Movies

O Último Dia de Yitzhak Rabin

Filme sobre o assassinato do premiê e prêmio nobel da paz Yitzhak Rabin é lançado no Brasil por causa do conflito atual que envolve Israel e Palestina

Texto por Abonico Smith

Foto: Synapse/Divulgação

Para muitos, um injustificável e desmedido massacre genocida contra civis (maioria de mulheres e crianças) provocado por escusos interesses econômicos e políticos. Para outros, apenas exercício do direito de uma nação de se defender perante o risco de mais alguma ação carregada de terrorismo. Não importa de que lado da perspectiva do muro você esteja, uma coisa é certa: está sendo bombardeado pelos nomes de Israel e Palestina há quase um mês na pauta dos noticiários aqui, ali e acolá. No Brasil não poderia ser diferente, seja o veículo jornalístico pertencente à mídia tradicional ou bravas iniciativas independentes carregadas de um viés sociopolítico que foge de interesses comerciais que mandam e desmandam no território do mainstream. O fato é que quando o premiê israelense Benjamin Netanyahu declarou guerra ao Hamas surgiu uma grande oportunidade para se corrigir uma injustiça cinematográfica por aqui. Então, com oito anos de atraso, enfim, é lançado o filme O Último Dia de Yitzhak Rabin (Rabin: The Last Day, Israel/França, 2015 – Synapse), dirigido por Amos Gitaï e com roteiro assinado em conjunto com Marie-José Sanselme, também sua parceira em outras obras mais recentes do mais famoso cineasta daquele país.

O interesse de Gitaï é vasculhar pistas que podem vir a esclarecer alguns pontos nebulosos por trás do assassinato do então primeiro-ministro, ocorrido em 4 de novembro de 1995 (há exatos 28 anos) de uma praça pública de Tel Aviv, após uma grande manifestação pela paz. No ano anterior, Rabin fora agraciado com o Prêmio Nobel da Paz ao lado do presidente de Israel Shimon Peres e do líder da Organização pela Liberdade da Palestina Yasser Arafat. Os governos israelense e palestino selaram em setembro de 1993 uma série de acordos mediados pelo norte-americano Bill Clinton visando à abertura das negociações sobre os territórios ocupados, a retirada de tropas de Israel do sul do Líbano, o status da cidade “dividida” de Jerusalém e, o mais importante, o fim dos conflitos bélicos entre todos os lados rivais daquela região. As atitudes e decisões de Yitzhak (vale lembrar que ele e Shimon pertenciam ao partido ligado a questões trabalhistas) começaram a incomodar muitos judeus radicais sionistas de seu país, especialmente o pessoal da extrema-direita congregado no partido chamado Likud, na época comandado por… Benjamin Netanyahu, que estava por trás uma maciça campanha de manipulação da opinião pública contra Rabin, envolvendo a incitação de ódio e violência contra ele.

Gitaï, que sempre procurou imprimir em seus longas-metragens uma pequena representação da sociedade israelense, mistura linguagens para desvendar os segredos e mistérios por trás dos três tiros à queima-roupa disparados por um jovem estudante universitário naquele dia na Praça da Paz. Coloca atores vivendo personagens reais, encenando diálogos e situações que possam levar os espectadores (sobretudo gente como nós, brasileiros comuns, que há décadas praticamente só ouvimos falar os nomes dos partidos e dos políticos nos noticiários de jornais, revistas, rádios e televisões) a ligarem os pontos. Entretanto também não abre mão de misturar altas doses documentais, utilizando imagens externas de acontecimentos garimpadas em arquivos e acervos, inclusive o seu próprio – já que Amos andava acompanhando alguns atos públicos de Rabin e inclusive estava filmando no momento do assassinato do premiê.

