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Toda Noite Estarei Lá

Documentário revela a luta de uma mulher trans pelo seu direito de frequentar a igreja evangélica que a expulsou à força

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Divulgação

No Brasil, o direito ao culto é uma garantia de todo e qualquer cidadão. Em 2020, cerca de 80% do povo brasileiro, se não mais, considerava-se cristão (entre católicos e evangélicos), e as últimas décadas foram marcadas pelo aumento exponencial de igrejas e templos ao redor do país. Em um deles, contudo, Mel Rosário foi impedida de entrar.

Em Toda Noite Estarei Lá (Brasil, 2023) documentário que compõe a mostra Competitiva Brasileira do 12° Olhar de Cinema, as diretoras Tati Franklin e Suellen Vasconcelos acompanham a disputa judicial de Mel, uma mulher transexual que foi expulsa à força pela equipe da Igreja que costumava frequentar. Sua batalha termina em vitória no papel, mas o preconceito e a exclusão sistemática de pessoas LGBTQIA+ do meio evangélico permaneceram.

Passamos o longa todo com Mel. Se a montagem inicial nos apresenta a um filme fortemente combativo cujo objeto é a luta política de uma mulher trans por seu direito ao culto, logo entendemos que a câmera de Franklin está apontada para toda a vida dessa mulher, que é permeada e atravessada pela religião de modo avassalador. Em seu discurso, é evidente a crença em um “castigo divino” aos que lhe fizeram mal e na inabalável suposição de que todo sofrimento tem um propósito. Uma transexual em um ambiente LGBTfóbico ao extremo, Mel não questiona as instituições que perpetuam o preconceito contra si, imputando as agressões à individualidade do pastor ou no plano de Deus por sua fé.

Sendo assim, a figura de Mel, personagem-objeto do filme, está fundamentada numa contradição profunda entre modo de vida e modo de crença, aquele em constante desafio à normatividade conservadora enquanto este ancorado nessa mesma filosofia que a martiriza e hostiliza. Essa operação contraditória se cristaliza à medida que o filme se desenvolve, pois nem a protagonista nem as autoras do documentário têm interesse em questionar essa distensão profunda. O filme chega a fazer piada da falta de resposta à pergunta “mas por que você não vai pra outro lugar que te aceite?”. Será que ela deveria ir ou continuar insistindo? O culto a Deus tem local e hora para acontecer?

A forma com que o espectador responde esses questionamentos altera profundamente o modo com que enxerga o filme. É uma experiência, assim como a religiosa, profundamente calcada na subjetividade moral de cada um de nós. E a determinação de não tocar nesse vespeiro, mas deixá-lo ali, sempre presente, sempre crescendo, faz o longa-metragem se equilibrar num muro de palha. Ao invés mergulhar no conflito que dá nome ao filme, o enfrentamento de Mel contra aquela igreja, o caminho dessa narrativa é o de exaltar sua fé privada, suas boas ações e pequenas vitórias. 

Em certo momento, a obra deixa de lado o conflito religioso para enaltecer a posição política de Mel contra a prisão de Lula e na campanha de Haddad na eleição presidencial de 2018, que termina na eleição de Jair Bolsonaro. Ele já escancarava suas posições fascistas e profundamente LGBTQIAfóbicas e seu reduto eleitoral, pode-se dizer, fora a Igreja Evangélica. Ainda assim, o documentário não se interessa em tocar a contradição ético-política que grita em seu âmago, implorando para ser trabalhada.Toda Noite Estarei Lá nos apresenta uma premissa envolvente e desafiadora, inicia nossa jornada com todos os sinais de um forte filme político e decide nos deixar à espera. Seu foco é manobrado para uma exaltação das virtudes de Mel, uma protagonista que, mesmo com um carisma inigualável, não sustenta uma projeção que levanta tantas perguntas sem o interesse de respondê-las.