teatro

O Bem-Amado Musicado

Obra-prima de Dias Gomes ganha nova encenação e choca ao expor a olhos nus o país de hoje em um texto de seis décadas atrás

Texto por Abonico Smith

Foto: Festival de Curitiba/Divulgação

Soteropolitano de nascimento e radicado na cidade do Rio de Janeiro desde a adolescência, Alfredo de Freitas Dias Gomes é um nome intrinsecamente ligado à dramaturgia. Ganhou popularidade em todo o país a partir da formação de rede nacional da TV Globo nos anos 1970, quando assinou novelas marcantes como Bandeira 2O Bem-AmadoO EspigãoSaramandaia Roque Santeiro. Mas antes já era bem íntimo de romances literários e peças teatrais. Escreveu a primeira encenação aos 15 anos de idade e foi muito produtivo entre as décadas de 1940 e 1960, até ir para a televisão e formar uma legião de fãs e discípulos que vieram a marcar a história das produções nacionais.

O ano de 2022 marcou o centenário de Dias Gomes. Entretanto, apesar de sua intensa criação, o teatro brasileiro parece ter se esquecido de um de seus maiores criadores. Na temporada da retomada, não só a pós-pandemia como também na normalidade quatro anos tenebrosos e de aberrações na política brasileira, apenas uma peça assinada por ele esteve em cartaz. Compensou o fato também de não ser qualquer encenação, mas sim aquela que muitos consideram a maior de todas as peças (embora a concorrência com O Pagador de Promessas seja grande, na verdade). E que, depois de algumas semanas em temporada bem acalorada e comentada em São Paulo, está chegando agora a algumas outras capitais, inclusive tendo passado por duas noites de Teatro Guaíra lotado no Festival de Curitiba em 3 e 4 de abril.

O Bem-Amado Musicado é uma pequena adaptação do original escrito e encenado originalmente em 1962 sob o nome de Odorico, o Bem-Amado ou Os Mistérios do Amor e da Morte. No texto original de Dias Gomes nada, absolutamente nada foi alterado ou acrescentado. A única mudança que a trupe liderada pelo protagonista Cassio Scapin (que até então sempre alimentara o sonho de interpretar Odorico Paraguassu) e o diretor Ricardo Grasson apresentam em cena é uma coleção de novas canções, compostas exclusivamente por Zeca Baleiro e Newton Moreno e dirigidas por Marcio França (que também está no palco como o pistoleiro regenerado Zeca Diabo) para esta peça e executadas em cena por músicos e atores. Tanto que ganhou um novo título, justamente para se diferenciar do nome tradicional. A intenção, segundo Grasson e Scapin, foi tentar se distanciar ao máximo da grande trilha sonora feita por Toquinho e Vinícius de Moraes para a adaptação ao formato de folhetim feita pelo autor para o horário das 22h das novelas da Globo em 1973. Melhor também quanto à questão do pagamento de direitos autorais…

A versão trazida aos palcos exatamente seis décadas de depois é de uma competência só, não apenas quanto às novas músicas – que são executadas e cantadas pelos atores que fazem os personagens centrais da trama passada na pequenina cidade baiana de Sicupira (como Odorico, Zeca Diabo, as cabos eleitorais e três irmãs Cajazeiras, o aspone do prefeito Dirceu Borboleta, o vigário da igreja, o dono do jornal local e maior oponente político do protagonista). Cenários e figurinos também servem como colírio para os olhos, misturando referências da xilogravura dos cordéis nordestinos, a comédia dell’arte inserida nos filmes de Federico Fellini e todo o imaginário construído pelo teatro popular brasileiro. A química que envolve todo o elenco também se torna fator de destaque durante as quase duas horas de encenação.

Contudo, o que mais choca o espectador é a extrema atualidade do texto feito por Dias Gomes há seis décadas. Do começo ao fim, o dramaturgo parece não apenas ter utilizado como base para o seu misto de acidez e ironia para alfinetar a política brasileira realizada até então, mas também utilizado uma bola de cristal e previsto não só tudo aquilo que continuaria ocorrendo ao longo das décadsa e ainda se intensificaria em inimagináveis níveis estratosféricos nestes últimos quatro anos de (des)governo do falso messias. Mas, parafraseando o próprio Odorico Paraguassu e deixando de lado os entretantos para cegar aos finalmentes, a trama do prefeito corrupto envolve demagogia popularesca, fake news, nepotismo, desvio de verbas, gastos orbitais do dinheiro público. Também há ali os choques de interesse entre executivo e judiciário e o uso da religião para a descarada instrumentação política da classe trabalhadora.