O ritmo lento, a duração extensa (2h36) e a narrativa nada linear do roteiro podem cansar um pouco quem não está muito acostumado a padrões cinematográficos não hollywoodianos ou também não tem lá muito interesse em questões históricas que podem fazer compreender um tanto melhor muito do que anda acontecendo nos dias atuais em Faixa de Gaza, Cisjordânia, Israel e seus arredores não palestinos. Por outro lado, quem se interessar por ver o trabalho “investigativo” do cineasta tem uma excelente oportunidade de perceber que tanto do lado de lá do planeta como do lado de cá muito do modus operandi da right wing não é tão diferente assim. Só que Israel sempre foi um Estado de orientação muito mais bélica do que o Brasil.

Movies

Angela

Isis Valverde revive a intensa história de fogo e paixão da socialite Ângela Diniz, vítima de famoso caso de feminicídio nos anos 1970

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Downtown Filmes/Divulgação

Noite de 15 de julho de 2011. Uma menina, de 4 anos, perambula sozinha na rua de casa, em Colombo, região metropolitana de Curitiba. Encontra uma mulher e bate nas costas dela: “tia, minha mãe está morta”. Em cima da cama, a polícia encontra o corpo de Carine Andréia dos Santos do Carmo, executada com dois tiros na cabeça. Suspeito: o marido, foragido. Lembro até hoje o rosto da menina deixando a casa onde vivia há apenas dois meses, de mãos dadas com os conselheiros tutelares e as cenas da tragédia cravadas na memória. Sem mãe, nem pai.

30 de dezembro de 1976. Às vésperas do réveillon, a socialite mineira Ângela Maria Fernandes Diniz é executada com quatro tiros, três no rosto e um na nuca, pelo então companheiro Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street. “Se você não for minha, não será de ninguém”, disse o assassino, antes de disparar à queima-roupa. 

O crime ocorreu na casa onde os dois moravam, na Praia dos Ossos, município de Búzios, litoral do Rio de Janeiro. Ossos do homicídio. Raul fugiu, foi preso e, no primeiro julgamento, em 1979, seus advogados alegaram a tese de legítima defesa da honra, desabonando a conduta de Ângela, na famosa estratégia de culpar a vítima, que muitos advogados ainda sustentam hoje, um traço característico da cultura machista. Durante o júri, ela foi descrita como a mulher fatal, capaz de levar o homem à loucura.

Doca, o homem que havia “matado por amor”, recebeu a condenação de dois anos de prisão, que nem chegou a cumprir. O absurdo dessa pena “simbólica” deixou a sociedade perplexa e fez até o poeta Carlos Drummond de Andrade se manifestar: “estão matando essa moça todos os dias”, escreveu na época.

Os movimentos feministas logo se organizaram e criaram o slogan “Quem ama não mata”. Em 1981, Street foi levado a segundo julgamento e pegou 15 anos de prisão por homicídio doloso qualificado. Cumpriu quatro anos em regime fechado até progredir para o semiaberto. Antes de morrer, em 18 de dezembro de 2020, aos 86 anos, ele chegou a publicar um livro de memórias chamado Mea Culpa.

A história desse feminicídio, amplamente divulgado na mídia na época, agora está nas telas dos cinemas com direção de Hugo Prata. O cineasta, aliás, vem se tornando um especialista em cinebiografias de artistas e celebridades, sobretudo personagens femininas marcantes, como fez com Elis e agora Ângela. 

Angela (Brasil, 2023 – Downtown), o filme que traz Ísis Valverde na pele da protagonista e Gabriel Braga Nunes como Doca Street, estreia no país, no dia da Independência, 7 de setembro, e no ano em que o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a tese de legítima defesa da honra, usada em casos de feminicídio ou agressão contra as mulheres para justificar o comportamento do acusado. 

