Movies

Assassinos da Lua das Flores

Em quase três horas e meia que passam voando, Martin Scorsese conta a história de extermínio de milionária tribo indígena dos EUA

Texto por Abonico Smith

Fotos: Apple TV+/Paramount/Divulgação

Martin Scorsese declarou, não faz muito tempo, sua aversão por filmes como os da Marvel. Disse que aquilo não era cinema, justamente por estarem fincados no pilar da necessidade de CGIs aos borbotões. Contudo, parece que anda querendo competir com os próprios blockbusters de super-heróis. Pelo menos no que se refere ao tempo de exibição de seus últimos longas-metragens. O Irlandês, de 2019, alcançava 3 horas e 29 minutos de duração. Agora, com apenas 180 segundos a menos, ele lança Assassinos da Lua das Flores (Killers Of The Flower Moon, EUA, 2023 – Apple TV+/Paramount). Em comum aos dois, o fato do diretor não se preocupar muito com a extensão da obra. Afinal, foram feitos diretamente para o streaming. Os espectadores estão em casa, no conforto do lar, podem pausar como e quando quiserem, inclusive podendo assisti-los divididos em alguns dias. Continua sendo cinema segundo a sua concepção, mas agora voltado a um novo modo de consumo, sem a necessidade de estar em uma experiência coletiva vivenciada em salas públicas de projeção.

Polêmicas conceituais à parte, o fato é que, antes de chegar à sua plataforma de streamingAssassinos da Lua das Flores – tal qual a Netflix já fizera com O Irlandês – desembarca primeiro nos cinemas. Coisas das regras para um filme ganhar indicações ao Oscar do início da próxima temporada. Isso torna um desafio um tanto quanto maior para quem se dispõe a sair de casa para assistir a esta “maratona de uma trama só” em alguma sala nas rua ou nem algum shopping center. Prender a atenção e sentar-se na poltrona por 210 minutos sem sequer ir ao banheiro é uma tarefa árdua. Assim como no filme anterior, o novo título de Scorsese também ganha lançamento prévio por algumas cidades brasileiras. E por ter a assinatura do cineasta – que agora também assina o roteiro, ao lado do também veterano Eric Roth (Forrest GumpO Curioso Caso de Benjamin Button, as mais recentes versões de Nasce Uma Estrela e Duna) – vale a pena a aventura.

A história é adaptada do livro de David Grann no qual ele conta a trágica história dos índios Osage por volta de um século atrás, durante os anos 1920. Por sinal, é a mesma história que deu origem à criação do FBI e a subsequente dinastia de quase meio século com J. Edgar Hoover no comando do principal órgão de investigação e segurança nacional dos Estados Unidos. Talvez por ser um livro tão rico em detalhes e com intrincadas referências, que a opção foi deixar uma trama extensa na tela para que fossem exploradas camadas de narrativas, visuais e interpretações do jeito intenso e fluido com que Scorsese sempre conduziu seus filmes.

A tribo nativa estadunidense fora deslocada de sua terra natal em 1870 e colocada em um canto de Oklahoma com o solo seco e rochoso. Entretanto, algumas décadas depois, descobriu-se um farto subsolo petrolífero por lá, tornando os Osage índios milionários, inclusive podendo se dar ao luxo de – contrariando tudo o que acontecera na corrida de colonização do Velho Oeste – poderem se dar ao luxo de contar com empregados brancos no dia a dia. O nome Flower Moon, inclusive, vinha a região dos prados onde ficavam os Osage, que ao fim de cada inverno, tornavam-se um tapete recheado de belas flores coloridas.

Com a benção da tribo e sendo bastante respeitoso ao livro de Grann (que também recebe crédito como corroteirista), Martin conta a história de como uma série de misteriosos assassinatos se abate sobre os Osage. Homens e mulheres são mortos por tiros, explosões, envenenamento. No meio disso tudo, a líder nativa Mollie (Lily Gladstone, em brilhante atuação que pode até lhe dar alguns prêmios e indicações no começo do próximo ano) segue sua luta particular que mistura orgulho indígena a doenças que abatem a sua mãe e a ela própria.