Nesta montagem, Scapin, França e Grasson se firmam como um sólido tripé para saudar a obra e a genialidade de Dias Gomes em um tempo em que as artes brasileiras, ainda se refazendo de um período terrível de trevas e achatamento, andam precisando do surgimento de novos autores como o baiano-carioca. Já faz quase um quarto de século que ele partiu – morreu no dia 18 de maio de 1999, vitimado por um acidente automobilístico em uma madrugada paulistana após ir ao teatro para ver uma ópera e jantar com a esposa. Ainda faz muita falta.

Movies, teatro

A Tragédia de Macbeth

Joel Coen filma clássica peça de Shakespeare e volta a suscitar o debate sobre a diferenciação entre palcos e telas

Texto por Luca Passos

Foto: Apple TV+/Divulgação

Mais uma adaptação do teatro ao cinema, mais uma abertura para voltar à discussão que exercita mãos e bocas de estudiosos das duas artes há tempos: a diferenciação essencial dos palcos e das telas. O rótulo pejorativo “teatro filmado” seguiu por muito tempo, dentro da crítica de cinema, aqueles filmes que não se propunham a ser mais do que uma captação da imagem dos atores e das atrizes e a gravação de suas falas. Ao contrário, o filme real deve, idealmente, tratar o material-fonte escrito – seja uma peça ou um roteiro – de modo a se utilizar do específico do cinema enquanto arte, assim não apenas justificando a escolha da mídia, mas também, pela própria consciência desse dever que o diretor traz, realçando a obra em todos os seus aspectos. Resta-nos, portanto, tentar desvendar se esta nova gravação de uma das mais famosas peças shakespearianas, A Tragédia de Macbeth (The Tragedy Of Macbeth, EUA, 2021 – Apple TV+), consegue tal feito, seja a conquista ao menos parcial. 

Como acontece com toda boa história, são necessárias poucas palavras para fazer um resumo: o enredo versa sobre a ascensão e queda do regicida Macbeth (Denzel Washington), apoiado em sua crescente loucura de ambição pela não menos ambiciosa Lady Macbeth (Frances McDormand). A trama é profetizada logo nos minutos iniciais do filme pelas famosas Bruxas (interpretadas corporal e espetacularmente por Kathryn Hunter) e também é sustentada por elas, que vêm e voltam durante todo o filme. A grande espiral de paranoia e arrependimento em que o casal principal cai durante todo o filme tem grande vazão visual: os delírios, sonoros ou visuais, são constantes. Essa descida é acompanhada por um vasto mosaico de personagens secundários e terciários que orbitam o centro de poder e lamentação dos Macbeth. No entanto, a vida na nobreza, com seus títulos, seus castelos e seu jogo político, não parece ser mais que um adorno da profunda exploração da natureza humana que permeia tanto a peça original quanto, mais por consequência do que por mérito, o filme.

Nesse sentido, o diretor (e também roteirista) Joel Coen, no primeiro esforço sem seu irmão Ethan, agora aposentado da cadeira de diretor cinematográfico, filma a história de aproximadamente 400 anos com um grande acento minimalista, elaborando cenários que oferecem apenas o essencial à mise en scène. O apelo dos filmes do diretor Carl Theodor Dreyer, fortemente influenciado pelo teatro, é crucial ao diretor, que faz como o dinamarquês ao sobrevalorizar a atuação, o rosto dos atores e das atrizes. A câmera de Coen não investiga as pessoas que filma, são essas mesmas pessoas que parecem investigar as palavras que saem de suas bocas, e nós apenas observamos esse espetáculo. É, de fato, espetacular acompanhar atores e atrizes do peso dos protagonistas interpretarem personagens que já passaram nos corpos de tantos outros. Mas um filme não pode ser só isso. Existe ainda o risco de se cair no teatro filmado.