Num bate-papo pós pré-estreia no Cine Passeio, em Curitiba, comandado pelos curadores, Marden Machado, jornalista e crítico de cinema, e pelo diretor Marcos Jorge, Prata conversou com os espectadores e revelou detalhes de como o filme foi idealizado: “Achei que tinha perdido o timing. Porque quando comecei a rodar, logo veio o movimento #metoo. Depois, o caso ainda foi repercutido no podcast Praia dos Ossos”, lembrou. Portanto, foram sete anos até o lançamento do longa, prazo de expiração para muito casamento. Mas seu timing não poderia ser mais preciso, por causa da decisão histórica do STF.

Bonita, elegante e à frente do seu tempo, Ângela Diniz casou-se ainda adolescente com o engenheiro Milton Villas-Boas, quatrocentão da sociedade paulistana. Aos 21 anos, já tinha três filhos para criar. Na época em que conheceu Doca Street (que, então, era casado com outra socialite, Adelita Scarpa), Ângela estava fragilizada por causa do desquite, já que a lei do divórcio só seria aprovada no país em 1977, ano posterior ao homicídio.

Por isso, ao contrário do que muito se divulga, ela teve de renunciar à guarda dos filhos pequenos em prol de sua liberdade, de sua independência. Ao contrário dela, muitas mulheres permaneciam casadas para manter as aparências. Ficar longe das crianças foi o primeiro preço alto que teve de pagar, como mostra o filme. Prata contou que, desde o início, a ideia foi desmitificar nas telas a imagem da socialite como sendo a “mulher fatal”, a “pantera de Minas” que participava de festas ao lado do colunista social Ibrahim Sued, seu namorado antes da paixão avassaladora por Doca.

Durante seu processo de pesquisa, o cineasta entrou em contato com os filhos da vítima. Soube que um deles morreu num acidente. O outro tem uma doença que o paralisou e, por isso, é assistido pela irmã Cristiana Maria Villas-Boas Viana, sua tutora. Prata chegou a conversar pessoalmente com a filha de Ângela depois de encontrá-la nas redes sociais, mas não conseguiu muito subsídio para construir a história. Afinal, a dor ainda é grande. E, ao contrário do que muita gente pensa, há poucas imagens de Ângela em público porque ela não podia se expor.

“Ao falar da morte ficam dizendo que ela era rica, que ela era bonita, muito sedutora. Tudo aquilo que foi colocado no julgamento permeou a imagem da Ângela. Então, a gente descartou a tese de que não importa o que ela viveu antes de conhecer o Raul e antes dele matá-la. Ângela tinha o direito de viver a vida do jeito que ela quisesse. Então, o filme começa no dia em que eles se conheceram, evento fatídico da vida dela”, contou. Ou seja, Prata e a roteirista Duda de Almeida recriaram a protagonista livre de julgamentos, a partir do momento em que ela conhece seu assassino, numa festa, até a sua morte.

Foram quatro meses de fogo e paixão. Por isso, há muitas cenas de sexo (até demais!) no longa, que traz três atos bem marcados. O primeiro é quando ela conhece Doca, um homem que já dava indícios de índole violenta, habilidoso com armas e amante de safaris africanos. Numa cena, o playboy se gaba por ter enfrentado um elefante e ter matado uma presa mais forte que ele. No segundo, no meio do filme, ocorre a primeira agressão. No terceiro, a vítima passa a ser agredida frequentemente até acontecer o homicídio. Quando Ângela decide por um fim na relação, o orgulho ferido do caçador entra em ação. “Aliás, nós decidimos chamar Raul pelo nome e não pelo apelido”, contou o diretor, que esbanjou dos big close-ups, sobretudo por conta da intensidade de interpretação de Ísis Valverde, procurando manter um estilo narrativo de filmes feitos para televisão. E como se trata de uma cinebiografia, o público já sabe como é o final, desenhado aqui de forma potente como se todas as mulheres fossem atingidas pelos disparos de pistola no rosto.

O que, logo depois, leva à seguinte conclusão: se toda mulher é meio Leila Diniz, muitas ainda são Ângela Diniz.