O vilão fica claro desde o início. Ele é o todo-poderoso fazendeiro da região Bill Hale (Robert de Niro), cheio de amigos influentes na política, na polícia e em todo lugar de poder. Por trás da máscara de caridoso benfeitor da sociedade, ele arquiteta os mais malvados e impiedosos planos de extermínio para ficar, legalmente e por meio de herança familiar, com as terras onde abunda o ouro de cor preta. Para isso, Hale possui vários paus mandados. Seu principal ajudante de ordens é o sobrinho Ernest Buckhart (Leonardo DiCaprio), a quem traz para perto para fisgar o coração (e com isso os bens e as propriedades) de Mollie.

Esta é a primeira vez em que De Niro e DiCaprio trabalham juntos sob a batuta de Scorsese. Os dois atores, frequentemente escalados para o elenco das obras do cineasta, revelam ter boa química. Quando entra em cena Gladstone, tudo fica ainda mais iluminado. O resto do elenco também traz um pouco de seu brilho em pequenas participações. Do último ator oscarizado Brendan Fraser (como o advogado da família “mafiosa”) ao sempre impactante Jesse Plemons (como o policial enviado à região pelo bureau federal de investigações). E quem gosta de música também tem quase rês horas de puro deleite. A trilha sonora assinada pelo recentemente falecido Robbie Robertson (leia aqui mais sobre o histórico músico da não menos histórica banda chamada Band) é espetacular ao pontuar as cenas do faroeste dos anos 1920 com as raízes do blues e do country estadunidense. E aos poucos algumas caras famosas como Jason Isbell, Sturgill Simpson, Pete Yorn e Jack White vão aparecendo na tela em pequenos papeis e pontas.

Aos 80 anos de idade e constantemente demonstrando um pleno fulgor criativo, Martin Scorsese faz deste Assassinos da Lua das Flores mais uma grande obra em sua extensa e cultuada filmografia. E ainda faz o tempo voar na poltrona dos cinemas sem a necessidade de apelar para a abundância de CGIs. Isso não só é amor pelo cinema, como também o saber fazer cinema no mais puro sentido da sétima arte, dominando a tecnologia e não sendo dominado por ela.

Movies, Music, Series, TV

Xuxa + Turma do Balão Mágico + Wham! + Menudo

Canais de streaming oferecem pot-pourri de documentários biográficos sobre estrelas da música pop nacional e internacional dos anos 1980

Texto por Taís Zago

Fotos: Netflix/Divulgação (Wham!), HBO Max/Divulgação (Menudo), Star+/Divulgação (Turma do Balão Mágico) e Globoplay/Divulgação (Xuxa)

Nos últimos meses os canais de streaming não economizaram na nostalgia para nos inundar com filmes e séries biográficas de artistas proeminentes que tinham uma imensa fanbase infanto-juvenil nos anos 1980 e 1990: Xuxa, Turma do Balão Mágico, Wham! e Menudo. Eles fizeram parte de nossas infâncias e habitam (assombram?) o nosso inconsciente coletivo até hoje. Vou além: desafio os leitores a ouvir o nome de alguns deles sem cantarolar mentalmente algum de seus hits radiofônicos.

Infelizmente nem tudo foi rosa-choque e glitter nas trajetórias desses artistas. Em sua quase totalidade, essas novas obras documentais escancaram situações gritantes de abusos físicos, emocionais e financeiros da parte de managers, amigos e até mesmo familiares próximos.

Wham! (Netflix, 2023)

No dia 5 de julho a Netflix disponilizou o documentário sobre a trajetória desse duo que marcou a recente história pop inglesa, europeia e mundial com seus grandes, brilhantes, positivos e afirmativos hits durante a primeira metade dos anos 1980.

Os amigos de infância George Michael e Andrew Ridgeley começaram cedo a compor juntos e a ligação entre eles perdurou durante o estrelato. O Wham! durou apenas 4 anos (entre 1982 e 1986) e desfrutou de um sucesso meteórico até Michael partir para a sua bem-sucedida carreira solo. Mas deixou hits como “Wake Me Up Before You Go-Go” ou “Last Christmas”, que virou hino de Natal e ainda hoje é tocada pelas rádios quase que diariamente no mês de dezembro por toda a Europa. 

Nesse documentário dirigido por Chris Smith vemos todo o colorido da vida fun da juventude de polaina e shortinho fosforescente e que cultuava a beleza estética, bronzeados e cabelos dourados e a vida de luxo e brilho dos popstars George e Andrew. Os excessos não foram poucos em sua jornada, porém o documentário se abstém de grandes aprofundamentos – ficando apenas na superfície, como era no geral a vibe do Wham!.

