Movies, TV

Saltburn

Um estudo ácido da fantasia de ascensão social da classe média com polêmicas e a primorosa atuação de Barry Keoghan e Jacob Elordi

Texto por Tais Zago

Foto: MGM/Amazon/Divulgação

Desde novembro do ano passado, quando foi lançado na plataforma Prime Video, Saltburn (Reino Unido/EUA, 2023 – MGM/Amazon), vem agitando a critica de cinema, sobretudo a amadora. Há tempos não viamos um filme tão polarizante: as avaliações vão do zero ao dez em uma mesma pagina de comentários. Intrigada, deixei para assisti-lo nas férias de final de ano e, assim como mais ou menos 50% dos cinéfilos, eu amei o filme. Mas, calma, vou explicar o porquê, mesmo que minha interpretação não tenha passado pela cabeça dos produtores ou roteiristas.

A jovem atriz e já muito premiada Emerald Fennell assina a direção e o roteiro desse thriller ácido e provocador sobre um grupo de estudantes da renomada universidade de Oxford nos anos 2000, mas principalmente sobre a intensa amizade entre Felix Catton (Jacob Elordi) e Oliver (Barry Keoghan). Fennell, ela mesma uma milennial, afirma que algumas de suas experiências universitárias influenciaram a criação do roteiro original. Isso, claro, sempre atribui um toque especialmente nostálgico às produções.

Saltburn, como anda na moda ultimamente, é um filme que cria uma atmosfera, uma vibe de uma época em especial. Para realçar esse clima, a caprichada produção não poupa nada em apuros técnicos e detalhes para proporcionar ao espectador a experiência mais próxima possível da realidade de abastados ingleses curtindo despreocupadamente a juventude enquanto fogem de seus fantasmas pessoais. São jovens explorando limites e curtindo a vida como se não houvesse aula amanhã de manhã (quem nunca passou por essa fase que atire a primeira pedra!). 

Mas seria ingênuo afirmar que o filme fica apenas nesse triangulo festa-ressaca-responsabilidade de adulto. A trama central trata de obsessão, ódio, inveja e ressentimentos que usam a fantasia do encantamento amoroso com verniz para encobrir sua feiura. A acusação mais frenquente dos desgostosos é a de que Saltburn seria um quase plágio de O Talentoso Mr. Ripley (1999). Não há como negar os paralelos, porém Saltburn tem outro foco e do meio para o fim não sabemos mais direito onde estamos pisando. Seria Oliver um pobre menino pobre e Felix um pobre menino rico? A síndrome de salvador de parte da elite mundial seria uma porta aberta para uma vingança dos menos abastados? Estamos assistindo a uma orgia entre psicopatas de diversos calibres? Talvez tudo junto. Ou nada disso. Para mim, Saltburn é um estudo ácido e irônico da fantasia de ascensão social da classe média, da relação de amor e ódio pelo dinheiro, sobre uma infinita insatisfação do ser humano pelo o que possui, independentemente de posição social.

Já o que é indiscutível sobre essa produção são as primorosas atuações de seus atores, Barry e Jacob. À intensidade da interação dos dois nos causa arrepios e não somente pela delicia visual de seus corpos e rostos esteticamente perfeitos – o que também tem gerado um certo frisson. A câmera nesse filme é um voyeur dos mais experientes. Ela nos leva à um mergulho na intensidade do desejo de Oliver: sentimos com ele o gosto da água da banheira ou da terra (e aqui não vou dar spoilers do contexto para os que ainda não assistiram ao longa).

A onda do cinema sensorial chegou com força – para os menos estetas, isso vem como uma prova de frivolidade e fraqueza dos roteiros. Se for analisado friamente, Saltburn é uma piada pra qualquer investigador de mesa de boteco e de podcast de true crime e é exatamente por essa obviedade de tamanho descuido que escolhi considerá-lo genial. Saltburn não é um retrato da realidade. Acho que nem almeja ser. Eu entendo o filme como um wetdream de um jovem que sonha com reconhecimento e fortuna, com sexo, drogas e tuxedos. Com exageros e indulgências. Com um amor canibalístico que devora o outro por completo. Um acerto de contas com quem nasce em berço dourado. Um delírio pós-puberdade. Um coming of age de acidez macabra

Se nada disso estimular o interesse pelo filme, ainda temos Elordi como eye candy. O muso da série Euphoria aparece sensualizando em quase todos frames. E esse foi um dos motivos para que Saltburn tivesse uma das estreias mais concorridas dos últimos tempos e recebesse o titulo de filme polêmico de 2023. A estrela de Jacob está em ascensão, assim como o incrivel talento de Barry Keoghan, que provavelmente receberá indicação para o Oscar pela interpretação de Oliver. E se mesmo assim você ainda estiver em duvida, vale a pena conferir o filme para ver Rosamund Pike como Elspeth Catton, a obtusa, alienada e fria mãe de Felix e Venetia (Alison Oliver).