O mais velho dos Coen sabe bem usar e movimentar sua câmera e uma composição cadenciada de luz e sombra, a repetição variada de certos elementos geométricos, o som abafado, o desfoque dramático. Mas para quê, exatamente? Em que espaço sua câmera se projeta? De onde vêm a luz e a sombra? No coração de quem elas guerreiam? Esse drama, essa tragédia toda reflete algo ou é apenas o trabalho desinteressado sobre um texto, este sim, profundo? Há, pelo que parece, uma grande fábrica subterrânea nos galpões da A24 (produtora do filme) onde se confecciona um verniz que é aplicado na maioria das obras por ela executadas, um produto que se passa sobre cada obra a ponto de fazê-la brilhar para os prêmios e festivais. Um plasma que encapsula tudo o que é de bom gosto. Não há como mentir: os planos do filme são agradáveis, vistosos, e serviriam, sim, como um bom papel de parede, uma fotografia no centro da sala, perfeita em si mesma como adereço. Porém, o cinema não é o teatro filmado de modo aprazível. O cinema é o que vaza.

É estranho que o texto de Macbeth caia como uma luva na filmografia de Coen – a história da ambição de um homem e sua posterior derrocada apenas transposta dos rincões estadunidenses para a Escócia feudal – e, mesmo assim, o diretor patina ao tentar dar uma significância cinematográfica às palavras do texto de Shakespeare. Tudo cai no vazio dos símbolos imagéticos que já nascem esgotados e teimam em se repetir durante todo o filme, como se Joel quisesse que víssemos neles a essência do texto de William Shakespeare. Se isso fosse verdade, Macbeth, enquanto obra, nunca teria chegado nestes tempos. No entanto, ele bem consegue fazer de todos esses cacoetes ancorados tão somente nas atuações dos personagens o centro de seu filme. Diferente do já citado Dreyer, que compreende os espaços como jogos cênicos, mesmo que sejam quase vazios, Coen realmente faz suas personagens e imagens ficarem presas a um nada.Tudo o que aparece no filme é um mundo que não existe sequer em si mesmo, e que, no entanto, não tem a menor força de atração: é frio e esquemático, algo que repele, mas que ao mesmo tempo temos que acompanhar, por ser a única coisa disponível.

Tudo fica, portanto, contido em si mesmo, nada vaza ou se sobressai de sua própria aparência num estado sentimental. As próprias atuações são, como já disse, atuações. Nunca nos vendem algo fulcral: a realidade. A filmagem vira também um teatro, passível de desacobertamento pelo público durante o próprio ato da projeção: pecado capital do cinema. Tal qual o personagem Macbeth, que às cegas tenta lutar contra seu destino já prenunciado pelas Bruxas, também o diretor parece se debater inutilmente, já desde o começo, contra uma obra que excede muito às suas capacidades enquanto realizador. 

Movies, teatro

Querido Evan Hansen

Premiado musical da Broadway sobre ansiedade, depressão e fobia social na adolescência carrega a mão na tristeza em versão para o cinema

Texto por Flavio Jayme (Pausa Dramática)

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Quando falamos em musical, é difícil imaginar um filme dramático e triste. Até porque é muito mais fácil sair cantando e dançando na rua quando se está feliz, né? Por isso mesmo, esse é o primeiro gosto estranho que Querido Evan Hansen (Dear Evan Hansen, EUA, 2021 – Universal Pictures) traz ao paladar: sua história é triste, suas músicas são dramáticas. Seu tom é de tristeza e tragédia. As canções (e aqui fala alguém apaixonado pelas músicas de La La Land O Rei do Show, dos mesmos compositores) parecem sobras de um disco de uma banda emo dos anos 1990.

A história parte de um ponto bastante interessante: Evan Hansen, um jovem que sofre com ansiedade, fobia social e depressão, é aconselhado por seu terapeuta a escrever cartas de apoio para si mesmo. Um dia, na escola, ele manda imprimir uma destas cartas por engano e o isolado e problemático Connor pega e lê. Pensando que a carta falava dele, Connor a leva consigo. Dias depois, Evan recebe a notícia de que Connor se suicidou e o único bilhete que deixou foi uma carta que começa com “Querido Evan Hansen”. O que ninguém sabe é que não foi Connor quem escreveu a carta, mas o próprio Evan. O mal entendido, então, ganha proporções inimagináveis.

