Drama

Traidor

Gerald Thomas e Marco Nanini voltam a trabalhar juntos em espetáculo com jorro intenso de lembranças da vida de um velho e solitário ator

Texto por Abonico Smith (com colaboração de Daniela Farah)

Foto: Annelize Tozetto/Festival de Curitiba/Divulgação

Dentre todas as palavras que cumprem a função de sinônimo para o título deste espetáculo, a que melhor se encaixa é “enganador”. Afinal, não pode haver descrição para o velho ator, que, solitariamente, vê-se envolto em uma névoa mental onde fluxo ininterrupto de pensamentos, vozes, luzes e reflexões passam toda a sua vida a limpo, pessoal e profissionalmente falando. Enquanto tudo isso ocorre, o protagonista também percorre o caminho do engano. A si próprio e também à plateia que está lá diante dele, por conta da mágica da quarta parede quebrada.

Dezoito anos depois, Marco Nanini e Gerald Thomas voltam a trabalhar conjuntamente em uma produção, que ocupou os dias de 29 e 30 de março do Teatro Guaíra e da grade da mostra principal do anual Festival de Curitiba. Ator e dramaturgo, na duração de apenas sessenta minutos, provocam um jorro de considerações a respeito de passado, presente e futuro do personagem, “perdido em uma ilha” de ideias e considerações a respeito de muita coisa. Tal qual a torrente apresentada em um feed de rede social. Seja o Facebook, seja o Instagram, seja o X, seja o TikTok, seja o Kwai. O suporte é o que menos importa, mas sim o bombardeio ininterrupto capaz de provocar vertigem. Ou medo. Ou gozo.

Por falar em gozo, Gerald Thomas permanece sem resistir à tentação de provocar a  plateia, colocando atores renomados pronunciando palavras que fazem uma pretensa elite cultural se retorcer por dentro. Sim, os tais termos de baixo calão e com beliscadas na tangente do sexual. No primeiro Festival de Teatro de Curitiba, lá no já longínquo ano de 1992, barbarizou a plateia “republicana” em The Flash and Crash Days, na qual Fernandona (Montenegro) e Fernandinha (Torres) fizeram metade da plateia sair indignada da Ópera de Arame. Três décadas depois, com bem menos incautos na audiência mas ainda assim com um punhado de gente “de bem” que ainda tem a capacidade de se ofender e se chocar com isso, ele coloca Nanini dizer uma, duas, três vezes “cu” do palco do Teatro Guaíra. E não apenas isso. O mesmo ator (“enganador”) que  ficou no imaginário de milhões de brasileiros na pele do recatado, tímido, discreto e certinho pai de família Lineu, um dos personagens de destaque na série de TV A Grande Família, segura uma linguiça gigante durante uma memória de comercial e passa a disparar considerações sobre como é gostoso sentir a tal linguiça quente entrando (no forno?). É o enfant terrible confrontando de frente e com humor bastante afiado os traidores da pátria e os defensores da moral e dos bons costumes da família verde e amarela.

Também não dá para imaginar Gerald Thomas dirigindo e criando uma narrativa fechadinha, convencional, com começo, meio e fim. O jorro de pensamentos que aflige Nanini (o personagem, batizado com o sobrenome do ator) vem com significados bem abertos, tabelando com o cenário que flerta com o steampunk, o nonsense e o hiperrealismo e o diálogo com uma voz feminina pré-gravada que o alerta de algumas situações. Tudo dura exatamente uma horinha só. Pode até parecer pouco perto da média de duração dos espetáculos teatrais em geral. Mas a intensidade é tamanha que quem se joga e curte a viagem de Nanini de cabo a rabo (ops!) sai recompensado. E nem precisa procurar muito sentido em tudo.

Aliás, quando o assunto é Gerald Thomas, como se brincava na estampa daquela velha camiseta, tudo o que você menos precisa é entender um espetáculo seu. A maioria de quem se propõe a fazer isso, por sinal, levanta a bunda (ops!) da cadeira e sai mais cedo do recinto.