Books, Movies

A Noite das Bruxas

Terceira aventura do detetive Hercule Poirot chega às telas juntando a verve literária de Agatha Christie à onda atual dos filmes de terror

Texto por Abonico Smith

Foto: Fox/Disney/Divulgação

Agatha Christie é um dos nomes mais festejados da literatura de ficção e entretenimento de todo o século 20. Sua escrita agradável aliada a intrincados enredos repletos de mortes, mistério e suspense criaram uma legião de adoradores, sobretudo do principal personagem criado pela britânica. Protagonista de dezenas de histórias publicadas por décadas, o detetive Hercule Poirot tornou-se um rei do whodunnit com seu faro implacável para descobrir pistas nos menores e mais escondidos sinais deixados nas cenas dos crimes e amarrar motivos e pessoas envolvidas com perspicácia e inteligência extrema, assombrando não só as pessoas ao redor como também todos os leitores. Nada mais natural, portanto, que meios populares como o cinema e TV absorvessem as tramas para oferecê-las às novas gerações por meio do audiovisual.

Depois de algum sucesso nas telonas durante os anos 1970, o personagem voltou recentemente a ganhar foco em Hollywood, desta vez vivido pelo ator e diretor Kenneth Branagh. Em dobradinha com o roteirista Michael Green, ele recolocou Poirot nas salas de projeção (ou melhor, nos trilhos), em 2017, adaptando o clássico Assassinato no Expresso Oriente. Com elenco estelar e direção de arte (o que inclui cenários e figurinos) de encher os olhos para quem gosta de toda a pompa e beleza do visual vintage. O sucesso de bilheteria logo proporcionou uma segunda produção (outro título bastante popular) também com os mesmos ingredientes. Contudo, a pandemia e polêmicas pessoais em torno de Armie Hammer, um dos atores principais de Morte no Nilo, fizeram o longa ser engavetado e ter sua estreia adiada para o começo de 2022.

Por isso o curto intervalo de tempo para uma terceira obra, que chega aos cinemas de todo o mundo nesta semana. A Noite das Bruxas (A Haunting In Venice, EUA/Reino Unido/Itália, 2023 – Fox/Disney), entretanto, quebra um pouco o esquema dos anteriores para correr maiores riscos. Boa jogada de Green e Branagh, que acertam em cheio, já que a adaptação do crime ocorrido no cruzeiro de luxo que percorre as águas do rio egípcio deu uma bela balançada e quase provocou o naufrágio da continuidade do detetive belga no cinema. Para começar, a diferença já vem na escolha da obra literária dentro da galeria de títulos escritos por Christie. Não só Hallowe’en Party é um romance um tanto quanto desconhecido do grande público como ele também é uma das criações derradeiras dela. O livro saiu em 1969, mais de trinta anos depois de Assassinato no Experesso Oriente e Morte no Nilo. Agatha já estava nos anos finais de sua longeva vida e isso acaba por se refletir na premissa da trama. Outro detalhe é que esta história de Poirot mergulha fundo no terror, mais precisamente em questões ligadas ao sobrenatural – o que vira um grande chamariz de audiência, já que este é o gênero que vem bombando há várias temporadas nas bilheterias mundiais, sempre com grande oferta de títulos pipocando aqui e ali, inclusive produções de países fora do eixo anglo-americano.

Terceiro apontamento: o filme joga o protagonista em nos aposentos lúgubres de um castelo supostamente assombrado na Veneza do pós-guerra, de onde nem ele nem ninguém pode sair por conta da água dos canais e da chuva torrencial que cai a noite inteira. Entre fantasmas, comunicação com os mortos e tentativas bem e mal sucedidas de assassinatos, o protagonista precisa lutar contra seus próprios demônios e manter-se mentalmente são para poder solucionar o que está à sua frente. Ou seja, ele bate o pé no ceticismo mais irretocável para provar que o mundo de lá realmente não existe e o além-vida não passa de uma sequência de farsas e fraudes. Mesmo que tudo pareça, de fato, real.