Baseado em memórias de Andrew e do livro de colagens de sua mãe, a obra documental conta apenas com a voz dos artistas como narração. No caso de George, por causa de seu falecimento prematuro no Natal de 2016, há apenas material de arquivo. Mesmo assim, um tantinho morna, essa biopic é parada obrigatória para os fãs e um eyecandy para todo mundo.

Menudo: Forever Young (HBO Max, 2022)

Estreou no dia 23 de junho no Brasil o documentário Menudo: Forever Young (HBO Max, 2022) em quatro episódios sobre a precursora das boy bands latino-americanas. Menudo não era necessariamente um grupo. Era uma brand criada pelo perverso produtor Edgardo Diaz que, em viagem à Espanha, descobriu o formato que resolveu desenvolver em seu país natal, Porto Rico.

Os diretores Angel Manuel Soto e Kristofer Rios conseguiram proporcionar um mergulho nostálgico nos anos “dourados” (no caso, de lycra) do primeiro fenômeno internacional latino a arrastar (pré) adolescentes aos milhares para estádios lotados e vigílias em frente a hotéis.

Foram entrevistados ex-membros sobreviventes das várias fases do grupo entre os anos 1970 e 1990. Alguns reconhecemos da nossa infância, outros nunca vimos antes.  

Fato é que os dois cantores mais famosos não fazem parte do documentário. São eles Ricky Martin e Robi Rosa. Os motivos podemos especular: boa parte de Menudo: Forever Young é dedicada à denúncia de abusos (inclusive sexuais), violência e exploração infantil por parte de Edgardo, que nunca fora levado a julgamento.

Como uma obra que é mais do que parece (assim como os próprios menudos), o documentário mostra as questões pouco tratadas do abuso do trabalho infantil comum no showbiz e em bandas arranjadas por meio de casting e competições. Assim como a interessante contextualização histórica cultural das comunidades hispânicas na américa latina e EUA durante a década de 1980. 

Esta obra é um retrato bittersweet do sonho de fama e fortuna de dezenas de rapazes que eram substituídos assim que passavam pela alteração de suas vozes na puberdade.

A Superfantástica História do Balão (Star+ /2023)

Um banho de nostalgia nos 40 and something. É isso que rola em boa parte dos três episódios desse documentário sobre o quarteto infantil mais famoso da história da dobradinha entre televisão e música brasileira, disponível no Star+ desde meados de julho.

A turma do Balão Mágico foi uma presença constante na minha vida na primeira metade dos anos 1980. Eu tinha todos os discos, assistia a todos os maravilhosos especiais e não perdia um único dia do programa exibido  nas manhãs da Globo entre 1983 e 1986, até a Xuxa tomar seu lugar. Simony, uma criança circense. Tob, um garoto sensível e tímido. Mike, uma bomba de energia, filho do famoso assaltante do trem pagador Ronald Biggs. Jairzinho, talentoso filho de Jair Rodrigues. Os quatro fizeram parte da infância de toda criança da geração X brazuca. E isso pelo simples fato de não existir nenhuma concorrência à altura (em alcance de mídia) para o produto que ofereciam. 

Quase quarenta anos depois do fim do grupo os quatro integrantes da formação clássica se reuniram e deram seus depoimentos pessoais sobre fama, dinheiro, abusos e traumas. A sensação que fica é a de que a exploração infantil era absurda, escancarada e ocorria em pleno acordo e incentivo dos pais. Hoje em dia, com os avanços que tivemos na área de direitos humanos e das crianças, muita coisa que a turminha passou lá trás é encarada como uma verdadeira aberração. A minissérie dirigida por Tatiana Issa costura momentos do grupo por meio de muito material de arquivo com entrevistas atuais com atores, produtores, diretores e músicos que participaram da história do Balão. Alguns dos personagens trazem boas lembranças, outros nos deixam na boca o retrogosto amargo do abuso.

Programa obrigatório. Pelo menos para quem até hoje sabe cantar de cor “Ursinho Pimpão”.

Xuxa, o Documentário (Globoplay, 2023)

Série feita em cinco episódios semanais e dirigida por Pedro Bial para o canal de streaming da Globo. Na verdade, essa frase já bastaria para resumir o conteúdo, mas vou elaborar mais. 