Sim, é um musical sobre ansiedade, depressão e mentiras para aliviar a dor. E, por isso mesmo, as coisas não combinam. Evan (Ben Platt) canta o tempo todo sobre sua dor e os motivos para sustentar sua mentira, que ele mesmo estimula. Pois é: ao mesmo tempo que ele sabe que o que faz não é certo, tenta se convencer de que é bom. Enganando os colegas de escola e os pais de Connor, ele nos deixa em uma posição difícil sobre gostar do personagem. A mentira é justificada pelo fato dele ter encontrado na família de Connor a que nunca teve? Ou nada justifica o fato dele inventar que ele e o rapaz tinham uma amizade que nunca existiu?

É difícil segurar todo um musical fundamentado na tristeza e na “realidade”, ainda mais quando não conseguimos nem saber se gostamos do protagonista. Mesmo os mais dramáticos (citemos Evita e Os Miseráveis) têm um pé na fantasia e no exagero. Mas, ao querer ser realista, Querido Evan Hansen acaba se levando a sério demais e seu exagero fica somente por conta dos agudos mesmo. Não há um respiro, um número musical alegre, um momento de redenção em todas aquelas lágrimas. Isso acaba cansativo.

Outro problema do filme é que, vendo a confusão em que Evan se enfia a cada dia mais, ficamos esperando pelas consequências da mentira. Quando elas chegam, é de forma simplista, apressada e mal resolvida. Era de se esperar que uma história tão dramática tivesse um final poderoso. Só que não. Ele aparece murcho e sem gosto. Pode ser uma falha da direção de Stephen Chobsky em levar uma história que fez tanto sucesso nos palcos para a tela.

No final das contas, Querido Evan Hansen vale por uma ou duas músicas (uma delas original do filme, “Anonymous Ones”, pronta para concorrer ao Oscar) e pelas participações de Amy Adams e Julianne Moore. Se for pra ver um musical recente sobre jovens em high school, opte por Todo Mundo Está Falando Sobre Jamie ou A Festa de Formatura.

P.S.: Muitos críticos reclamaram da escolha de Ben Platt (que tem 28 anos) para interpretar o protagonista, um adolescente de 17. Porém, além do fato dele ter feito o personagem na Broadway por mais de cem apresentações (e ter vencido o Tony Award por isso!), esta diferença de idade nunca foi problema em Hollywood. Basta ver a quantidade de adultos que interpretam adolescentes nas produções. Exemplo: quando Glee começou, Cory Monteith (o Finn) tinha 27 anos e interpretava um teenager no high school.

Books, Music, teatro

Antônio Bivar

O eterno beatnik que organizou o primeiro festival punk no Brasil e transformou Rita Lee em persona glam após a saída dela dos Mutantes

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Texto por Regis Martins

Foto: TV Cultura/Reprodução

É difícil imaginar que um sujeito como Antônio Bivar iria morrer de uma forma tão abrupta aos 81 anos. Um ser humano como ele – leve, centrado e feliz – merecia coisa melhor. Mas a vida, amigos, é injusta, e neste domingo 5 de julho lá se foi um dos meus heróis, levado pela peste chamada covid-19, que assola esse mundo.

Tive o grande prazer de conhecer Bivar por questões profissionais. Na verdade, usei o jornalismo como desculpa para poder falar com ele. Acho que consegui realizar umas cinco entrevistas com Bivar: duas pessoalmente e três por telefone. Por incrível que pareça, sempre tinha algo diferente pra arrancar de sua memória prodigiosa.

Como muitos da minha geração, conheci a obra desse dramaturgo, escritor, produtor e agitador cultural graças ao livro O que é Punk, lançado em 1982, ano em que Bivar organizou o primeiro festival punk do Brasil (O Começo do Fim do Mundo, no Sesc Pompeia, em São Paulo). E só na faculdade, quase dez anos depois, descobri que o sujeito era de Ribeirão Preto, cidade paulista em que vivo desde os meus 15 anos.

Bivar nasceu numa fazenda na região da Serra da Cantareira e depois se mudou com a família para Igarapava e, na sequência, para Ribeirão. Viveu por aqui até os 20 e poucos anos, quando encheu o saco e foi com a cara e coragem para o Rio de Janeiro estudar teatro.  Após, seguiu rumo à capital paulista, onde morou até o fim da vida.Em uma das últimas conversas que tive com ele, dizia estar meio cansado de São Paulo e pensava até em voltar para o interior. Não deu tempo.