Music

Animal Collective – ao vivo

Representado por Panda Bear e Avey Tare grupo recria na íntegra, em Belo Horizonte, o instigante álbum Sung Tongs

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Texto por Danilo Kowalsky

Foto: Francisco Rocha/Queremos!/Divulgação

Quando ouvi o álbum Sung Tongs, do Animal Collective, pela primeira vez, em 2004, tive uma sensação mista de estranheza e familiaridade. Mas já volto a este assunto.

Não havia muita coisa no cenário de bandas novas que chamava minha atenção ali em 2003/2004. As bandas estavam desesperadamente buscando de reinventar em termos de som e de formato mas ao mesmo tempo queriam voltar a agradar os ouvidos de quem gostava de shows, de canções e de refrãos. Os resultados dessa busca não estavam lá muito empolgantes. Tudo andava meio insípido. E eu, consequentemente, estava bem mais interessado nas novidades instigantes e inovadoras que vinham do cenário da música eletrônica, de selos como Rephlex e Warp, por exemplo.

Volto agora ao assunto da estranheza e familiaridade simultâneas. Ora, não seria isso algo realmente bom para motivar os interesses? A excitação e os disparos sinápticos provocados pelo inesperado, mas que não chegam chutando a porta. Chegam macio, caramelizados pelo conforto do familiar, com algo de terreno já pisado.

A estranheza de Sung Tongs deixava claro que aquele som não caminhava na mesma direção da maioria das bandas alternativas ou da cena indie rock, americanas ou europeias, da época. Apesar do violão ser um instrumento central em Sung Tongs, aquilo ali não era bem uma releitura de folk. Não era também uma releitura jovem e escolarizada do country, que costumam chamar de alt-country. A estranheza talvez tenha vindo de um certo formato, pelo menos nos arranjos e nas modalidades das canções, que me lembrava de bandas como Sun City Girls. Estavam ali a modalidade musical/harmônica, as vocalizações, as onomatopeias bucais, a aliteração, a paranomásia e outras figuras vocais não usuais na canção ocidental que evocam as línguas de outros povos e também de outras culturas musicais. Talvez daí venha o nome deste disco — numa tradução livre, “línguas cantadas”.

Mas e o familiar? O que ali naquele som me trazia a familiaridade? A estranheza foi relativamente fácil de apontar, mas o lado acalentador e confortável estava mais difícil. E assim foi se construindo a vontade de continuar a ouvir o Sung Tongs. E depois mais uma vez. De novo. Até que…

A ficha caiu! Pet Sounds. Beach Boys. Brian Wilson. Estava ali se derramando em excelentes camadas de estéreo nos meus ouvidos e eu ainda não havia percebido. Harmonias vocais construídas belissimamente. Aquele fluxo harmônico flutuando em volta dos ouvidos que quase dá pra sentir com a mão. Aquele tipo de vocalização que se tornou praticamente uma vertente na música americana. E, claro, um tipo particular de psicodelia. Tipo particular de psicodelia que talvez tenha sido mesmo inventada ali, no Pet Sounds dos Beach Boys de Brian Wilson.

Foi isso, então, o que me fez gostar tanto do Sung Tongs. Em meio a toda a insipidez da cena alternativa na época, aparecia ali um disco luminoso. Um som instigante que continha o estranho e o inesperado calçados pela harmonia acalentadora. Mesmo quando Sung Tongs fica ríspido e soturno, há sempre algo costurado, na bela mixagem do disco, que aponta antenas e radares para o longe, mas que também lança raízes no solo da era de ouro da música pop ocidental.

Por isso tudo eu estava realmente ansioso pela chegada do Animal Collective com a celebração dos 15 anos do Sung Tongs em Belo Horizonte. E apreensivo também. A possibilidade do show apareceu pelo Queremos! e já fiquei imaginando como seria a recepção a um grupo tão pouco conhecido no Brasil. Certamente deveria ser um show pequeno num lugar pequeno, imaginei. Tudo se confirmou e eu fiquei surpreso ao saber que o show seria, na verdade, em uma casa de médio porte da cidade, o Music Hall, que comporta bem mais de mil pessoas. Ingresso comprado. Agora era esperar o último dia 26 de agosto. Ansiedade deixada de lado (por enquanto).

