Movies

Uma Noite em Miami…

Encontro de lendas da cultura afro-americana do auge dos movimentos civis dos EUA supera as limitações de uma adaptação teatral para o cinema

Texto por Andrizy Bento

Foto: Amazon Prime/Divulgação

“This is one strange fucking night!”

Baseado na peça homônima de Kemp Powers, o longa de Regina King é um relato fictício de uma noite transformadora na vida de quatro personalidades lendárias. O que realmente se desenrolou naquele quarto de hotel, em 25 de fevereiro de 1964, apenas os protagonistas desse encontro – Sam Cooke (Leslie Odom Jr), Jim Brown (Aldis Hodge), Malcolm X (Kingsley Ben-Adir) e Cassius Clay (Eli Goree) – saberiam relatar com exatidão, visto que não existem registros se essa reunião realmente ocorreu. Mas partindo do contexto histórico, sócio-político, econômico e cultural da época, bem como das particularidades e características que definem os quatro protagonistas e seus respectivos papéis na sociedade, Uma Noite em Miami… (One Night In Miami…, EUA, 2020 – Amazon Prime) imagina quais foram as pautas discutidas naquela informal conversa entre amigos, sem soar forçado, didático ou superficial. Ainda que os eventos tenham sido ficcionalizados, o modo como a trama é conduzida torna a atmosfera crível e natural, escapando do caráter enfadonho que assombra outros longas adaptados de peças teatrais.

Dessa forma, os quatro relatam suas inquietudes, colocam na mesa seus conflitos e procuram conhecer as opiniões uns dos outros acerca dos rumos que pretendem dar às suas vidas. De maneira magistral, é como se o longa simbolizasse a véspera do rito de passagem de cada um dos quatro retratados. Seus caminhos estão prestes a mudar drástica e completamente e é visível como eles anseiam tanto pelo apoio mútuo (por vezes, expressando isso de modo tímido) como por ouvir as críticas que cada um tem a fazer sobre suas escolhas – mesmo que seja apenas para rebatê-las de maneira enérgica. Mas a produção não é só feliz ao abordar esse lado intimista dos retratados; de evocar o clima de bromance entre os quatro homens e desmitificá-los, despindo-os da aura heroica criada em torno de suas figuras. Situado no auge da segregação racial nos Estados Unidos do século 20, no momento em que o movimento pelos direitos civis (que pregava a igualdade para a comunidade afro-americana) tornava-se cada vez mais expressivo, o longa se aprofunda e reflete sobre questões ainda pertinentes à atualidade, tais quais racismo, colorismo e outros ismos, como ativismo e radicalismo.

A ousadia do pugilista Cassius Clay, a oratória do ativista Malcolm X, a energia do músico Sam Cooke e a ponderação do jogador de futebol americano Jim Brown são os traços que mais se destacam em suas personalidades e ressoam nos brilhantes diálogos imaginados por Powers (que também assume a função de roteirista do filme), mas, felizmente, a composição dos protagonistas na tela foge com sabedoria de arquétipos limitados, de retratações bidimensionais e rasteiras. Apesar da segurança com que emitem suas opiniões e de soarem autoconfiantes demais, suas conversas enveredam por caminhos que trazem à tona certa vulnerabilidade, o receio com relação à mudança e algumas mágoas e rancores acentuados. A construção dos personagens, por meio de diálogos reveladores, é notável por humanizar nomes conhecidos como lendas, com legados inquestionáveis em suas respectivas áreas de atuação. Powers e King querem que os vejamos como homens adultos ainda tentando se situar e superar suas próprias fraquezas, falhas, temores e apreensões. Tratam-se de personalidades que colidem e ao mesmo tempo se complementam.

Em um momento-chave do longa, Malcolm critica a postura de Cooke, conhecido como o rei do soul, em agradar plateias brancas com suas músicas que versam sobre o amor, denotando a falta de profundidade e posicionamento do vocalista. Posteriormente, Brown avalia sobre o quanto Sam é o único dos quatro com independência financeira, que não trabalha para brancos e conduz sua carreira do modo que bem entende. Em outra sequência, uma das mais belas do filme, Sam e Malcolm “fazem as pazes” após o ativista relatar que esteve em um dos concertos do músico e, diante de um defeito técnico com o microfone, Cooke foi obrigado a pensar com agilidade para resolver e sair daquela situação constrangedora, resolvendo cantar a capella. Mesmo sem o alcance que o microfone traria à sua voz, o artista magnetizou os presentes, atraiu-os a bater as mãos e os pés enquanto ele entoava seus versos. O ativista conta que o que o admirou (por mais que, à distância em que se encontrava sequer conseguisse ouvir o amigo cantar) foi o senso de comunidade, de esforço coletivo e o carisma e “capacidade de liderança” que fez com que a plateia se unisse a ele um momento após começarem as vaias. Em meio a potes de sorvete e provocações ora sutis ora contundentes, os quatro amigos parecem, enfim, encontrar-se prontos para seguir rumos mais audaciosos com firmeza e segurança, ainda que certos fantasmas insistam em assombrá-los. Então Cassius se converte ao islamismo e adota o nome Muhammad Ali. Jim se aposenta da NFL e se dedica a uma nova carreira, a de astro do cinema. Sam apresenta ao mundo uma canção de protesto, diferente de seu habitual repertório. E Malcolm, infelizmente, teria em breve um trágico fim, sendo assassinado dias após proferir a sentença que encerra o longa.

