mesmo sem ter qualquer experiência pessoal com colégios internos. O roteiro original é assinado por David Hemingson, que tinha criado a narrativa pensando em uma série televisiva. Mesmo assim, a junção criativa entre Payne e Hemingson e o fantástico elenco nos trouxe uma pequena pérola que já está colhendo os louros por sua sensibilidade. Sem grandes exageros dramáticos, mas com muito coração, Os Rejeitados nos envolve. As cenas são pontuais; as reações, verdadeiras; os diálogos, repletos de insight. É uma verdadeira tragicomédia da vida pequeno-burguesa e uma crítica a escolas sisudas e ‘tradicionais”. Na trilha sonora temos até Cat Stevens (“The Wind”) nos momentos em que professor e aluno trocam cândidas experiências natalinas, algo que nos remete, mesmo que inconscientemente, ao clássico Ensina-me a Viver (1971).
Paul e Angus, duas personalidades tão diferentes e tão próximas. Ambos acabam descobrindo que lutam contra a depressão por fatores diversos, mas possuem em comum uma profunda solidão e a dor do abandono. Em Mary, Angus encontra um afeto genuíno e sem afetação. O título em português, Os Rejeitados, é exatamente o que a história sugere: um grupo de outcasts, completamente diferentes entre si, que encontram pontos comuns em seus sofrimentos e buscam o alívio de suas tristezas oferecendo apoio emocional uns aos outros.
Somos, então, agraciados com estranhos saudosos de um Natal com família ou amigos, pela ausência ou pela rejeição. Um drama triste, um coming da relação professor/aluno sem apelar para clichês no estilo de Sociedade Dos Poetas Mortos (1989). Uma transferência materna entre Mary e Angus sem apelar para o melodrama desnecessário. Todos aqui possuem feridas abertas, novas ou antigas. A ajuda é mútua e balanceada. E a lição final que fica é a de que nunca é tarde demais para quebrar algumas regras que para nada mais nos servem a não ser representar o papel de algemas para nossa liberdade e felicidade. É a permissão para ser alegre, mesmo em situações difíceis. Um sorriso no meio do solo desolado da tristeza. (TZ)