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Três perguntas para Marco Nanini

Com Traidor, Você e Gerald estão retomando uma parceria depois de quase vinte anos. Como foi o processo de criação deste espetáculo?

Nossa relação sempre vai sendo feita aos poucos. Aqui foi se modificando conforme eu também ia sugerindo a ele algumas coisas, intercalando textos irreverentes com outros mais contemplativos. É uma peça cotidiana, sem aquela coisa de coisa, meio e fim, Então o personagem alterna ideias, alucinações. Tudo acontece muito rápido. Gerald é muito bom parceiro mas durante os ensaios, em um estúdio que temos na zona portuária do Rio de Janeiro, o Fernando [Libonati, meu diretor de produção, com quem estou há muitos anos] deu muita opinião por causa do traquejo que ele também tem. É tanta coisa que é dita no palco que eu acabo saindo esgotado mentalmente de cada espetáculo. Nanini é um personagem bastante complicado, custei a encontrar um sentido geral para ele., que fica na solidão, revivendo personagens, como se estivesse perdido em uma ilha. Meio que como o Próspero, de A Tempestade de Shakespeare.

Há um momento durante o espetáculo em que você faz referência a uma velha cafeteira que faz parte do cenário da peça mas não é usada para nada. Para aumentar o nonsense você nunca pensou ou sugeriu trocar a tal cafeteira por uma jarra de plástico em formato de abacaxi tal qual aquela que ficou famosa na mesa da família do Lineu n’A Grande Família?

Graças a Deus, não! Quero continuar me livrando do peso do Lineu. Quando digo peso, claro que isso é algo que existe de melhor para qualquer ator. O reconhecimento, afinal, do trabalho. Mas também ao longo do tempo sempre me pautei pela diversidade na carreira. Sempre foi algo pensado, sabia que não queria ser só ator de chanchada no início. Eu vou fazendo coisas diferentes conforme elas vão aparecendo. Outra coisa que também me afasta bastante do Lineu na peça é a maquiagem do personagem, inspirada numa mistura do maestro russo Shostakovich com o pássaro pardal. Isso me ajuda a pensar ainda mais que não sou eu que estou ali.

Recentemente você teve uma biografia sua lançada, assinada pela jornalista Mariana Filgueiras. O que achou desta experiência?

Rememorar minha vida foi um processo muito agradável. Já fiz tanto e ainda tenho aquela vontade de fazer mais. Gostei muito do jeito que ela escreveu o livro. Mariana é muito cuidadosa e competente. Eu não a conhecia, foi meu editor que sugeriu o nome dela.

Movies

Abe

Longa com diretor de Quebrando o Tabu e ator de Stranger Things mostra o poder de unir culturas e apaziguar conflitos pela gastronomia

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Downtown/Divulgação

Família é tudo igual, só muda de endereço, de país, de religião. Quantas ceias de Natal ou festas de aniversário já não terminaram em desavença regada a lágrimas de sour cream? Uma bela refeição temperada por temas como política e religião só pode se transformar numa terrível indigestão. Por isso, Abe (EUA/Brasil, 2019 – Downtown), longa dirigido por Fernando Grostein de Andrade (também conhecido como o irmão postiço de Luciano Huck e produtor do documentário Coração Vagabundo, sobre Caetano Veloso, e da série Quebrando o Tabu), usa o fascínio de um garoto de 12 anos pela culinária como gatilho para discutir antissemitismo, preconceito, tolerância e educação dos filhos enquanto enaltece o poder gastronômico de unir culturas e apaziguar conflitos. 