Chegou o dia do show. Nenhuma eletricidade no ar. Nenhum burburinho. Eu — meio elétrico. Ansiedade crescia. Como seria? E os efeitos eletrônicos? E os efeitos de estúdio que são tão importantes em toda a ambiência do disco? A atração de abertura não me interessava tanto e acabei chegando ao local e fiquei ali, perto da entrada, papeando, especulando mentalmente como seria o show que estava por começar. O lugar estava vazio; já se via. Isso trazia aquela sensação de que não teríamos uma experiência com pouco calor de som e de corpos.

Panda Bear e Avey Tare entraram no palco. Eu não vi nenhum sampler e nenhum outro tipo de auxílio eletrônico. Imediatamente ficou claro que toda aquela profusão de camadas de violão e de sons e de efeitos de Sung Tongs seria executada pelos dois apenas. Em tempo real, “no braço”, ali. Menos da metade da pista estava ocupada pelo público. As alas laterais e o mezanino estavam completamente vazios. Animal Collective, certamente, não faz um som de arena para milhares, mas esse vazio de público me causava um certo desconforto.

Começou o show. E veio logo uma música que eu não reconheci (“Tuvin”). O lugar parecia estranhar os primeiros sons. Violões e vocalizações. Nenhuma letra. Nenhuma palavra facilmente inteligível. Nenhuma progressão de acordes tradicional. Fico imaginando se não estavam apresentando o Sung Tongs com um outro arranjo totalmente diferente. Mas essa possibilidade foi embora quando começou “Leaf House”, a abertura do álbum, e, na sequência, a linda “Who Could Win a Rabbit”, segunda música. Duas faixas marcantes, com ritmo mais presente (eles usavam um tambor nas músicas de batida mais forte), com os violões a palhetadas pesadas e as vozes preenchendo tudo. Ambos usavam mais de um microfone; um limpo e outro carregado de efeitos para a voz como eco e delay. O público se empolgou um pouco mais e uma certa energia entre o palco e as pessoas começou a se formar, embora alguma já manifestassem, corporalmente, um certo desinteresse. Essa energia alegre e, ao mesmo tempo, curiosa se manteve na próxima faixa, “Winters Love”. Mas foi perceptível um arrefecimento quando chegou o meio do disco com faixas mais soturnas e menos melódicas, como “Kids On Holiday”, “Sweet Road” e “Visiting Friends”. O pequeno público se dispersou um pouco mais. Alguns indo ao bar comprar mais alguma bebida. Outros se virando para conversar isso ou aquilo. Os celulares iam descendo do ar de volta para os bolsos e bolsas até que não restasse mais nenhum aparelho hasteado. Os aplausos entre as músicas não cessaram, no entanto. Continuaram.

Apesar dos pesares — do pequeno público, da dispersão e dos espaços vazios — um sentimento já emergia: a maioria dos presentes percebeu que ali, naquele palco, o trabalho musical que se desenrolava era de fôlego. Talvez não estivesse suprindo tão bem a expectativa de entretenimento de algumas pessoas. Mas era claro que possuía um conceito forte e também forte determinação artística. Essa sensação foi reforçada com a canção “College, que é uma bela peça vocal de um minuto. Todos ficaram mais silenciosos e se deixaram arrebatar pelo momento “petsoundiano-brianwilsoniano”. Na sequência veio “We Tigers”, uma faixa mais percussiva que retomava um pouco daquela alegria frugal da abertura. E os aplausos entre as músicas continuavam.