Diferentemente de A Voz Suprema do Blues (um dos destaques dessa temporada de premiações que também é baseado em uma peça teatral), a transposição dos palcos para as telas de Uma Noite em Miami… é bastante funcional. O texto é bem adaptado e enxuto e os atores não se excedem em nenhum momento, jamais soando acima do tom. Em uma estreia mais do que competente como cineasta, a atriz Regina King demonstra absoluto domínio da mise-en-scène e destreza ao contornar limitações. Mesmo apostando na economia de cenários (basicamente toda a narrativa se desenrola dentro do quarto de hotel de Malcolm X, após uma vitória emblemática de Clay nos ringues, quando o atleta faturou seu primeiro título mundial dos pesos-pesados) e em longos diálogos, a trama segue sem se tornar exaustiva, apostando no carisma, química e interações de quatro excelentes intérpretes.

Infelizmente, o longa não concorrerá às categorias de melhor filme e direção no Academy Awards. Ainda assim, tem três indicações e é o favorito para levar a estatueta de canção original, com a belíssima “Speak Now”, composta pelo mesmo Leslie Odom Jr que interpreta San Cooke.

>> Uma Noite em Miami… concorre no dia 25 de abril ao Oscar 2021 em três categorias: ator coadjuvante, roteiro adaptado e canção original

Movies

Mirador

Filme paranaense mostra a rotina de um boxeador entre subempregos, cuidados com a filha e os treinos para voltar aos ringues

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Olhar/Divulgação

O cinema paranaense tem encontrado nos últimos anos, mesmo com o congelamento cultural em curso pelo (des)governo Bolsonaro, um enorme salto qualitativo-quantitativo. Neste ano, oito obras produzidas no estado foram selecionadas para a 24a Mostra de Cinema Tiradentes, um dos maiores eventos do cinema brasileiro, realizado até o dia 30 de janeiro de forma online e gratuita. Entre elas, Mirador (Brasil, 2021 – Olhar), de Bruno Costa.

O diretor assina o roteiro junto a William Biagioli, explorando a rotina de um pugilista amador, Maycon (Edilson Silva), preso entre subempregos enquanto deve cuidar de sua filha e se preparar para voltar aos ringues. Costa, no entanto, parece incerto do rumo pelo qual pretende levar seu longa-metragem, tornando-o, em sua execução, paradoxal a seu intento. Isso se dá pela mescla de elementos narrativos de um estudo de personagem com uma abordagem sociológica, isto é, de crítica social, supostamente amparadas pela metáfora do conflito central – a luta nos ringues que ecoa a luta diária do proletariado. 

Com tantos alvos, Mirador atira para todos os lados e não consegue estabelecer-se coeso com sua(s) proposta(s). Se era pra ser um estudo de seu protagonista, pouco de Maycon é apreendido pelo público, dada a distância de uma decupagem plana e a atuação contida de seu protagonista – decisões que, em si mesmas, não são problemáticas, mas não encontram contraste ao longo da trama para fazer-se valer. Se, por outro lado, era pra ser uma crítica social, ela é difusa em tantas subtramas que, caso o roteiro fosse simplificado e as fundisse, tornariam-se muito mais eloquentes. 

No entanto, a intenção de Costa transparece em alguns momentos. A aflição do protagonista permeia seu agir oprimido em algumas fortes sequências – um lampejo do potencial que discutia anteriormente. Fotografia e edição cumprem muito bem seus papéis, desenvolvendo uma atmosfera que suscita o interesse do espectador. Novamente é a falta de direcionamento que nos perde.

Assim, Mirador é uma história de potencial, cuja linguagem definida pula de uma abordagem para outra sem uma definição unitária, o que enfraquece o conjunto e torna os noventa e quatro minutos de projeção pouco engajados. Ao afastar-se de um “filme de luta”, um “bom pai com dificuldades” e outros lugares-comuns narrativos, o longa mostra-se corajoso. Contudo, é melhor um filme que contorce os clichês em sua perspectiva única a um que, como uma casa sem fundação, não se constrói sólido.