Mas ele nunca esqueceu suas raízes e estava sempre em Ribeirão, onde visitava a irmã e os sobrinhos. Seu irmão mais velho era Leopoldo Lima, um dos grandes nomes das artes plásticas do país. Bivar apoiava algumas bandas locais e trocava correspondência com a molecada da mesma forma em que falava com veteranos da cena punk como Jello Biafra, ex-lider do Dead Kennedys. Sobre Jello, contou certa vez que o cara era fanático por Carmen Miranda. ‘Imagina eu dizer pros punks daqui que o líder do Dead Kennedys era fã de Carmen Miranda?”, lembrou.

Uma das últimas entrevistas que fiz com Bivar, em 2016, foi sobre o lançamento do DVD em comemoração dos 30 anos do festival O Começo do Fim do Mundo. Por telefone, ele me contou que teve contato com o movimento punk paulista no início dos anos 1980, quando acabara de chegar de uma de suas várias viagens à Inglaterra. “Londres fervilhava com muitos artistas novos. Quando cheguei ao Brasil, isso aqui parecia a Idade Média. Muito atrasado. A única coisa nova era o movimento punk, que era algo diferente de tudo”, recorda. Bivar ficou tão empolgado com aquela garotada de coturno e jaquetas de couro que pensou em organizar um grande festival com as bandas de São Paulo. “Juntou eu, o Calegari (da banda Inocentes) e o Mingau (do Ratos de Porão) e fomos lá falar com a diretoria do Sesc. Eles toparam de cara, sem que a gente tivesse um projeto sequer”, ressaltou.

O ribeirão-pretano adorava a Inglaterra e desde sempre fez essa ponte entre Londres e São Paulo. No final dos anos 1960, com peças de teatro premiadas no currículo, mandou-se para a capital inglesa num autoexílio junto com o pessoal da Tropicália e o amigo (também dramaturgo) José Vicente. Mineiro de Alpinópolis e que também viveu em Ribeirão Preto, Zé Vicente foi o autor de Hoje é Dia de Rock, que fez um sucesso danado nos anos 1970. Os dois andavam na Picadilly Street de forma tão extravagante que, segundo Bivar, um olheiro da equipe de Stanley Kubrick os convidou para fazer figuração no filme que o diretor estava preparando naqueles anos: Laranja Mecânica.

TUTTI-FRUTTI

Bivar não participou do filme, mas viu nascer o glam rock em terras britânicas, gênero que o deixou maluco. De volta ao Brasil, com mil ideias na cachola, convenceu Rita Lee a entrar de cabeça no glitter e na androginia. “Na época a Rita ainda era muito ligada àquela coisa de anos 1960, muito hippie. Além disso, ela ‘se achava’”, me disse.

O fato é que toda a concepção do que seria a Rita pós-Mutantes saiu da mente de Bivar. Nascia o disco/show Fruto Proibido, um dos clássicos absolutos do rock nacional com a cantora transformada a la Ziggy Stardust e uma banda de craques para acompanhá-la, a Tutti-Frutti. Ah sim, o nome do grupo foi criado por Bivar. “Eu fazia de tudo, até a maquiagem dos meninos. No começo não achavam muito bom não, mas foram se acostumando”, lembra.

Trabalhou com Rita ainda várias vezes, inclusive no programa TVLeezão, que a ruiva fez para a MTV Brasil. Na última vez que falei com Bivar, ele andava chateado com a amiga. Rita brincou maldosamente com alguma coisa que o deixou puto. Assim é Rita: perde o amigo, mas não perde a piada. Porém, descobri por meio do dramaturgo Mario Bortolotto que Rita vivia emprestando dinheiro para Bivar, sem qualquer sinal de retorno, quando a situação apertava.

Enfim, assim era Bivar. Escreveu peças maravilhosas e grandes livros, traduziu clássicos beat (como On The Road, de Jack Kerouac, trabalho feito em parceria com o escritor e jornalista gaúcho e agora youtuber Eduardo Bueno), viveu a vida que quis. Era um lorde sem lenço e sem documento. Ou melhor: um autodeclarado beatnik em pleno interior paulista numa época em que, nem na capital, sabiam o que era isso. Farewell, dude!