Xuxa foi um fenômeno dos anos 1980 e 1990 no Brasil e na América Latina, uma mulher a frente de um formato diário de entretenimento televisivo infantil que foi acompanhado anos a fio pela grande maioria das crianças brasileiras. Ainda arrastou legiões de fãs para seus shows e filmes e vendeu milhões de discos. Isso tudo sem saber cantar, compor ou atuar. Ela se sustentava apenas na força do enorme carisma e contava com Marlene Mattos, seu braço-direito (e de ferro!) para garantir que nenhuma mídia ou merchandising ficasse imune ao seu charme. A presença dela era onipresente nas vidas de quase todas as crianças brasileiras que tinham ficado órfãs de uma babá eletrônica diária após a dissolução da Turma do Balão Mágico. 

As crianças brasileiras ganharam sua Barbie de carne, osso e voz aguda, na forma do ideal de beleza eurocêntrica vinda do sul do Brasil. Rodeada por paquitas e paquitos que seguiam o seu padrão estético, a Rainha dos Baixinhos construiu uma enorme fortuna e fama internacional. 

Material para uma obra documental envolvente e intrigante não faltou. Mas faltou vontade, uma melhor edição e uma direção que saísse dos padrões sensacionalistas e noveleiros que são marca registrada da produtora Globo. Com um vastíssimo arquivo audiovisual, os episódios são recheados de nostalgia celebrando a loira. Contudo, falha na hora de apresentar fatos que ainda não fossem amplamente conhecidos até por quem nem é seu fã. As entrevistas são rasas, apelativas. No caso do face-off  Xuxa versus Marlene, adquire tom apelativo e até constrangedor.

Claro que vale a pena ser visto para recuperar algumas memórias afetivas, imagens e letras de músicas que marcaram a infância de milhões. O documentário, entretanto, não preenche as lacunas e nem dá respostas satisfatórias para muitas das polêmicas envolvendo o nome de Maria da Graça Meneghel.

Series, TV

The Idol

Nova série do criador de Euphoria se inspira levemente em Britney Spears para contar uma nova história de abuso nos bastidores do showbiz

Texto por Taís Zago

Foto: HBO Max/DIvulgação

Para quem estava à espera da mais nova, polarizante e hipersexualizada série da gigante HBOMax, The Idol (EUA, 2023) é um prato cheio. Aliás, como dizem os americanos: “ela morde um pedaço maior do que é capaz de mastigar”.

O diretor e criador Sam Levinson atingiu o olimpo do stream e caiu nas graças da diretoria da HBO ao nos presentear com Euphoria (iniciada em 2019), um grande e incontestável sucesso que trouxe várias figuras novas e talentosas da jovem Hollywood como Zendaya, Hunter Schafer, Barbie Ferreira ou Sydney Sweeney. Euphoria virou instantaneamente uma febre mundial ao esfregar em nossas caras o lado sombrio, caótico, depressivo e borderline que também faz parte da geração Z. Levinson, obviamente, não gosta de uma digestão fácil: ele nos confronta com cenas, diálogos e situações que ficam conosco mesmo após o término dos episódios.

The Idol já havia preenchido há tempos as páginas dos folhetins de fofoca. sua produção não foi suave. Após ter sido quase que totalmente filmado pela diretora Amy Seimetz (que fez episódios de AtlantaThe Killing e Stranger Things), tudo foi jogado no lixo por desagradar Levinson, que a partir dali tomou para si a direção em colaboração com o músico e ator The Weeknd (Abel Tesfaye). Para eles, a versão da saga de uma pop queen estava centrada demais no personagem principal de Jocelyn (Joss), interpretada por Lily-Rose Depp, e deveria envolver mais o personagem Tedros, feito por Abel Tesfaye. Nesse processo, muito do material empoderado feminista que Amy havia incluído em sua versão foi eliminado. Levinson e Tesfaye preferiram colocar o foco no lado mais misógino, sombrio e abusador da indústria fonográfica norte-americana.

Então, todos os limites do tolerável foram ultrapassados, The Idol é uma grande festa de abusos físicos, psicológicos e emocionais. Isso não agradou a grande parte da crítica internacional. A série acabou virando o enfant terrrible dos lançamentos de 2023 feitos pelo canal. Ainda antes de sua estreia, rumores de comportamentos abusivos nos sets de filmagem também começaram a circular, o que tornaria a experiência ainda mais meta para todos os envolvidos.