Hercule, entretanto, não está sozinho nesta empreitada. Aliás, ele nem desejava estar lá no castelo. Ao ter escolhido a charmosa e secular cidade no nordeste italiano para morar enquanto curte a aposentadoria de sua vida como investigador, acaba sendo procurado por uma velha amiga, a autora de livros de suspense e mistério Ariadne Oliver. Interpretado por Tina Fey, este explícito alter-ego de Agatha Christie transformado em um de seus personagens mais famosos, convence Poirot a ajuda-la em mais um caso que pretende utilizar em seus livros: desvendar se uma famosa médium é capaz de conversar mesmo com quem já bateu as botas. Os dois vão a uma sessão promovida pela mãe de uma jovem que teria sido assassinada anos antes, na noite de 31 de outubro. Enquanto isso, a mesma mulher promove no castelo uma festa local e tradicional para as crianças da cidade naquela data.

Michael e Kenneth mexem bastante na história criada por Agatha, a ponto de nem utilizar o nome original do livro (na verdade, o título em português resgata o mesmo utilizado por aqui desde o seu primeiro lançamento). Joyce Reynolds, a tal sensitiva mediúnica, não é uma adolescente de 13 anos de idade e que garante ter presenciado um homicídio. No filme, aliás, ela já tem idade bem avançada e provoca polêmica na opinião pública, sendo inclusive presa por acusações de falsidade ideológica. Michelle Yeoh faz o papel e garante alguns pequenos alívios cômicos da história, sobretudo nos diálogos trocados com o “insensível” e racional detetive.

Diferentemente de Morte no Nilo, aqui o foco é na trama mesmo, não no passado de Hercule Poirot e em dilemas pessoais trazidos por ele lá do passado. Com isso, não só Michael e Kenneth enxugam bastante o tempo de projeção como permitem uma narrativa mais fluida e direta, sem tanta lenga-lenga e demora para engrenar e envolver o espectador no misterioso caso. Tudo bem que em determinadas ocasiões os jump scares apresentados não diferem muito do trivial dos filmes de terror. Entretanto, essa ferramenta não compromete o resultado final nem o envolvimento do espectador. Aliás, a trilha sonora composta pela celista islandesa Hildur Guðnadóttir ajuda a dissociar as imagens do lugar-comum.

O elenco também se mostra mais afiado do que aquele escolhido para o segundo longa. Além de Fey e Yeoh, temos aqui Kelly Reilly (a tal mãe da jovem), Camille Cottin (a empregada da mulher), Jamie Dorman (um médico que sofre com o estresse pós-traumático provocado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial), Jude Hill (o filho dele, entrando na puberdade e um adolescente nada convencional), Emma Laird e Ali Khan (os irmãos que querem fazer de Reynolds uma mera escada para poderem fugir aos Estados Unidos e morar lá de vez).

Para um filme que propõe a quem assiste embarcar em uma sessão de quase duas horas de entretenimento de qualidade, com direito a astúcia e inteligência, A Noite das Bruxas deve garantir a sobrevivência de Hercule Poirot nas telas por mais um bom tempo. E não só isso, aliás. James Pritchard, bisneto da escritora britânica, administrador de seu legado e produtor executivo dos longas dirigidos e estrelados por Branagh, dá indícios de que um novo elemento do agathaverso está prestes a ser descortinado. Pode estar vindo por aí a primeira história da  versão feminina de Poirot, a senhora solteirona que brinca de detetive amadora conhecida como Miss Marple.

Movies

Vozes do Passado

Reencontro entre mãe e filha revela verdades aterradoras com direito a fantasmas do passado e visões sangrentas

Texto por Amanda Janssen

Foto: Synapse Distribution/Divulgação

Recém-disponibilizado nas plataformas de compra e aluguel de filmes no Brasil, Vozes do Passado (Reunion, Nova Zelândia, 2020 – Synapse Distribution) é um thriller com elementos de drama psicológico e algumas figuras constantes no universo do terror sobrenatural.

Nele, Elly (Emma Draper) interpreta uma mulher grávida que retorna à casa onde cresceu e revê a mãe (Julia Ormond), da qual estava afastada já há uns bons anos. A casa está uma bagunça de caixas, pois está para ser vendida. A sensação sufocante, claustrofóbica, realça o desconforto no reencontro das duas. A filha está escrevendo um livro acadêmico sobre as origens da ciência na Idade Média, com ocultismo e alquimia. Aos poucos, verdades aterradoras vêm à tona, com direito a fantasmas do passado e visões sangrentas. 