O longa foi lançado no Festival de Sundance, no ano passado, e, por causa pandemia de 2020, estreou em abril nos Estados Unidos, diretamente nas plataformas de vídeo on demand – no Brasil, chegou a ser exibido no cinema durante a Mostra de SP. Nele, Abe é interpretado pelo simpático Noah Schnapp, o Will da série teen sensação da Netflix Stranger Things. O simples fato de explicar a origem de seu nome já indica o caminho pelo qual a trama seguirá. Cada lado da família, o israelense judeu por parte de mãe e o palestino muçulmano por parte do pai (que, inclusive, é ateu), chama o menino por nomes diferentes que carregam o mesmo significado: Abrahim, Abraham e Avraim. Por isso, o apelido é o jeito mais fácil de encurtar as diferenças. 

O roteiro assinado pelos palestinos Lameece Issaq e Jacob Kader baseia-se numa premissa simples, porém eficaz, como arroz com feijão: a de que fusion cuisine, mais precisamente o falafel, serve para sustentar a união entre as pessoas e consegue levantar a discussão sobre intolerância religiosa de uma forma leve, sobretudo para o público infantojuvenil. Além disso, Grostein, que é radicado em Los Angeles, preocupa-se, nesta conexão Brasil-Estados Unidos, em imprimir dinâmica e agilidade aos seus movimentos de câmera, aproximando-se do universo frenético da internet, com cenas em que aparecem o feed do Instagram de Abe, hashtags e outros símbolos do ambiente virtual. 

O pré-adolescente, aliás, não é do tipo popular nas redes sociais e vive recebendo críticas negativas. Abe, porém, não dá muito valor pra isso. No mundo real, diante de tantas desavenças, o garoto tenta permanecer na Faixa de Gaza domiciliar e agradar aos dois lados da família, fato praticamente impossível – é preciso escolher, ser judeu ou muçulmano. Como seu hobby é cozinhar, ele procura aliviar na comida toda essa tensão que coincide com sua chegada à adolescência. Um dos momentos mais graciosos do filme é quando Abe encontra as receitas antigas da avó materna, um verdadeiro tesouro, transmitido de geração a geração, que na contemporaneidade vem perdendo sentido e valor. 

De tanto insistir em estudar gastronomia, Abe é matriculado pelos pais em um curso para aprimorar sua técnica. Quando percebe que se trata de aulas para crianças, o garoto desiste e corre até o restaurante de Chico Catuaba, o chef de cozinha brasileiro com quem Abe se encontrou pela primeira vez numa feira gastronômica no Brooklyn, bairro miscigenado de Nova York, onde a família do menino mora. 

Seu Jorge, experiente no cinema, oferece uma atuação sem sal, sobretudo quando está comandando sua cozinha formada por brasileiros que mal falam inglês (assim como a vida real), e parece bastante deslocado no papel. Na surdina, Abe começa a trabalhar de ajudante de Chico, primeiro lavando louça e descartando o lixo até colocar a mão na massa de verdade na cozinha “sincrética” de Chico, aos moldes da salada mista que o ator-cantor-compositor fez com algumas das mais clássicas canções de David Bowie para a trilha sonora do filme A Vida Marinha com Steve Zissou

No caso de Abe, porém, a trilha é o suprassumo do filme. Assinada por Gui Amabis e com supervisão de Jacques Morelenbaum, ela traz no repertório faixas de Zeca Veloso (filho do Caetano), Tulipa Ruiz, Sabotage, Carlinhos Brown, o uruguaio Jorge Drexler e clássicos da bossa nova. A ficha técnica, aliás, é um caldeirão multicultural. Além de atores americanos e brasileiros, o elenco conta com nascidos na Polônia e no Irã. Quem assina a direção de fotografia é o experiente italiano Blasco Giurato, de Cinema Paradiso.

Apesar de ter se cercado de ótimos profissionais, Abe se aproxima de um filme feito para a TV, principalmente por conta das locações reduzidas. A narrativa se desgasta ao se aproximar da metade da história. Afinal, do restaurante para casa e da casa para o restaurante não há mais nada para acontecer até o conflito do último ato, quando a família lava a roupa suja enquanto o peru está assando.