As três faixas finais (“Mouth Wooed Her”, “Good Lovin Outside” e “Whaddit I Done Brat”) foram levando o pequeno público, fosse provido de uma ou três cervejas, a manifestações mistas de uma certa descontração dançante ligeiramente ébria tipo “já que estamos aqui” ou a uma dispersão ainda maior. O vazio do lugar e o tamanho do espaço vazio estavam surtindo seus efeitos agora mais que antes.

Logo depois tivemos uma breve comunicação de Avey Tare com o público (se não me engano, Panda Bear nada disse além de “thank you!”), dizendo que ali havia se encerrado a caminhada por todas as músicas de Sung Tongs. Veio, então, um bônus de mais quatro músicas que não reconheci de imediato. Posteriormente soube que se tratavam de duas músicas de um ótimo EP chamado Prospect Hummer (“I Remember Learning How To Dive” e a faixa-título), lançado em 2005; uma ainda não gravada (“Sea Of Light”); e uma outra que está em uma compilação lançada somente em vinil, em 2009 (“Don’t Believe The Pilot”).

Tudo acabou e a pequena plateia rapidamente se pôs para fora do lugar. Em mim ficou a sensação de que uma ótima apresentação perdeu seu potencial. Ou, ainda, teve seus efeitos desvirtuados devido a uma escolha infeliz para o lugar do show.

Sunga Tongs é um álbum com muitas nuances. Cheio de microssons, cheio de camadas de efeitos, vozes, violões, samples. Cheio de onirismo e sutilezas. O lugar grande, com os ecos e ressonâncias indesejadas ocasionadas pelo vazio, só contribuiu para erodir a força de uma apresentação tão bela. Esse tipo de sonoridade pede um lugar mais compacto — em que a imersão seja mais intensa, em que a atenção ao som possa ser maior, em que o som possa ser mais preciso, com mais qualidade e menos volume, a fim de revelar tudo o que pode ser revelado e a fim de cumprir todos os efeitos (sejam eles intencionais ou não). Dessa maneira, som e ambiente adequados contribuiriam muito mais, e melhor, para o afeto do público. Para se ter uma “experiência Animal Collective”.

Voltando um pouco à segunda comunicação de Avey Tare e Panda Bear (se não me engano, houve um “good evening!” lá no início), entre a última faixa de Sung Tongs e as faixas extras (não foi um bis, pois os dois não chegaram a sair do palco): houve um momento de aplausos sinceros e calorosos, como deveria ser. Mas uma alegria não muito cintilante estava no rosto e nos lábios dos dois no palco. Essa alegria moderada talvez fosse o tom correspondente a uma apresentação que, na concepção deles, tenha sido “ok”. Como escrevo esta resenha mais de três meses depois, realmente não me lembro exatamente o que os dois disseram naquele momento final. Mas a reafirmação do motivo do show e do motivo da turnê certamente foi pronunciada: os 15 anos do lançamento de Sung Tongs. Um trabalho importante para eles, sem dúvida. E importante para mim também. Ainda não sei bem quando, nem quantas vezes. Mas sei que irei ouvir Sung Tongs novamente.

Set list: “Tuvin”, “Leaf House”, “Who Could Win a Rabbit”, “The Softest Voice”, “Covered In Frogs”, “Winter’s Love”, “Kids On Holiday”, “Sweet Road”, “Visiting Friends”, “College”, “We Tigers”. “Mouth Wooed Her”,  “Good Lovin Outside”, “Whaddit I Done”, “Prospect Hunter”, “Sea Of Light”, “Don’t Believe The Pilot” e “I Remember Learning How To Dive”.