O resultado é bom, a narrativa realmente segura o espectador, apesar das sensações desagradáveis que a trama pode trazer – como em O Bebê de Rosemary ou alguma obra baseada nos livros de Stephen King. A escolha dos planos em certas cenas aumenta esse incômodo. Traz algo que faz com que a gente em certo momento não consiga distinguir o que é real do devaneio.

Dirigido por Jake Mahaffy e rodado na Nova Zelândia, Vozes do Passado é um bom representante da safra atual de suspenses. Não chega a ser inovador, mas é rico em referências e bem costurado. Aqui vai um ALERTA DE GATILHOS: há relações familiares difíceis e violência. Caso você esteja grávida, é melhor não assistir ao longa.

Movies

Ghostbusters: Mais Além

Franquia de sucesso da década de 1980 volta aos cinemas com protagonistas adolescentes e homenagens aos filmes originais

Texto por Flavio Jayme (Pausa Dramática)

Foto: Sony Pictures/Divulgação

O público de hoje pode não saber, mas na década de 1980 os Caça-Fantasmas se tornaram fenômeno mundial. Os filmes foram um acontecimento pop e viraram até desenho animado e videogame com o divertido Geleia como coadjuvante.

Os Caça-Fantasmas, o primeiro filme, foi lançado em 1984 e trazia astros da época em uma história cheia de ação, fantasia, humor e, claro, fantasmas. Nomes como Bill Murray, Sigourney Weaver, Dan Aykroyd e Rick Moranis estavam à frente do elenco e ajudaram a catapultar o sucesso do título com seu carisma e talento. Dirigido por Ivan Reitman, o longa gerou uma continuação um pouco menos memorável em 1989 e ficou marcado na história do cinema.

Como vem acontecendo hoje, não tardaria para que os Caça-Fantasmas voltassem para as telas em um reboot, sequência ou remake. Esqueça o filme de 2016, estrelado por Melissa McCarthy e Kristen Wigg. Ele funciona no máximo como um spin-off esquecível, exagerado e desnecessário.

Agora, depois de vários adiamentos por conta da covid-19 finalmente podemos assistir a Ghostbusters: Mais Além (Ghostbusters: Afterlife, Canadá/EUA, 2021 – Sony Pictures) no cinema. Assim mesmo, com o nome da franquia em inglês, como ditam as regras da globalização. Desta vez, a história vem pra se conectar com o público mais jovem e criar uma nova geração de fãs. Feito para os pais nostálgicos (que são apaixonados pelas duas aventuras de suas infâncias) levarem os filhos ao cinema, Ghostbusters: Mais Além vem prontinho para o momento. Não é apenas uma sequência tardia, mas também uma homenagem aos filmes originais e um reboot. Tudo em um pacote só.

Na aventura, conhecemos Phoebe (McKeena Grace) e seu irmão Trevor (Finn Wolfhard). Ela com 12 anos e ele com 15, os dois são levados para a fazenda do avô que acabou de falecer. Falida, a mãe vai ter que reconstruir a vida sem dinheiro ali naquela cidade minúscula no meio do estado de Oklahoma com os filhos. As crianças não tardam a perceber que a casa do avô está cheia de mistérios e coisas estranhas passam a acontecer.

Durante todo o filme, é nítida a dedicação do diretor Jason Reitman (não por acaso, filho de Ivan Reitman, diretor das produções originais) em homenagear o longa de 1984 e seus protagonistas. A própria história tem um ar de “antiga”, como se fosse algo feito décadas atrás. Não estão ali os exageros nos efeitos especiais tão comuns hoje em dia, nem a histeria no roteiro e até mesmo alguns monstros ou apetrechos parecem “mal feitos” de propósito para dar a ideia de que ainda estamos vendo um filme dos Caça-Fantasmas originais. Desnecessário dizer que aconselhamos muito que você reveja os longas originais antes de ir ao cinema. Mas claro que o longa sofre de uma das maldições do cinema atual: agora os protagonistas são crianças e adolescentes. Os adultos – e aí inclua o careteiro Paul Rudd (de Homem-Formiga) – são meros coadjuvantes da história.

Com um humor inteligente e ágil, muita homenagem aos filmes anteriores e trazendo caras novas para dar continuidade à história, Ghostbusters: Mais Além é um produto de seu tempo: um reboot-sequência que agrada tanto aos fãs antigos quanto cria e se comunica com os novos. Feito na medida pra geração que nasceu na década de 80 e hoje celebra séries e filmes situados na época e olha pro passado com nostalgia. Mas sem esquecer de também olhar pro futuro, o longa também é feito para os mais jovens, repleto de ação e humor. Um filme que abre caminho para o futuro, ainda que ele pareça estar no passado…