Em resumo, The Idol trata da ascensão/queda/ascensão de um ídolo pop, algo levemente inspirado em Britney Spears e seus dramas pessoais – vemos os abusos de familiares, amigos, produtores e parceiros de carreira de Joss. A cantora atravessa um calvário e luta diariamente uma guerra em busca de manter status e fama. Joss não estabelece limites. Um cenário que a torna presa fácil de narcisistas interessados em se banhar em sua fama. É neste contexto que surge Tedros, um dono de casa noturna com um rabo-de-cavalo e layout de cafetão que construiu ao seu redor uma espécie de seita de pessoas talentosas e criativas, as quais ele “estimula” com o intuito de potencializar a força criativa dos artistas. Os métodos de Tedros são criminosos. Com ele tudo é permitido: estupro, abuso verbal, violência, tortura.

Muitas cenas são extremamente difíceis de assistir, a ponto de nos perguntarmos o quanto o sadismo pessoal de Levinson e a ambição de Tesfaye não estariam ali representadas de forma real. Nudez e cenas explicitas pipocam o tempo todo na tela, assim como o abuso de drogas e absoluta falta de caráter de todos seus personagens. Quem está ao redor de Joss só pensa em ascensão ou vingança. Quem está em torno de Tedros procura, em vão, um reconhecimento paternal que lhes foi negado. As relações de codependência são muito dolorosas e provavelmente potentes gatilhos para quem já sofreu abuso de alguma forma – e isso, infelizmente, inclui uma boa parte da audiência. Quando pensávamos que o limite do violence porn em produções já havia chegado ao seu ápice, Sam Levinson aparece para nos abrir o alçapão escuro no fundo do poço.

A questão que resta a avaliar são se seria isso necessário. Qual o valor artístico de forçar audiências constantemente além seus limites de tolerância? Para mim, as respostas se espelham no quanto o ser humano sente prazer, mesmo que não assuma, em se colocar na posição de voyeur de tragédias que não o atingem pessoalmente. Como alguém que não consegue deixar de olhar para o resultado de um acidente de carro violento mesmo que aquilo lhe traumatize. Pelo mesmo motivo que muitos de nós encontram diversão em filmes de horror. Uma dissociação da realidade momentânea mergulhando na ficção. Um desejo inconsciente de ver celebridades serem punidas pela atenção e dinheiro que recebem. Principalmente quando se trata de uma mulher que ousa se sentir livre e que vive sua sexualidade de forma irrestrita.

The Idol não é uma obra sobre o brilho. É sobre trevas, doença mental, seres destruídos por suas próprias realidades que buscam em um pseudoguru uma espécie de salvação de si mesmos. Talvez nos machuque exatamente por não maquiar feiúras. Lily-Rose teceu inúmeros elogios a Levinson, afirmou que ele foi o melhor diretor com quem trabalhou até agora, indo contra o tsunami de críticas e acusações direcionadas à série. A filha de Johnny Depp e Vanessa Paradis é incrivelmente talentosa e certamente tem pela frente uma carreira espetacular como atriz. Sem dúvida alguma, apesar da insistência de The Weeknd de puxar, sempre que possível, os holofotes para si, Lily é uma força da natureza em ascensão. Ela carrega essa série nas costas em um papel extenuante e difícil. Já Tesfaye, por sua vez, é o festejado do momento no crossover entre ator e músico, só que não entrega o que promete. The Weeknd mirou em Childish Gambino e errou feio. Não chega nem aos pés, pelo menos ainda, da genialidade de Donald Glover e sua obra-prima Atlanta.

teatro

O Bem-Amado Musicado

Obra-prima de Dias Gomes ganha nova encenação e choca ao expor a olhos nus o país de hoje em um texto de seis décadas atrás

Texto por Abonico Smith

Foto: Festival de Curitiba/Divulgação

Soteropolitano de nascimento e radicado na cidade do Rio de Janeiro desde a adolescência, Alfredo de Freitas Dias Gomes é um nome intrinsecamente ligado à dramaturgia. Ganhou popularidade em todo o país a partir da formação de rede nacional da TV Globo nos anos 1970, quando assinou novelas marcantes como Bandeira 2O Bem-AmadoO EspigãoSaramandaia Roque Santeiro. Mas antes já era bem íntimo de romances literários e peças teatrais. Escreveu a primeira encenação aos 15 anos de idade e foi muito produtivo entre as décadas de 1940 e 1960, até ir para a televisão e formar uma legião de fãs e discípulos que vieram a marcar a história das produções nacionais.