Movies

As Viúvas

Diretor Steve McQueen justapõe contornos dramáticos a empolgantes cenas de ação e perturba o espectador em seu novo filme

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Texto por Abonico R. Smith

Foto: Fox/Divulgação

História de um grupo de assaltantes iniciantes que se reúne para executar aquele roubo à mão armada que vai salvar suas vidas de pendengas financeiras não é novidade no cinema. As Viúvas (Widows, Reino Unido/EUA, 2018 – Fox) , porém, traz uma diferença a esta premissa: junta nesta quadrilha sem experiência alguma no submundo do crime mulheres entre os trinta e cinquenta anos que acabaram de perder seus maridos, criminosos “assumidos” ou ainda “no armário” para a família, e receberam de “herança” dívidas que serão cobradas em breve por um cruel contraventor de uma região mais pobre da cidade de Chicago. Enquanto elas se decidem por botar a mão na massa para salvar as suas peles, duas raposas do cenário político local passam a se digladiar nos bastidores de uma eleição que em breve poderá lhes dar mais ainda mais poder em seu próprio território.

Adaptado para o cinema pela afiada dupla Steve McQueen (também assinando a direção deste longa) e Gillian Flynn (autora de Garota Exemplar e Lugares Escuros, ambos thrillers assustadores tanto nas páginas literárias quanto na grande tela) de uma série de TV escrita pela atriz, roteirista e escritora britânica Lynda La Plante, este longa-metragem prende o espectador com seus muitos contornos dramáticos permeando as cenas de ação. Se estas são de tirar o fôlego, aquelas são de levar as pessoas do compadecimento à revolta.

Ninguém é inteiramente vítima ou vilão na história. Nem os maridos assassinados pela polícia em uma ação onde tudo deu errado, nem as viúvas que decidem também se aventurar pelo crime. Nem o candidato representante da elite branca e rica, nem o rival negro e pastor de uma igreja evangélica frequentada pelos moradores pobres da área que domina. Nem o filho mimado e seu pai corrupto, nem o capanga sangue frio e seu irmão gângster. Chantagens, balas disparadas à queima-roupa, lobbies, trapaças, mentiras, intrigas, cinismo e ameaças à integridade física convivem com ações de sororidade, desesperos de mãe, a humilhação de passar por seguidos atos de abuso, o sentimento de solidão após o luto e o sofrimento de passar anos a fio pela manipulação da própria família. Discussões sobre gênero sexual, racismo, religião e abuso de poder e autoridade acabam ganhando quase o mesmo peso conforme a trama vai se desenvolvendo, fazendo com o que o tal assalto preparado pelas viúvas venha a ser apenas mais elemento dela, não o mote principal. Claro que reviravoltas acontecem durante este tempo, o que torna o filme ainda mais delicioso.

A hábil mão do diretor McQueen – que não ganhou o Oscar de sua categoria em 2014 mas viu seu 12 Anos de Escravidão levar o prêmio principal da noite – acrescenta sutis detalhes à história de La Plante. Recorre a linguagens distintas no tratamento da perspectiva pela qual o espectador vê homens e mulheres na tela. Abusa de bela fotografia, capaz também de apostar em planos-sequência matadores, e ainda brinca com a montagem desde o início da sessão, intercalando momentos de passado e presente, reflexão e ação. E, o principal de tudo, não leva seu filme a tomar partido de qualquer lado: deixa para que quem estiver vendo faça seus próprios julgamentos baseados em suas crenças, convicções e experiências de vida.

Não bastasse tudo isso, o elenco é de primeira. Viola Davis, mais uma vez, brilha nas telas na pele da protagonista Veronica, a chefe da nova quadrilha. Aos poucos, seja como personagens coadjuvantes ou ainda participações menores mas com importância em algum ponto da trama, surgem Liam Neeson, Michelle Rodriguez, Elizabeth Debicki, Carrie Coon, Cynthia Erivo, Robert DuVall, Colin Farrell, Bryan Tyree Henry e Daniel Kaluuya.

As Viúvas provoca impacto do começo ao fim, não deixa quem o vê sair levantar impassível da poltrona e, sobretudo, mostra que é possível, sim, fazer bom cinema baseado em uma sinopse que pede ação, muita ação. Chega aos cinemas já com cheirinho de várias indicações ao Oscar 2019 e outras importantes premiações da temporada.