O ano de 2022 marcou o centenário de Dias Gomes. Entretanto, apesar de sua intensa criação, o teatro brasileiro parece ter se esquecido de um de seus maiores criadores. Na temporada da retomada, não só a pós-pandemia como também na normalidade quatro anos tenebrosos e de aberrações na política brasileira, apenas uma peça assinada por ele esteve em cartaz. Compensou o fato também de não ser qualquer encenação, mas sim aquela que muitos consideram a maior de todas as peças (embora a concorrência com O Pagador de Promessas seja grande, na verdade). E que, depois de algumas semanas em temporada bem acalorada e comentada em São Paulo, está chegando agora a algumas outras capitais, inclusive tendo passado por duas noites de Teatro Guaíra lotado no Festival de Curitiba em 3 e 4 de abril.

O Bem-Amado Musicado é uma pequena adaptação do original escrito e encenado originalmente em 1962 sob o nome de Odorico, o Bem-Amado ou Os Mistérios do Amor e da Morte. No texto original de Dias Gomes nada, absolutamente nada foi alterado ou acrescentado. A única mudança que a trupe liderada pelo protagonista Cassio Scapin (que até então sempre alimentara o sonho de interpretar Odorico Paraguassu) e o diretor Ricardo Grasson apresentam em cena é uma coleção de novas canções, compostas exclusivamente por Zeca Baleiro e Newton Moreno e dirigidas por Marcio França (que também está no palco como o pistoleiro regenerado Zeca Diabo) para esta peça e executadas em cena por músicos e atores. Tanto que ganhou um novo título, justamente para se diferenciar do nome tradicional. A intenção, segundo Grasson e Scapin, foi tentar se distanciar ao máximo da grande trilha sonora feita por Toquinho e Vinícius de Moraes para a adaptação ao formato de folhetim feita pelo autor para o horário das 22h das novelas da Globo em 1973. Melhor também quanto à questão do pagamento de direitos autorais…

A versão trazida aos palcos exatamente seis décadas de depois é de uma competência só, não apenas quanto às novas músicas – que são executadas e cantadas pelos atores que fazem os personagens centrais da trama passada na pequenina cidade baiana de Sicupira (como Odorico, Zeca Diabo, as cabos eleitorais e três irmãs Cajazeiras, o aspone do prefeito Dirceu Borboleta, o vigário da igreja, o dono do jornal local e maior oponente político do protagonista). Cenários e figurinos também servem como colírio para os olhos, misturando referências da xilogravura dos cordéis nordestinos, a comédia dell’arte inserida nos filmes de Federico Fellini e todo o imaginário construído pelo teatro popular brasileiro. A química que envolve todo o elenco também se torna fator de destaque durante as quase duas horas de encenação.

Contudo, o que mais choca o espectador é a extrema atualidade do texto feito por Dias Gomes há seis décadas. Do começo ao fim, o dramaturgo parece não apenas ter utilizado como base para o seu misto de acidez e ironia para alfinetar a política brasileira realizada até então, mas também utilizado uma bola de cristal e previsto não só tudo aquilo que continuaria ocorrendo ao longo das décadsa e ainda se intensificaria em inimagináveis níveis estratosféricos nestes últimos quatro anos de (des)governo do falso messias. Mas, parafraseando o próprio Odorico Paraguassu e deixando de lado os entretantos para cegar aos finalmentes, a trama do prefeito corrupto envolve demagogia popularesca, fake news, nepotismo, desvio de verbas, gastos orbitais do dinheiro público. Também há ali os choques de interesse entre executivo e judiciário e o uso da religião para a descarada instrumentação política da classe trabalhadora.

Nesta montagem, Scapin, França e Grasson se firmam como um sólido tripé para saudar a obra e a genialidade de Dias Gomes em um tempo em que as artes brasileiras, ainda se refazendo de um período terrível de trevas e achatamento, andam precisando do surgimento de novos autores como o baiano-carioca. Já faz quase um quarto de século que ele partiu – morreu no dia 18 de maio de 1999, vitimado por um acidente automobilístico em uma madrugada paulistana após ir ao teatro para ver uma ópera e jantar com a esposa. Ainda faz muita falta.